O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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A MATANÇA, O CESSAR-FOGO E A SOLUÇÃO DE DOIS ESTADOS

2021-05-22

José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

Estabeleceu-se um "cessar-fogo" nesta suposta “guerra entre o Hamas e Israel”, como afirma a comunicação social corporativa. É o habitual jogo de enganos que visa partilhar equitativamente responsabilidades numa situação de incomensurável desequilíbrio de forças e que pretende colocar no mesmo plano os criminosos e as vítimas. O que está a acontecer não é uma guerra, é um massacre de uma das partes; e o único cessar-fogo possível e credível para a situação é o reconhecimento dos direitos do povo palestiniano estabelecidos nas leis internacionais. Tudo o resto significa o arrastamento da situação e o extermínio de um povo. Interrompeu-se uma fase de chacina extrema por parte de Israel mas prossegue o massacre paulatino de povo palestiniano até novo auge ofensivo contra Gaza ou qualquer outro território ocupado da Palestina.

O chefe do governo de Portugal, a exemplo de outros colegas europeus, diz que é necessária a paragem dos ataques de Israel. Belas palavras. E depois? “Para que possamos regressar a um ponto onde o caminho para a paz seja possível”, assegura Costa. Palavras muito bem-intencionadas também.

Qual “caminho para a paz”? O conduzido pelo “Quarteto” chefiado pelo aldrabão profissional Anthony Blair e de que fazem parte a Rússia – manietada pelo veto norte-americano no Conselho de Segurança e por muitas e evidentes cumplicidades com Israel – a complacente União Europeia, o seu aliado norte-americano, cúmplice objectivo do crime no mínimo através do Conselho de Segurança, e também a ONU, entidade que, a reboque de Washington, cultiva a guerra para que dela floresça a paz?

Ora este “caminho para a paz”, quase sempre “arbitrado” pelos Estados Unidos, aliado da parte agressora, está barrado há muito por acção de Israel, que acusa o lado palestiniano de não ceder às suas exigências de rendição total. Enquanto continua a falar-se de “processo de paz” para que nada de pacífico aconteça, Israel tem recorrido a todos os métodos para inviabilizar uma solução compatível com o direito internacional, isto é, através da criação de um Estado Palestiniano viável, soberano e pleno.

Da colonização ao extermínio

O mecanismo mais utilizado e mais eficaz – porque pode ser aplicado sem operações militares que dêem muito nas vistas, sob o silêncio da comunicação social dominante – é o da colonização dos territórios palestinianos ocupados através de uma gradual limpeza étnica com expulsão das populações, destruição de casas, roubo de terrenos, edificação de muros e até prosaicos actos de banditismo como a destruição de colheitas agrícolas. Enfim, a institucionalização de um sistema de apartheid.

A colonização conduz, ninguém o duvide, à instauração no terreno de uma situação que inviabiliza totalmente a criação do Estado Palestiniano, porque deixa de haver território para isso; entretanto, os bem-intencionados deste mundo, como os chefes da União Europeia, forçados a dizer qualquer coisa quando as imagens de extermínio não podem ser escondidas, continuam a falar em “solução de dois Estados para a Palestina” sabendo perfeitamente – como não pode deixar de ser – que está a ser percorrido não “um caminho para a paz” mas uma via para liquidar o objectivo inscrito no próprio “processo de paz”. A guerra que existe é verdadeiramente esta: a do regime sionista contra o povo palestiniano pela liquidação total dos seus direitos, se necessário através do extermínio físico.

Quando um dirigente político, seja ele qual for, fala em necessidade de “cessar-fogo” para regresso ao “caminho da paz” e não formula mecanismos e medidas que permitam à chamada comunidade internacional impôr efectivamente a solução de dois Estados, está a ser cúmplice do comportamento criminoso do Estado de Israel. E a participar, no mínimo por omissão, num processo genocida. Num caso destes até o silêncio seria mais honesto.

Contaminação xenófoba

Acompanhando os ecos da comunicação corporativa sobre “a guerra entre o Hamas e Israel” ou a “escalada de violência entre israelitas e palestinianos”, como escreveu de forma enganadora e manipuladora a agência portuguesa Lusa, percebe-se que o conceito de “cessar-fogo” implícito é o da paragem dos bombardeamentos contra Gaza e também do lançamento de foguetes a partir da faixa cercada. Foguetes esses que são, na verdade, os únicos instrumentos através dos quais – perante a imobilidade internacional – sectores palestinianos fazem sentir a Israel que, apesar de tudo, não está completamente impune. Fisgas contra tanques ou foguetes contra tecnologia de guerra de última geração: estamos perante afirmações possíveis de existência e de resistência; nada que se pareça com um confronto entre dois exércitos. Sendo certo que cada vida perdida é uma vítima inútil de uma situação que as forças dominantes teimam em não resolver, a não ser através da aniquilação da outra parte, o cenário mediaticamente instituído de um falso equilíbrio permite-nos perceber até que ponto a comunicação social corporativa se deixou contaminar pelo conceito xenófobo cultivado pelo sionismo quanto à diferença de valor entre as vidas de cidadãos israelitas e árabes.

A guerra de Israel contra os palestinianos iniciou-se muito antes desta nova fase da barbárie contra Gaza, há mais de setenta anos, e irá prosseguir porque o “cessar-fogo” determina apenas que se calem agora as armas e não vai além disso, impondo a Israel medidas completas para que se cumpra de uma forma viável e com um conteúdo plenamente soberano a solução de dois Estados na Palestina. Deste modo, a suspensão da actual ofensiva contra Gaza não impede a continuação da colonização, do cerco contra a pequena e sobrelotada faixa, da limpeza étnica, das expulsões em Sheik Jarrah e, uma após outra, em todas as comunidades palestinianas de Jerusalém ou da Cisjordânia. Até ao próximo ataque contra Gaza se os palestinianos ousarem exercer activamente o seu direito à existência e à resistência.

Por que não carregar onde dói?

Um exemplo de como Israel é completamente imune às palavras inconsequentes dos seus amigos e aliados sempre que as imagens da chacina tornam impossível o silêncio é a demolição premeditada do edifício da agência Associated Press em Gaza.

A Israel não será difícil responder a Biden, forçado a perguntar sobre os motivos de tal atitude: o edifício daria acesso aos “túneis do Hamas” ou serviria até de “escudo humano” para o grupo fundamentalista islâmico palestiniano. Uma organização que ganhou vida – é oportuno recordá-lo - com apoio sionista quando se tornou importante dividir o movimento do primeiro Intifada, em finais dos anos oitenta, iniciado precisamente em Gaza.

Israel poderá ainda dizer que não fez nada que a NATO não tenha executado por exemplo em Belgrado, em 1999, quando bombardeou e destruiu o edifício da televisão jugoslava.

É certo que a Associated Press (AP) tem prestado permanentes e bons serviços ao regime sionista, tal como as outras principais agências internacionais de informação. E não será este aparentemente inusitado bombardeamento que irá interromper a sua fidelidade para com Israel. O governo israelita está seguro disso – é a ordem natural das coisas.

Para interrompê-la de maneira favorável ao reconhecimento dos direitos dos palestinianos seria necessário muito mais do que as rotineiras palavras de inquietação e um “cessar-fogo” transitório.

Impossível?

Nem tanto. Se, por exemplo, os dirigentes da União Europeia – ainda que incomodando a administração Biden – experimentassem suspender as relações económicas e militares com Israel até que este país abrisse comprovadamente as portas à solução de dois Estados, talvez o cenário se alterasse. Afinal, suspender relações económicas e impôr sanções a países terceiros já não constitui qualquer novidade para a União Europeia, predisposta assim a sofrer as respectivas consequências.

De um ponto de vista objectivo, não haverá país tão merecedor de tais medidas do que Israel, pelo menos tendo em conta palavras proferidas de quando em vez por alguns dirigentes europeus.

Fazer sentir aos chefes sionistas que a barbárie tem um preço a pagar seria a maneira de lhes proporcionar um inesperado encontro com uma nova realidade e as consequências dos seus comportamentos cruéis. E seria, sobretudo, um caminho para o fim de uma tragédia humana, não apenas em Gaza mas também na Cisjordânia e até em Israel, onde os dirigentes se debatem com uma interminável crise governativa e mesmo – eles o dizem – com os riscos de “uma guerra civil”. O estabelecimento de uma verdadeira paz na Palestina não é, porém, uma intenção nem uma preocupação da União Europeia nem da chamada comunidade internacional.

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