O CENTRO DO MUNDO DESLIZA PARA ORIENTE
2020-11-20
A China, o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália, a Nova Zelândia e os dez países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) assinaram a Parceria Económica Regional Abrangente (RCEP), o maior acordo comercial do mundo, um mercado integrado que envolve 30% da economia mundial e 2200 milhões de pessoas. Trata-se de uma grande plataforma que poderá intersectar-se com várias outras entidades regionais da geoeconomia mas também da geopolítica. A comunicação corporativa praticamente não deu por isso, a não ser para dizer que se trata de mais uma arma da China contra “o Ocidente”. Um “Ocidente” que continua a olhar-se como o centro do mundo – e a comportar-se colonialmente como tal. Enquanto ele, o centro do mundo, continua a deslizar inapelavelmente para Oriente.
Pepe Escobar, Asia Times/O Lado Oculto
Ho Chi Minh, na sua eterna morada, deve estar a saborear com um sorriso celestial o facto de o Vietname ter sido o anfitrião - virtual - de 10 nações da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático), mais China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia, para a assinatura da Parceria Económica Regional Abrangente, ou RCEP, no último dia da 37ª Cimeira da ASEAN.
A RCEP, com oito anos de existência, une 30% da economia global e 2200 milhões de pessoas. É o primeiro sinal auspicioso dos anos 2020, que começaram com um assassínio (do general Soleimani do Irão), seguido de uma pandemia global e agora de uma intimidação sinistra através de um duvidoso Great Reset (grande reinício ou grande restauração).
A RCEP instala o Leste Asiático como o centro principal indiscutível da geoeconomia. O século asiático, de facto, já estava em gestação nos anos noventa.
A RCEP pode forçar o Ocidente a fazer algum trabalho de casa, de modo a entender que a história principal neste caso não é que a RCEP "exclui os Estados Unidos” ou que seja uma parceria "projectada pela China". A RCEP é um acordo de âmbito asiático oriental, iniciado pela ASEAN e debatido entre iguais desde 2012, incluindo o Japão, que para todos os fins práticos se posiciona como parte do Norte global industrializado. É o primeiro acordo comercial que une as potências asiáticas, China, Japão e Coreia do Sul.
Agora está definitivamente claro, em vastas regiões do Leste Asiático, que os 20 capítulos da RCEP reduzirão as tarifas em todos os sectores; simplificarão as alfândegas, com pelo menos 65% dos sectores de serviços totalmente abertos e o aumento dos limites das participações estrangeiras; solidificarão as cadeias de abastecimento, privilegiando regras de origem comuns; e codificarão novas regulamentações de comércio electrónico.
Indo ao fulcro da questão, as empresas irão poupar e poderão exportar para qualquer lugar dentro do espectro de 15 nações sem se preocuparem com exigências extras e separadas de cada nação. Trata-se, portanto, de um mercado integrado.
Quando a RCEP se encontrar com a ICE
Ouvir-se-á até à exaustão o mesmo disco riscado sobre o modo como a RCEP irá facilitar as "ambições geopolíticas" da China. Mas a questão, mais uma vez, não é essa. O ponto fulcral é que a RCEP evoluiu como uma companheira natural do papel da China como principal parceiro comercial de praticamente todas as entidades activas do Leste Asiático.
O que nos conduz ao principal ângulo geopolítico e geoeconómico: A RCEP é uma companheira natural da Iniciativa Cintura e Estrada (BRI ou ICE), que como estratégia de desenvolvimento comercial sustentável abrange não apenas o Leste Asiático, estendendo-se mais profundamente à Ásia Central e Ocidental.
A análise da publicação oficiosa chinesa Global Times está correcta: o Ocidente não deixou de distorcer o significado da ICE, mesmo reconhecendo que "a iniciativa que tem caluniado é na verdade muito popular na grande maioria dos países ao longo das rotas da ICE".
A RCEP irá reorientar a ICE - cuja fase de "implementação", de acordo com o cronograma oficial, começa apenas em 2021. O financiamento de baixo custo e os empréstimos especiais em moeda estrangeira oferecidos pelo Banco de Desenvolvimento da China tornar-se-ão muito mais selectivos.
Haverá um destaque especial na Rota da Seda da Saúde - especialmente em todo o Sudeste Asiático. Os projectos estratégicos serão a prioridade: giram em torno do desenvolvimento de uma rede de corredores económicos, zonas logísticas, centros financeiros, redes 5G, principais portos marítimos e, especialmente a curto e médio prazo, de alta tecnologia relacionada com a saúde pública.
As discussões que conduziram ao esboço final da RCEP foram centradas num mecanismo de integração que pode facilmente contornar a Organização Mundial de Comércio (OMC) caso Washington persista em sabotá-la, como foi o caso durante a administração Trump.
O próximo passo poderia ser a constituição de um bloco económico ainda mais forte do que a União Europeia – o que não é uma possibilidade rebuscada quando temos a China, o Japão, a Coreia do Sul e as dez nações da ASEAN trabalhando juntos. Geopoliticamente, o principal incentivo, além de uma série de compromissos financeiros imperativos, seria solidificar qualquer coisa como "Fazer Comércio, Não a Guerra".
Fracassos em série
A RCEP marca o fracasso irredimível da Parceria Transpacífica (TPP) da era Obama, que era o braço da "NATO no comércio" do "pivot para a Ásia" sonhado no Departamento de Estado. Trump esmagou a TPP em 2017. A TPP não era um "contrapeso" à primazia comercial da China na Ásia: tratava-se de uma iniciativa que abrangia as 600 empresas multinacionais envolvidas no projecto. O Japão e a Malásia, especialmente, viram isso desde o início.
A RCEP também marca inevitavelmente o fracasso irredimível da falácia da dissociação, bem como todas as tentativas para meter uma cunha entre a China e seus parceiros comerciais do Leste Asiático. Todos esses actores asiáticos privilegiarão agora o comércio entre si. O comércio com nações não asiáticas será uma consideração posterior. E toda economia da região da ASEAN dará prioridade total à China.
Ainda assim, as multinacionais norte-americanas não ficarão isoladas, pois poderão lucrar com a RCEP através das suas subsidiárias que funcionam no espaço das 15 nações.
E a Grande Eurásia?
E depois há a proverbial confusão indiana. A posição oficial de Nova Deli é que a RCEP "afectaria a sobrevivência" dos indianos vulneráveis, o que é uma maneira diferente de dizer uma invasão extra de produtos chineses baratos e eficientes.
A Índia fez parte das negociações da RCEP desde o início. Retirar-se – com o argumento de que “poderemos juntar-nos mais tarde” - é mais uma vez um caso espectacular de tiro no pé. O fato é que os fanáticos hinduístas por detrás do modiismo (do presidente Modi) apostaram no cavalo errado: na estratégia da parceria Indo-Pacífica Quad (Estados Unidos, Austrália, Índia e Japão), fomentada por Washington com o objectivo de “conter a China”, excluindo assim o estreitamento de laços comerciais.
Nenhum "Made in India" compensará o erro geoeconómico e diplomático – uma vez que implica inevitavelmente que a Índia se distancie das dez nações da ASEAN. A RCEP solidifica a China, não a Índia, como o motor indiscutível do crescimento do Leste Asiático num quadro de reposicionamento das cadeias de abastecimento pós-Covid.
Um acompanhamento geoeconómico muito interessante é o que a Rússia vai fazer. De momento, a prioridade de Moscovo envolve uma luta de Sísifo: administrar as turbulentas relações com a Alemanha, o maior parceiro de importação da Rússia.
Mas depois há a parceria estratégica Rússia-China - que deverá ser melhorada economicamente. O conceito da Grande Eurásia caro a Moscovo traduz um envolvimento mais profundo tanto a Leste como a Oeste, incluindo a expansão da União Económica Euroasiática (EAEU, UEEA), que tem acordos de livre comércio com nações da ASEAN, como por exemplo o Vietname.
A Organização de Cooperação de Xangai (SCO, OCX) não é um mecanismo de geoeconomia. Mas é importante apreciar o que o presidente Xi Jinping disse no seu discurso de abertura no Conselho de Chefes de Estado da SCO na semana passada.
Esta é a citação chave de Xi: "Devemos apoiar firmemente os países membros no avanço tranquilo das principais agendas políticas internas de acordo com a lei; manter a segurança política e a estabilidade social, e opor-nos resolutamente às forças externas que interferem nos assuntos internos dos Estados membros sob qualquer pretexto".
Aparentemente, isto não tem nada a ver com a RCEP. Mas existem alguns cruzamentos: sem interferência de “forças externas”; Pequim levando em consideração as necessidades da vacina Covid-19 dos membros da SCO - o que poderá ser estendido à parceria RCEP. A SCO - bem como a RCEP - funcionando como uma plataforma multilateral para os Estados membros mediarem disputas.
Todos os pontos acima enumerados apontam para a intersecção de entidades e iniciativas como a Iniciativa Cintura e Estrada, a União Económica Euroasiática, a Organização de Cooperação de Xangai, a novíssima Parceria Económica Regional Abrangente, o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas (AIIB, BAIE) e os BRICS (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul), que poderá traduzir-se numa integração mais próxima da Ásia – e da Eurásia – dos pontos de vista geoeconómico e geopolítico. Enquanto os cães da distopia ladram, a caravana asiática - e euroasiática – continua a passar.