GAZA, NOTAS SOBRE UMA CHACINA
2021-05-15
José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
Israel está a cometer mais um acto de apogeu da chacina a que tem vindo a submeter impunemente a população da Faixa de Gaza – e da Palestina em geral – durante as últimas décadas. Os alvos não são “os túneis do Hamas”, como informa o regime sionista, mas dois milhões de pessoas que vivem enclausuradas num imenso campo de concentração do qual não podem escapar. Não se trata de um “confronto”: é uma barbárie.
Algumas notas sobre o que está a passar-se.
1. O principal responsável pelo massacre não é Israel: é a chamada comunidade internacional
A Faixa de Gaza e a respectiva população são um alvo que Israel tem sempre à mão quando necessita de recorrer a manobras de diversão por causa da degradação política interna, como acontece no momento actual em que se misturam a prolongada indefinição governativa, a corrupção a alto nível do regime e a polémica gestão da pandemia – por sinal, insolitamente elogiada no plano internacional.
Os dirigentes sionistas não duvidam, nem por um instante, de que podem utilizar o instrumento da guerra contra Gaza porque sabem que a chamada comunidade internacional o permite. As instâncias internacionais, com a ONU à cabeça, e as grandes potências, com destaque para os Estados Unidos e a União Europeia, permitem tudo a Israel sem assumir uma única medida para conter a barbárie. Há mais de 70 anos que a comunidade internacional se vem dotando de instrumentos legais para fazer respeitar os direitos inalienáveis do povo palestiniano e há mais de 70 anos que eles são interpretados como letra morta. Este comportamento é um incentivo à discricionariedade de Israel; e Israel aproveita-o consoante as suas conveniências sabendo que nada de mal lhe acontecerá e nenhuma reacção irá além do apelo à “moderação” e a um “cessar-cessar entre as partes”. Isto é, entre uma “parte” que pode tudo e uma “parte” que sofre tudo. Os foguetes do Hamas são irrelevantes quando comparados com o aparelho de guerra usado pelo regime sionista. A actuação da comunidade internacional na questão israelo-palestiniana é o exemplo mais flagrante da sua permanente utilização do sistema de pesos e medidas variáveis.
2. O mundo árabe isola cada vez mais a Palestina
Isolada pela comunidade internacional em geral, a Palestina conta cada vez menos com a solidariedade do chamado mundo árabe. Sob a égide da administração Trump nos Estados Unidos, países árabes como os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein juntaram-se recentemente ao Egipto na normalização das relações com Israel, o que significa abandonar a defesa dos direitos dos palestinianos. Acresce que existem, de facto, relações diplomáticas entre o Estado sionista e a Arábia Saudita, encimadas pela amizade e afinidades entre o primeiro-ministro Netanyahu e o herdeiro do trono wahabita, Mohammed Bin Salman. Uma aliança sobre os escombros da Palestina.
Na prática, a solidariedade árabe nunca desempenhou um papel que permitisse a criação de um Estado palestiniano, como determinam as normas e a doutrina estabelecidas pela comunidade internacional. O reconhecimento de Israel por cada vez mais países árabes, porém, reforça a ideia de que o problema palestiniano poderá ter outras “soluções” que não sejam a criação de um Estado palestiniano independente, viável e plenamente soberano.
Por outro lado, as relações entre países árabes e Israel transforma cada vez mais o Estado sionista numa entidade plenamente integrada no Médio Oriente, dando assim forma ao arranjo pretendido pelos Estados Unidos de uma região com duas potências dominantes – Israel e Arábia Saudita – ambas viradas contra o Irão.
3. Um massacre com o Irão na mira
O novo pico de guerra de Israel contra Gaza não pode desligar-se dos permanentes esforços do regime sionista para tentar provocar uma guerra directa contra o Irão – à qual as administrações norte-americanas ainda têm resistido. A ofensiva supostamente “contra o Hamas” – grupo que Israel liga a Teerão apesar de ser sunita e não xiita – acontece no preciso momento em que a administração Biden ainda não definiu se regressa ou não ao acordo nuclear 5+1 com o Irão. A mensagem israelita é directa: apoiando grupos activos no Médio Oriente como o Hezbollah no Líbano e na Síria e o Hamas na Palestina, o Irão terá de ser desencorajado de o fazer. E os acordos com Teerão têm de ser invalidados.
4. O papel dos Estados Unidos, União Europeia e NATO
Por muito que possam vir a proclamar verbalmente o contrário, os Estados Unidos e a União Europeia estão por detrás de mais esta chacina israelita em Gaza. Se em relação a Washington não existe qualquer dúvida, tanto mais que o aparelho do Partido Democrata no poder é o que está mais sintonizado com os interesses dominantes do sionismo, poderão levantar-se reticências em relação ao papel da União Europeia.
O que não tem qualquer razão de ser. Apesar de algumas declarações de distanciamento, como foi o caso por ocasião da transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém, a prática de Bruxelas e dos 27 é objectivamente favorável às atitudes assumidas por Israel, sejam elas quais forem: nada fazem para que seja concretizada a solução de dois Estados na Palestina, mantêm relações económicas e políticas preferenciais com Israel e não assumem nas instâncias internacionais qualquer posição contra as atitudes militares extremas do sionismo. Antes pelo contrário: Israel é um parceiro activo da NATO – que rege a União Europeia do ponto de vista militar – e está mesmo envolvido nos exercícios em curso na Grécia e no Mar Egeu no quadro dos jogos de guerra Defender Europe”. Isto é, as forças armadas sionistas que participam em exercícios atlantistas são as mesmas que fazem jorrar o sangue de civis indefesos na Palestina, impedidos de escapar às suas bombas. Uma aliança que dizima vidas e direitos humanos.
5. A causa próxima: colonização e limpeza étnica
A mensagem de Israel com esta nova operação de barbárie é directa: nada fará parar o sionismo no seu objectivo de limpar e submeter etnicamente a Palestina e de impedir qualquer tentativa, por débil que seja, de implementar a solução de dois Estados.
O instrumento para concretizar esse objectivo é a colonização ininterrupta dos territórios da Cisjordânia – a par do cerco férreo a Gaza – de maneira a estender a ocupação, inviabilizar as possibilidades territoriais de instaurar um Estado e quebrar a resistência nacional palestiniana.
Nas últimas semanas o regime sionista expulsou mais famílias e arrasou as suas habitações no bairro de Sheik Jarrah, em Jerusalém Leste, no quadro da “limpeza” de todos os palestinianos da cidade. Acontece que a ofensiva encontrou forte resistência da população atingida, sinal de que, apesar de isolados internacionalmente, os palestinianos não estão dispostos a abdicar dos seus direitos. Uma vez que Gaza respondeu à agressão e da Faixa de foram disparados foguetes contra território israelita, a operação militar sionista assumiu as já conhecidas proporções de punição colectiva. Contando, para isso, com a habitual impunidade que lhe é assegurada pelas instâncias internacionais.
De facto, Israel usa o terrorismo para impor a lei do mais forte sabendo que encontrará pouca oposição e condenação nenhuma.
A nova fase da chacina contra Gaza e da limpeza étnica da Cisjordânia é, afinal, mais um passo no sentido de um desfecho que inviabilize de vez a solução de dois Estados na Palestina. Ao mesmo tempo que este princípio vai sendo invocado como um mantra cada vez mais vazio de significado pelos que insistem em dizer-se defensores das leis internacionais e dos direitos humanos.
Enquanto isto, continuam a morrer inocentes indefesos e a Nakba, o holocausto palestiniano, prossegue, dia após dia, sob os olhos e a passividade do mundo. Até ao último dos palestinianos.