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RÚSSIA TROCA AS VOLTAS ÀS SANÇÕES DE WASHINGTON CONTRA A SÍRIA

Lavrov e Borisov com o presidente sírio Bachar Assad

2020-10-02

Elijah J. Magnier, Dossier Sul/Adaptação O Lado Oculto

Na última semana de Setembro, a Rússia enviou uma significativa missão oficial a Damasco chefiada por “pesos pesados” como o representante do presidente Vladimir Putin, vice-primeiro-ministro Iuri Borisov, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, à frente de uma delegação económico-militar para preparar quarenta acordos com o governo sírio em todos os domínios importantes e que irão quebrar as sanções montadas pelos Estados Unidos e a União Europeia contra o país. Este passo é tanto mais importante porque surge como uma resposta ao agravamento das penalizações norte-americanas contidas na chamada “Lei César” e envia para Washington uma mensagem clara de que Moscovo não tenciona abandonar os seus aliados e os seus interesses no Médio Oriente. 

No Levante, e do ponto de vista militar, tanto forças norte-americanas como russas estão presentes em áreas territoriais limitadas, mas com objectivos, interesses e razões diferentes. A Rússia defende a unidade territorial da Síria e pretende instaurar uma estabilidade a longo prazo que sirva também de exemplo para outras nações da região e não só.

Este objectivo não é fácil de alcançar porque os Estados Unidos operam através das suas tropas e do apoio a grupos islamitas armados interferindo no fluxo de alimentos, de petróleo e gás principalmente numa área que é considerada como o reservatório de recursos de todo o país. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, proclamou mais de uma vez a sua intenção de retirar as tropas norte-americanas, mas os interesses dos sectores petrolíferos e de Israel acabaram por prevalecer. O desejo incontido de Israel é manter e agravar a guerra contra o Irão, o Hezbollah e o governo de Bachar Assad para que estes sectores deixem a Síria ou, no mínimo, sejam contidos.

A insistência na carta curda

Além disso, os Estados Unidos continuam a manipular grupos armados de predominância curda para dividir a Síria através da imposição de um semi-Estado no Nordeste do país. Entidades curdas estão a alterar os programas escolares nas províncias de Al-Hasakah e Deir-Ezzor, onde os grupos armados curdos operam sob comando militar dos Estados Unidos. Forças curdas assumiram o controlo de mais de cem escolas e obrigam os alunos de outras origens étnicas a aprender em curdo; os livros escolares foram substituídos e não correspondem ao currículo escolar oficial sírio.

Acresce que os Estados Unidos estão a entregar a países aliados árabes da região o treino de tribos árabes ainda presentes em regiões de maioria curda, tentando atenuar a dissonância existente entre as populações. Com ajuda de oficiais dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita, os Estados Unidos pretendem criar uma espécie de “despertar” sírio que seja, obviamente, leal a Washington.

Esta experiência teve algum êxito o Iraque mas, na realidade, só protege as forças de ocupação norte-americanas desde que as tribos “despertadas” recebam regularmente os seus salários. Se houver quebra de financiamento estas tribos regressarão rapidamente à órbita do Estado, o mesmo acontecendo se as tropas norte-americanas saírem.

Os curdos tentam desafiar a Turquia cortando a energia eléctrica (servindo-se do facto de a barragem de Assad se situar em regiões curdas) nas áreas ocupadas pelos soldados de Ancara no Noroeste da Síria. Como retaliação, a Turquia cortou a água aos curdos durante algum tempo, até que as forças russas intervieram para restaurar a normalidade em ambos os lados. Embora existam entendimentos entre a Turquia e a Rússia, Damasco continua a considerar o expansionista lado turco como inimigo e, por isso, tem vindo a aproximar-se dos Emirados e da Arábia Saudita. O Irão coopera com a Turquia em áreas estratégicas, mas opõe-se à presença de forças militares turcas na Síria. Cada país envolvido no Levante tem interesses próprios que podem ser incompatíveis com os da Síria, o que torna os relacionamentos regionais bastante flexíveis.

A aposta de Washington na libanização

Os Estados Unidos começaram já as operações de sabotagem das próximas eleições presidenciais sírias tentando impedir que os desalojados internos e os refugiados sírios na Turquia, no Líbano e na Jordânia regressem às suas zonas de origem. Washington iniciou a campanha internacional para que as eleições presidenciais sírias sejam consideradas inconstitucionais e ilegais. Damasco tem outros planos soberanos, a data eleitoral de Junho de 2021 não será alterada e as votações serão realizadas no tempo próprio, quer os Estados Unidos reconheçam ou não os resultados.

Os antagonismos não ficam por aqui. Washington pretende que a Constituição da Síria seja alterada no sentido da “libanização” (sistema étnico-confessional) ou da “iraquisação” (divisão regional étnica e religiosa). Damasco recusa-se a seguir qualquer desses caminhos e a fazer uma reestruturação do sistema político de acordo com influências regionais étnicas e religiosos. Regime secular e inclusivo, sem atender a critérios étnicos e religiosos, a Síria recusa-se a seguir experiências, como a libanesa e a do Iraque, que redundaram em fracassos históricos e em conflitos que continuam sem solução à vista.

O primeiro enviado da ONU à Síria, Lakhdar Brahimi, e o seu sucessor, Staffan de Mistura, influenciados pelos Estados Unidos e por potências da União Europeia, chegaram mesmo a defender as mudanças para sistemas ingovernáveis como os do Líbano e do Iraque, mas sem êxito. Não surpreende, portanto, que as reuniões entre representantes governamentais de Damasco e dirigentes da oposição síria para reescrever ou emendar a Constituição, a decorrer sob auspícios da ONU e da Rússia, se tenham tornado muito mais viáveis. Na realidade, a oposição síria, parte da qual perdeu a guerra que se estende há nove anos, percebeu que deixou de estar em posição de impor condições e optou negociar no sentido de elaborar uma Constituição aceitável por todas as partes. Por isso não existe um prazo para que seja atingido um acordo sobre a Lei Fundamental, podendo as conversações continuar mesmo depois das eleições presidenciais de Junho.

A questão terrorista

A Rússia está interessada no desfecho do processo constitucional para possa agir de maneira mais consolidada pela saída das tropas turcas, um processo que se tornará mais natural quando as tropas norte-americanas se retirarem. A presença turca representa um desafio para os separatistas curdos e um pretexto para a sua acção, pelo que qualquer movimentação com carácter definitivo apenas se tornará viável quando terminarem as discussões constitucionais e as principais partes envolvidas cheguem a um consenso que permita o regresso dos refugiados que desejem fazê-lo.

Permanece entretanto o problema da ocupação da região de Idleb pelos terroristas islâmicos associados à al-Qaida e Estado Islâmico, com suporte dos Estados Unidos e potências da União Europeia. Os grupos armados tentam fundir-se com a população, mas a sua retirada ou eliminação continua a ser uma prioridade para o governo de Damasco e a Rússia. Uma vez aprovada uma Constituição adequada à nova situação, deixará de fazer sentido que as forças militares turcas protejam esses jihadistas e estes se mantenham na Síria, uma vez que foram quase na totalidade recrutados no estrangeiro. Com a libertação do derradeiro bastião terrorista, as tropas sírias poderão então concentrar-se nas forças de ocupação norte-americanas instaladas no Nordeste do país e que, entre outras actividades, se dedicam à cobertura do roubo das riquezas petrolíferas.

Moscovo aposta a longo prazo

A estabilidade na Síria é fundamental para o retorno dos investimentos em projectos e infraestruturas que a Rússia está a desenvolver com Damasco e dos quais tratou agora a delegação de alto nível enviada por Moscovo. Para conquistar essa estabilidade é essencial dissolver tanto quanto possível os efeitos das sanções impostas pelos Estados Unidos e a União Europeia, seja quais forem as suas dimensões, outro objectivo abordado pela delegação russa em Damasco.

A Rússia conseguiu concretizar um processo harmónico de integração militar entre as tropas regulares sírias e as forças suas aliadas. Actualmente, Moscovo avança para a dinamização da integração económica ainda que permaneçam diferenças entre a Rússia, aliados e o próprio governo de Damasco. Trata-se, porém, de diferenças identificadas, organizadas e aceites e com as quais coexistem todas as partes operando no Levante.

Há poucas dúvidas, no cenário internacional, quanto à confluência de Israel e da Rússia em muitos e delicados temas. No entanto, o golpe que Moscovo está a dar na “Lei César” norte-americana e nas sanções que implica é, sem dúvida, um contratempo grave para Israel, que aposta na queda do governo de Damasco e na divisão da Síria. Por isso mesmo, o envio desta importante delegação russa a Damasco é também uma poderosa mensagem económica que não favorece os sonhos de Israel no Levante. Perante a importância que a Rússia atribui à sua presença militar e económica na Síria e no Mediterrâneo, as relações entre Moscovo e o Estado hebraico estão em segundo plano.




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