UM ENCONTRO QUE INCOMODOU OS DONOS DO MUNDO
2021-03-23
Pepe Escobar, Asia Times/O Lado Oculto
O primeiro encontro desde o século VII entre um Papa católico romano e um líder espiritual xiita, considerado este como uma “fonte de emulação”, foi um divisor de águas sob qualquer ponto de vista histórico. Será preciso que passe muito tempo para avaliar todas as implicações da imensamente intrigante conversa frente a frente de 50 minutos, apenas na presença de intérpretes, entre o Papa Francisco e o Grande Ayatollah Sistani na sua humilde casa situada num beco de Najaf, perto do deslumbrante santuário do Imã Ali.
Segundo um paralelo manifestamente imperfeito poderá dizer-se que, para a comunidade de fé xiita, Najaf está tão prenhe de significado como Jerusalém está para o cristianismo.
A versão oficial do Vaticano é que o Papa Francisco foi numa “peregrinação” cuidadosamente preparada ao Iraque sob o signo da “fraternidade” – não apenas em termos de geopolítica, mas como um escudo contra o sectarismo religioso, seja de sunitas contra xiitas ou de muçulmanos contra cristãos.
O Papa Francisco voltou ao tema principal da viagem num diálogo extremamente franco (em italiano) com os media no seu avião, durante o regresso a Roma. Mas o que é mais extraordinário é sua avaliação sincera do Ayatollah Sistani.
O Papa realçou: “O Ayatollah Sistani tem um ditado, espero recordá-lo correctamente: ‘Os homens ou são irmãos pela religião ou iguais pela criação'”. Francisco vê a transposição desta dualidade também como uma viagem cultural.
O Papa qualificou o encontro com Sistani como “uma mensagem universal” e elogiou o Grande Ayatollah como “um sábio” e “um homem de Deus”: “Ouvindo-o, não pode deixar de perceber-se. É uma pessoa que carrega sabedoria e também prudência. Disse-me que há mais de dez anos não recebe ‘pessoas que vêm para me visitar, mas que têm outros objectivos políticos'”.
Francisco: “foi muito respeitador, e eu me senti-me honrado, mesmo nas saudações finais. Ele nunca se levanta, mas fê-lo duas vezes para me saudar. Um homem humilde e sábio. Senti-me bem com minha alma neste encontro”.
O vislumbre da hospitalidade revelado por estas palavras esteve ausente da cobertura feita pelos grandes media ocidentais – os quais, em grande parte, tentaram manipular, sabotar, ignorar, ocultar ou mesmo sectarizar o encontro, geralmente sob camadas mal disfarçadas de propaganda da “ameaça xiita”.
Procederam desta maneira porque, no cerne da questão, Francisco e Sistani enviaram uma mensagem anti guerra, anti genocídio, anti sectária e anti ocupação, que não pode deixar de incorrer na ira dos suspeitos do costume.
Houve algumas tentativas frenéticas para retratar a reunião como uma demonstração de que o Papa, em relação ao universo xiita, privilegiou o tranquilo dignitário de Najaf sobre o militante de Qom – ou, por outras palavras, Sistani sobre o Ayatollah Khamenei do Irão. O que é um disparate.
O Papa escreveu recentemente ao Ayatollah Shirazi no Irã. Teerão mantém um embaixador no Vaticano e tem colaborado durante anos em protocolos de pesquisa científica. Esta peregrinação, no entanto, foi toda sobre o Iraque. Ao contrário dos meios de comunicação do Ocidente, os media do Eixo de Resistência (Irão, Iraque, Síria, Líbano) fizeram uma cobertura completa da viagem papal.
Uma fatwa crucial
Tenho tido o privilégio de acompanhar os movimentos do Ayatollah Sistani desde o início do século e visitei várias vezes a sua comunidade em Najaf.
Em 2003, quando o fantoche de serviço, Abu Musab al-Zarqawi, literalmente fez explodir o venerado Ayatollah Muhammad Baqir al-Hakim em frente ao santuário do Imã Ali, em Najaf, Sistani implorou para que não houvesse qualquer retaliação: A máquina de ocupação norte-americana era muito poderosa e Sistani viu os perigos da divisão e de uma guerra sectária sunita-xiita.
No entanto, em 2004 o Ayatollah Sistani fez frente, por si só, ao poderoso aparelho de ocupação e à terrível Autoridade Provisória da Coligação quando estavam a considerar promover um banho de sangue para fazerem desaparecer o clérigo rebelde Muqtada al-Sadr, então escondido em Najaf.
Em 2014, Sistani emitiu uma fatwa (decreto islâmico) conferindo legitimidade ao armamento de civis iraquianos para combater o Isis/Daesh – especialmente porque este grupo tinha como objetivo atacar os quádruplos e sagrados santuários xiitas no Iraque: Najaf, Karbala, Kazimiya e Samarra.
Desta maneira, foi Sistani quem legitimou o nascimento dos grupos defensivos armados que se uniram nas Unidades de Mobilização Popular (UMP’s), ou Hashd al-Shaabi, mais tarde incorporadas no Ministério da Defesa iraquiano.
As UMP’s eram – e continuam a ser – uma organização de protecção com alguma heterogeneidade, com alguns membros mais próximos de Teerão do que outros e trabalhando sob a supervisão estratégica do major general Qasem Soleimani até ao seu assassínio em 3 de Janeiro de 2020, através de um ataque norte-americano com drones contra o aeroporto de Bagdade.
Não terá sido um jardim de rosas
Apesar de toda a cortesia que existiu, o encontro entre o Papa e Sistani pode não ter sido o proverbial jardim de rosas. O meu colega Elijah Magnier, o mais informado jornalista sobre todos os aspectos do Eixo de Resistência, revelou alguns pormenores surpreendentes obtidos junto das suas fontes em Najaf:
“Sayyed Sistani recusou-se a ter seu próprio fotógrafo e não quis que qualquer clérigo xiita ou directores da sua comunidade estivessem presentes na Rua Al-Rasoul, onde ele recebeu Sua Santidade o Papa”. De acordo com fontes, o Vaticano “não emitiu qualquer declaração ou tomou qualquer posição explícita para reconhecer e saudar os xiitas que foram mortos quando resistiam ao Isis e defendiam os cristãos da Mesopotâmia. Assim, Sayyed Sistani não considerou necessário emitir um ‘documento conjunto’ como o Papa desejava e pretendia, e como fez em Abu Dhabi quando se reuniu com o Xeque de Al-Azhar”.
Magnier concentra-se correctamente no comunicado posterior emitido pelo departamento de Sistani – e especialmente nas negações nele contidas, cada uma das quais tem como alvo a potência hegemónica.
Sistani denuncia o “cerco às populações” – incluindo sanções; nega que os iraquianos queiram que as tropas norte-americanas continuem no país; quando denuncia a “violência”, está a referir-se aos bombardeamentos norte-americanos.
Além disso, quando declara “Não à injustiça” Sistani não se dirige apenas aos políticos em Bagdade - atolados em corrupção, sem prestar serviços básicos ou proporcionar oportunidades de emprego – mas também envolve a “linguagem de guerra” de Washington no Médio Oriente mais amplo, da Síria e do Irão à Palestina.
Fontes de Roma confirmaram que houve negociações durante meses com o objectivo de convencer Bagdade a normalizar as relações com Israel. Uma “mensagem” foi enviada através do Vaticano. Sistani respondeu com clareza que a normalização é impossível. O Vaticano continua perfeitamente calado.
Uma razão para isso é o facto de a declaração do gabinete de Sistani deixar claro que o Vaticano não está a fazer o suficiente para apoiar o Iraque. De acordo com a fonte de Najaf citada por Magnier, entre 2014 e 2017 “o Vaticano ficou em silêncio quando os xiitas perderam milhares de homens defendendo os cristãos (e outros iraquianos) e não receberam, desde então, qualquer atenção ou mesmo uma declaração explícita de reconhecimento do Papa”.
A declaração do gabinete de Sistani cita explicitamente a “despejos, guerras, actos de violência, bloqueios económicos e a ausência de justiça social a que o povo palestiniano está exposto, especialmente o povo palestiniano nos territórios ocupados”.
Tradução: o Iraque apoia a causa palestiniana.
Uma coroa de espinhos
A reunião do catolicismo com o islamismo xiita girou em torno de uma coroa de espinhos geopolítica. Tomemos, por exemplo, o facto de os porta-vozes ou subalternos de um presidente dos Estados Unidos católico, tal como os grandes media norte-americanos, demonizaram o inimigo do momento como “milícias apoiadas pelo Irão”, “milícias apoiadas pelos xiitas” ou “milícias xiitas associadas ao Irão”.
Isto é um absurdo. Como verifiquei ao contactar com Unidades de Mobilização Popular no Iraque em 2017, muitas delas integram brigadas constituídas não apenas por xiitas mas também por iraquianos de outras religiões. Por exemplo, há o Conselho de Estudiosos do Sagrado Ribat de Maomé; o Conselho de Combate do Pensamento Takfiri dos Sunitas de Fallujah e Anbar; e a Brigada Cristã da Caldeia, chefiada por Rayan al-Kildani, que foi apresentado ao Papa Francisco.
Para ser justo, na sua “peregrinação” o Papa Francisco condenou aqueles que instrumentalizam a religião para desencadear guerras – em benefício de Israel, dos negócios sauditas de petróleo, do império e de tudo o que atrás foi mencionado. Ele orou numa igreja destruída pelo Isis/Daesh.
Num gesto com significado, o Papa Francisco ofereceu um rosário a al-Kildani, o chefe da brigada babilónica das UMP’s. O Papa considera al-Kildani no mínimo como o salvador dos cristãos no Iraque. E, no entanto, al-Kildani é o único cristão do planeta incluído na lista de terroristas dos Estados Unidos.
Nunca é demais lembrar que as UMP’s foram o alvo do recente bombardeamento da responsabilidade de Biden-Harris em 25/26 de Fevereiro: os resistentes foram realmente bombardeados no Iraque, não em território sírio. O antigo comandante geral operacional das Unidades de Mobilização Popular era Abu al-Muhandis, que conheci em Bagdade no final de 2017. Foi assassinado ao lado do general iraniano Soleimani.
O Papa Francisco apenas teve condições para embarcar na sua peregrinação iraquiana devido aos Hashd al-Shaabi (UMP’s) – que foram absolutamente fundamentais, como actores da linha de frente para salvar o Iraque da divisão pelos takfiris e/ou da sua transformação num (falso) califado.
Francisco refez alguns dos passos do Profeta na sua peregrinação abraâmica, especialmente em Ur, na Babilónia; mas os ecos chegam muito mais longe, a al-Khalil (Hebron) na Palestina até à Síria moderna e à Jordânia.
Uma mera peregrinação não alterará a dureza da realidade na Mesopotâmia: 36% de desemprego (quase 50% entre os jovens); 30% da população vivendo na pobreza; a NATO prestes a reforçar posições; a potência hegemónica incapaz de se ir embora porque precisa deste império de bases entre o Mediterrâneo e o Oceano Índico; a corrupção política generalizada entre uma oligarquia entrincheirada.
Francisco insistiu em dizer que este era apenas um “primeiro passo”, além disso envolvendo “riscos”. O melhor que se pode esperar, tal como ficou expresso, é que o Papa e seu interlocutor “humilde e sábio” continuem a sublinhar que a estratégia de dividir para reinar, alimentando as chamas das disputas religiosas, étnicas e comunitárias, só beneficia – quem será? – os suspeitos do costume.