O MUNDO SEGUNDO JOE BIDEN
2020-10-22
Donald Trump ou Joe Biden? A escolha que resta aos norte-americanos é esta – dois ramos do mesmo partido único, imperialista e que defende, acima de tudo e custe o que custar, “a liderança dos Estados Unidos”. Trump, o fascismo sem máscara, o racismo, a misoginia, o fundamentalismo religioso sem disfarces, um neoliberalismo adequado ao nacionalismo ultramontano que faz parte da sua essência, o culto dos golpes e da guerra simulando recuos para consumo interno; Biden, o autoritarismo sorridente, o racismo cínico e envernizado, golpes onde for preciso, como o da Ucrânia, guerras a la carte, como a chacina da Líbia; o neoliberalismo globalista e expansionista ancorado num reforço da NATO. Eis a opção que resta aos norte-americanos, com impactos na vida de todos nós. Que venha o diabo e escolha.
Alexandre G. de B. Figueiredo*, A Terra é Redonda/Adaptação de O Lado Oculto
A pandemia de COVID-19 nos Estados Unidos, somada ao negacionismo de Donald Trump, já vinha a perturbar o que parecia ser uma provável reeleição. Trump minimizou o risco da doença, colocou-se contra medidas de isolamento social e viu, com isso, o seu país atingir a marca de sete milhões de infectados e mais de 200 mil mortes. A contaminação do próprio presidente lançou mais uma nuvem de incerteza sobre o resultado das eleições que estão à porta. Conforme as sondagens mais recentes, o candidato do Partido Democrata, Joe Biden, continua a ser o favorito.
Apesar disso, nos Estados Unidos alguns analistas fazem especulações semelhantes às que se fizeram em 2018 no Brasil, na altura do atentado pré-eleitoral contra Bolsonaro: Trump conseguiu transformar o facto de ter sido contaminado numa arma eleitoral eficaz? Ou, por outro lado, Biden sobe nas pesquisas porque um Trump contaminado é a materialização do fracasso de um governo de extrema-direita? São questões que terão respostas nas urnas no início de Novembro.
Por agora, a vantagem de Biden funciona como a expectativa de ter na Casa Branca alguém que não pratique o racismo, a misoginia, a xenofobia, a homofobia, a mentira e o ódio de maneira tão descarada. Contudo, em matéria de política externa, Joe Biden não promete nada que seja muito diferente de Trump nos pontos fulcrais da geopolítica contemporânea.
O candidato do Partido Democrata é um dos mais experientes políticos dos Estados Unidos em matéria de política externa e que esteve envolvido a fundo nas intervenções internacionais realizadas por administrações saídas do seu partido, de Bill Clinton a Obama, do esfacelamento da Jugoslávia ao martírio da Líbia e da Síria. Enquanto senador, ocupou durante anos um assento na poderosa Comissão de Relações Externas. Na vice-presidência do governo Obama foi também um destacado articulador na matéria, salientando-se o golpe na Ucrânia e o lançamento da guerra da NATO que ainda hoje destrói a Líbia. Aliás, a proximidade com as ideias de Hillary Clinton é tamanha que seus principais assessores para as relações internacionais são os mesmos que também a apoiaram.
A sombra de Jake Sullivan
Entre estes assessores, o principal é Jake Sullivan, conselheiro-chefe de Biden para as relações internacionais e que já fora também seu conselheiro sobre segurança nacional quando Biden ocupava a vice-presidência. Na hipótese de vitória democrata, Sullivan tende a ser o Conselheiro de Segurança Nacional ou mesmo o secretário de Estado. De qualquer maneira, trata-se de um ideólogo e uma voz a ouvir para perscrutar os caminhos da política externa de um eventual governo Biden.
Sullivan tem defendido uma visão “renovada” do excepcionalismo norte-americano, a ideia formadora segundo a qual os Estados Unidos seriam um caso único e, portanto, com a missão de exercer o papel de farol de valores para um mundo que não teria as mesmas condições de maturação política e democrática. Ora nada disto é diferente do comportamento assumido por Trump e, antes dele, Dick Cheney, o verdadeiro falcão do governo Bush Jr. Sullivan apressa-se a dizer que, na verdade, foram os republicanos (Trump, especialmente) que se apropriaram de uma ideia que não lhes pertence para, na prática, exercerem outra política.
O que isto quer dizer exactamente, ainda ninguém conseguiu explicar. Parece uma retórica um tanto vazia? A razão é que se trata exactamente disso. A campanha democrata revela que procura sensibilizar a classe média norte-americana com conceitos e visões populares, mas sem conteúdo. Sullivan já acusou os republicanos de praticarem um “unilateralismo predatório”. Contudo, a sua proposta de alternativa, repetida por Biden, também pode ser qualificada de “multilateralismo predatório”: reforçar a NATO, formar uma coligação de Estados para perseguir os inimigos apontados pelos Estados Unidos.
“Paz mundial” não é, certamente, um conceito que esteja na plataforma democrata apresentada.
“Liderar novamente”
O candidato Biden segue a mesma linha do seu assessor Sullivan. Em artigo no qual expôs a sua visão das relações dos Estados Unidos com o mundo, Biden invocou, desde o título, o gasto lugar-comum agressivo da “liderança norte-americana”. Para uma política externa pós-Trump, o candidato intitula o seu programa com a frase “porque a América deve liderar novamente”. De pronto, o texto defende que Trump teria corroído a liderança dos Estados Unidos, atacado amigos, encorajado inimigos, além de se ter afastado dos valores que dariam identidade ao país e legitimidade à sua presença ostensiva através do mundo.
Biden identifica um cenário difícil, no qual “o sistema internacional construído pelos Estados Unidos está a ruir”: avanço de autoritarismos, nacionalismos e políticas ditas antiliberais. Neste ponto, o único tema evocado num sentido supostamente “pacifista” é a defesa da tradição neoliberal que vê nas barreiras ao comércio internacional e no nacionalismo os embriões da guerra e dos atentados contra o globalismo. Prega que os EUA se envolvam na questão climática, defende uma revolução verde capitalista, investimentos em tecnologia e infraestruturas e outras propostas muito caras à mesma classe média a quem Jake Sullivan expõe, há anos, a sua visão do velho e tradicional “excepcionalismo”.
Vale a pena fazer novamente a pergunta: qual a real substância da proposta do Partido Democrata? Biden faz um apelo vago a alguns valores e noções antigas, sem objectividade. Obama fez o mesmo quando foi eleito e, inclusive, recebeu um Nobel da Paz para depois se tornar o presidente do maior orçamento militar da história da belicosa república do norte.
Quando os pés assentam no chão, porém, o cenário não é assim tão idílico.
As críticas de Biden a Trump por ter abandonado o acordo nuclear com o Irão e por ter ordenado o assassínio do general Qasem Soleimani, popular e eficaz comandante da força iraniana Al-Qods, soam mais a um regresso ao chamado “smartpower” da gestão de Hillary Clinton na Secretaria de Estado do que um apelo aos bons modos.
“Regresso” à NATO
Além disso, no que diz respeito às relações com a Rússia, o candidato democrata propõe o enfrentamento. Acusa o governo russo de crimes e diz que os Estados Unidos devem ampliar a atuação da NATO e voltar a estreitar os laços alegadamente afrouxados por Trump com os aliados europeus. Portanto, nada de diferente do que foi praticado por Washington desde o triunfalismo do pós-Guerra Fria: Biden projeta uma NATO ainda mais comprometida no cerco à Rússia. A consequência dessa política foi, como se sabe, a instabilidade no leste europeu e a procura (sensata) por Moscovo da defesa da sua segurança e soberania. Em bom rigor, as “acções” russas no tabuleiro geopolítico são, na verdade, reacções à expansão da NATO, contra a qual até mesmo Henry Kissinger lançou advertências.
Para a China, tampouco Biden e o seu assessor proferem palavras mais brandas do que as do actual governo. Em Maio deste ano, Sullivan imitou Pompeo e escreveu na Foreign Policy que a China tem um “projecto de dominação global”. No mesmo texto, em passagem sincera, confessa que sua preocupação é mais com um “desafio à liderança dos Estados Unidos”. O seu artigo leva à conclusão de que um Estado que cresça economicamente, invista em pesquisa e procure tratados de comércio com outros países estará, automaticamente, “desafiando a liderança norte-americana”.
Biden segue a mesma linha. Para o mais provável futuro presidente dos Estados Unidos, a China pretende estender sua influência usando para isso o investimento em alta tecnologia. Por fim, defende um enfrentamento ainda mais intenso que o promovido por Trump…
Há quem considere que uma vitória de Joe Biden seria uma boa notícia para um mundo no qual governos de várias potências têm deparado com a força dos piores preconceitos e de uma incivilidade latente, para não falar de políticas de “terra queimada”. Contudo, em relação às principais questões geopolíticas destes tempos, a receita apresentada até aqui por Joe Biden é a mesma: defender os interesses dos Estados Unidos colocando na defensiva qualquer país do mundo que ouse desenvolver-se. Apesar de toda a carga também simbólica de uma derrota de Trump, o regresso dos democratas não pode ser saudado como o aparecimento de emissários da paz em busca de um caminho aberto e democrático para o mundo.
*Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM-USP, Universidade de São Paulo).