“SALVAÇÃO NACIONAL” À ITALIANA
2021-02-12
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
O laboratório político italiano, vocacionado como poucos para impôr fórmulas que mascaram a democracia em nome da democracia, ao serviço das elites económicas e financeiras nacionais e transnacionais, acaba de “solucionar” a crise política no país com mais um “governo de tecnocratas”. Desta feita, o duce é Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu e um conhecido agente do Goldman Sachs, o banco norte-americano que, segundo o seu presidente, desempenha “o papel de Deus na Terra”.
A União Europeia e os governos dos outros Estados membros parecem achar bem. Mário Draghi chega a primeiro-ministro de Itália sem ter participado em qualquer eleição, pronto a chefiar uma equipa cujos membros não representam qualquer organização política submetida ao sufrágio dos cidadãos. Um processo obviamente “iliberal”, mas que merece perdão automático de todos os institutos de policiamento democrático da União por resultar de uma genuína conspiração feita por gente de bem do neoliberalismo. Suspende-se a democracia para bem da democracia “liberal”.
No cenário em que a Europa vive actualmente, a Itália foi apenas mais expedida que outros parceiros, valendo-se da experiência que tem acumulado em governos tecnocratas, logo autocratas, durante os últimos 30 anos. Só a surdos ou distraídos poderão escapar os frequentes apelos feitos em países europeus – por cá também – para a criação de governos de “salvação nacional”, isto é, estendendo à política as medidas de excepção que têm vindo a ser impostas no todo social a propósito da pandemia. Um governo para “salvar Itália” foi, aliás, a motivação invocada a propósito da crise financeira iniciada em 2008 para implantar o governo de tecnocratas chefiado por Mario Monti, por sinal um outro agente do mesmo Goldman Sachs – igualmente membro da sombria organização global conspirativa designada Comissão Trilateral.
Portando, onde se lê “salvação nacional” deve ler-se salvação do neoliberalismo valendo tudo, até passar por cima do funcionamento das instituições democráticas.
Arquitecto da austeridade
Os italianos não precisarão de inteirar-se do conteúdo do programa do governo de tecnocratas dirigido por Draghi.
Já sabem o que os espera: mais austeridade, mais privatizações, mais cortes orçamentais, mais restrições de direitos cívicos e laborais, mais atentados contra os serviços públicos, tudo isto em cima do descalabro da economia provocado pela pandemia. Uma praga em cima de outra praga.
Depois de nos primeiros anos do século ter sido um dos operacionais da dissimulação da dívida soberana grega, ao serviço do Goldman Sachs, e antes de ser recompensado pelos seus serviços com o lugar de presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi foi um dos principais arquitectos da política de austeridade que se espalhou como uma peste pela generalidade da União Europeia mas com especial incidência na Grécia, em Portugal, Espanha e na própria Itália – com a transformação destes países, com ou sem troikas, em protectorados às ordens de Bruxelas e Berlim.
Como circunstância especialmente reveladora da idoneidade de Mario Draghi registe-se que depois de ter trabalhado para maquilhar a dívida soberana da Grécia foi o autor do memorando que devastou económica e socialmente este país, situação da qual ainda hoje não recuperou.
Na sequência das “soluções” neoliberais para supostamente combater a crise foram violentamente atacados os serviços públicos de saúde de alguns países da União Europeia. Em Portugal, o governo às ordens de um dos partidos que agora reclama a “salvação nacional” mandou emigrar os cidadãos; e assim se foram embora enfermeiros e outros técnicos de saúde que tanta falta fazem agora ao país e aos portugueses no combate à pandemia.
Em Itália – tal como noutros países - a austeridade idealizada à escala europeia por Mario Draghi minou de maneira profunda os serviços de saúde, o que ficou à vista nas incapacidades manifestadas principalmente durante os períodos agudos da pandemia. O mesmo Draghi vai agora tomar conta do país: a saúde das grandes empresas estará muito mais no radar das suas preocupações do que a saúde das pessoas. Cairão então sobre os italianos as consequências austeritárias da política de “ajustamento fiscal” e das eternas “reformas estruturais”.
Olho na “bazuca”
A crise política italiana que resultou da queda do segundo governo de Giuseppe Conte – uma coligação entre o Movimento Cinco Estrelas, o Partido Democrático e a minúscula mas influente Itália Viva – foi artificialmente provocada por este pequeno partido dirigido pelo manobrista corrupto Matteo Renzi.
Chamam a Renzi o “Tony Blair” italiano – paralelismo que nada tem de disparatado. Oriundo das áreas democratas-cristãs, tomou conta do Partido Democrático (PD), onde chegou a primeiro-ministro, para tentar descontaminá-lo de quaisquer resquícios de preocupações sociais porventura herdadas dos velhos partidos que lhe deram origem; acabou por provocar uma cisão de carácter fundamentalista neoliberal apadrinhada pelas grandes corporações nacionais e transnacionais – a Itália Viva que, segundo as sondagens, não vai além de três por cento das intenções de voto mas tem poderosa influência nas classes política e empresarial.
Renzi move-se muito bem nos areópagos neoliberais globalistas e ainda recentemente foi convidado para proferir uma conferência em Riade onde branqueou a imagem do criminoso de guerra Mohammed Bin Salman, principal responsável pela chacina praticada no Iémen pelas tropas da Arábia Saudita, com apoio de potências da NATO como os Estados Unidos, Reino Unido e França.
A crise no segundo governo de Giuseppe Conte foi aberta pelo Itália Viva depois de os principais partidos da coligação, Partido Democrático e Movimento Cinco Estrelas, darem indicações de continuar a opor-se à aplicação plena das principais exigências neoliberais contra uma população fortemente penalizada pela pandemia.
Um “governo de tecnocratas” chefiado por um expoente neoliberal com provas dadas como Mario Draghi surge assim como solução para que a governação italiana não se desvie do primado da “responsabilidade fiscal”, das “reformas estruturais” e de outras exigências contra o tecido social que são as linhas mestras da política emanada de Bruxelas, com ou sem pandemia.
Acresce que, neste momento, as grandes corporações italianas têm o apetite aguçado pela promessa de chegada de muito dinheiro fresco, pelo menos 200 mil milhões de euros do Fundo de Recuperação criado alegadamente para responder à pandemia. O manuseamento de tal fortuna por um governo guiado por “preocupações sociais”, ainda que ínfimas, seria um transtorno que os poderes efectivamente dominantes em Itália não podem tolerar. Então accionaram o sempre pronto Matteo Renzi e tiraram da manga o consagrado Draghi, tal como tinham feito com Mario Monti em 2009, Lamberto Dini em 1995 e Carlo Azeglio Ciampi em 1993. Enquanto os pequenos e médios negócios se afundam, os gigantes empresariais põem directamente as mãos na massa da famosa “bazuca”.
Ter governos de tecnocratas à mão é sempre uma medida a preceito para travar desvios à ortodoxia neoliberal, mesmo que isso implique a suspensão da democracia e a instauração da autocracia – afinal o regime ideal do capitalismo selvagem.
Não esqueçamos que Itália funciona há muito, desde os tempos da guerra fria, como um laboratório político ao serviço dos poderes imperiais, militares e das grandes corporações económicas e financeiras. Nem o terrorismo urbano escapou ao seu arsenal de medidas disponíveis.
O artifício tecnocrático para “salvar Itália” de uma crise política feita por medida é exportável, porque não causa inquietações em Bruxelas e pode ganhar espaço mais facilmente em tempos nos quais as excepções se vão transformando em regras.
Desconfiemos, pois, quando alguns políticos que têm o dinheiro e o lucro como pátria se assanham, à boleia da pandemia, na defesa de um "governo de salvação nacional”.