PEQUIM E MOSCOVO NÃO ACERTAM HORAS POR WASHINGTON
2020-11-08
Pequim e Moscovo não acertaram as suas horas pela de Washington durante os últimos tempos, como se fez nos subservientes países ocidentais. China e Rússia têm a sua parceria estratégica em funcionamento e seguem caminhos próprios que não estão à espera de “autorização” decorrente da “escolha” norte-americana. Enquanto decorria o duelo de sociopatas nos Estados Unidos, o Comité Central do Partido Comunista da China apreciou o plano quinquenal até 2025, decisivo no caminho do país para a autossuficiência económica ao mais elevado nível tecnológico. E o “pragmatismo” de Moscovo afinou-se em debates como alternativa aos reconhecidos fracassos neoliberais no Ocidente. São opções próprias que estão a traçar outros caminhos não coincidentes com os do decadente império.
Pepe Escobar, Asia Times/Adaptação O Lado Oculto
Sejam quais forem as consequências geopolíticas e geoeconómicas da espectacular distopia norte-americana, a parceria estratégica Rússia-China, em registos ligeiramente diferentes, já votou quanto ao rumo a ser tomado daqui para a frente.
No afã da cobertura do duelo das eleições norte-americanas, a comunicação social corporativa esqueceu-se de um acontecimento que terá repercussões profundas na evolução mundial: a essência do plano quinquenal chinês 2021-2025 apresentada na reunião plenária do Comité Central do Partido Comunista da China efectuada há semana e meia. Uma reflexão sobre o conteúdo do plano pelo think tank Centro para a China e a Globalização pode ser encontrada aqui.
O “segredo” não muito secreto do Plano Quinquenal para a China em 2021-2025 – que a publicação oficiosa Global Times qualificou como a “autossuficiência económica” – é o de basear o crescente poderio geopolítico do Estado-civilização em grandes avanços tecnológicos.
O ponto fulcral é o facto de a China se ter colocado numa rota garantida por “autopropulsão” e que tornará o país pouco ou nada dependente de qualquer produto estrangeiro. O documento inclui o estabelecimento de um horizonte claro e “pragmático” para o efeito: o ano de 2035, a meio caminho de 2049 – o ano do centenário da revolução. Nessa altura a China deverá ter-se equiparado ou mesmo ultrapassado os Estados Unidos em termos de poderio geopolítico, geoeconómico e tecnológico.
Este é o suporte lógico que alimenta o empenho da direcção chinesa no estudo profundo da convergência da física quântica e das ciências da informação – considerado como a espinha dorsal do impulso “Made in China” em direcção à Quarta Revolução Industrial.
Inteligência artificial e robótica
O plano quinquenal deixa bastante claro que os dois principais vectores são a inteligência artificial (IA) e a robótica, áreas em que a investigação chinesa tem feito grandes avanços. As inovações nestes campos criarão uma matriz que poderá ser aplicada em todas as áreas, dos transportes à medicina, já para não mencionar o armamento.
A empresa Huawei é de importância fulcral neste processo, porque não funciona apenas como um mero gigante de dados mas é igualmente uma fabricante de hardware que cria plataformas e infraestrutura física para que uma multidão de empresas desenvolvam as suas próprias versões de cidades inteligentes, cidades seguras – ou de medicamentos.
O grande capital – do Oriente e do Ocidente – está perfeitamente sintonizado com o rumo tomado por este processo, que implica também os principais nós das “Novas Rotas da Seda”. Em sintonia com o enredo da “terra das oportunidades” do século XXI, o grande capital deslocar-se-á cada vez mais para o Leste Asiático, a China e esses nós das “Novas Rotas da Seda”.
Essa nova matriz geoeconómica basear-se-á, principalmente, em derivações da estratégia “Made in China 2025”. Coloca-se assim uma clara escolha a todo o planeta: “todos lucram” ou “soma zero”.
Os fracassos do neoliberalismo
Depois de observar o choque feroz, agravado pelo COVID-19, entre o paradigma neoliberal e o “socialismo com características chinesas”, o Sul Global está apenas começando a tirar as conclusões necessárias.
Não há tsunami de propaganda ocidental capaz de inventar uma versão favorável ao que é de facto um colapso ideológico tão devastador como um directo no queixo
O fracasso abjecto do neoliberalismo no combate à COVID-19 é por demais evidente em todo o Ocidente.
A distopia das eleições nos Estados Unidos acaba de selar agora o fracasso rotundo da "democracia" liberal ocidental: que tipo de "escolha" Trump e Biden ofereceram?
Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo que o ultra eficiente e implacavelmente diabolizado Partido Comunista da China desdobra o mapa que mostra a rota a ser seguida nos próximos cinco anos. Washington não consegue planear nem o que vai acontecer amanhã.
A intenção original de Trump, conforme sugerido por Henry Kissinger antes da posse, em Janeiro de 2017, era jogar o jogo – e que outro poderia ser? –de dividir para governar seduzindo a Rússia contra a China.
Um caminho que para o Deep State (Estado profundo) e os seus lacaios era um anátema absoluto. Daí que a seguir a Trump tenha aparecido o Russiagate no topo da lista. E então Trump, de forma unilateral, optou por demonizar a China.
Com a vitória democrata o cenário dará uma guinada para a diabolização exacerbada da Rússia, ao mesmo tempo que a histeria contra a China continuará em todas as frentes – uigures, Tibete, Hong Kong, Mar da China Meridional, Taiwan.
O caminho russo
Compare-se agora esse quadro com o mapa do caminho russo.
A questão foi claramente colocada nas intervenções cruciais do ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, e do presidente Putin nos recentes debates do Clube Valdai, o mais importante think tank russo.
Putin fez uma importantíssima declaração sobre o papel do capital, realçando a necessidade de "abandonar a prática do consumo sem restrições e ilimitado - o hiperconsumo - em favor de uma suficiência sensata e razoável, “na qual não se vive apenas para o dia de hoje, mas deve pensar-se também no de amanhã".
Putin, mais uma vez, sublinhou que "o Estado é uma instituição necessária, não há como [...] prescindir do apoio do Estado".
E, em consonância com a interminável experimentação chinesa, acrescentou que, na verdade, não há regras económicas imutáveis: "Hoje, nenhum modelo é puro e rígido, nem a economia de mercado nem a economia dirigida, temos apenas de determinar o nível de envolvimento do Estado na economia. O que devemos usar como base para essa decisão? A conveniência. Temos de evitar o uso de qualquer modelo rígido e, até ao momento, foi o que fizemos com êxito".
O pragmático Putin definiu a regulação do papel do Estado como "uma forma de arte".
E, como exemplo, mencionou que "manter a inflação um pouco elevada tornará mais fácil para os consumidores e as empresas russas pagarem os empréstimos entretanto assumidos. O que é economicamente mais saudável que as políticas deflacionárias das sociedades ocidentais".
Como consequência direta das políticas pragmáticas de Putin - que incluem amplos programas sociais e vastos projectos nacionais - o Ocidente finge não perceber que é bem possível que a Rússia esteja a caminho de superar a Alemanha como a quinta economia do mundo.
O facto central é que, no seu todo, a parceria estratégica Rússia-China está a oferecer, principalmente ao Sul Global, duas abordagens radicalmente diferentes do dogma neoliberal do Ocidente. O que, para o establishment norte-americano, é um anátema.
Portanto, independentemente do resultado da “escolha” entre Trump e Biden, o embate entre o império e a parceria estratégica que se afirma na Eurásia irá fatalmente tornar-se ainda mais incandescente.