O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

O Lado Oculto é uma publicação livre e independente. As opiniões manifestadas pelos colaboradores não vinculam os membros do Colectivo Redactorial, entidade que define a linha informativa.

Assinar

WASHINGTON LANÇA PLANOS DE GOLPE NA NICARÁGUA

Mike Pompeo, secretário de Estado e responsável directo pelo golpe; na sombra John Barsa, o neofascista que chefia de facto a USAID

2020-08-18

Ben Norton*, The Grayzone/O Lado Oculto

Um novo documento inquietante que aqui se revela traça os planos para um esquema de mudança de regime dos Estados Unidos contra o governo de esquerda eleito da Nicarágua, supervisionado pela USAID, a fim de implantar uma "economia de mercado", impor a repressão e expulsão dos sandinistas e instaurar a selva neoliberal. Os projectos escondem-se sob os habituais sofismas da “ajuda humanitária” e da “transição para a democracia”. Segundo os cenários elaborados, até uma “grande crise sanitária” pode ajudar ao golpe.

Um documento recentemente divulgado expõe uma operação do governo dos Estados Unidos para derrubar o governo socialista democraticamente eleito na Nicarágua.

A trama é dirigida pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), um instrumento de mudança de regime que utiliza a pretensão de "ajuda humanitária" para fazer avançar os interesses agressivos de Washington em matéria de política externa.

O documento detalha a criação de uma nova "ordem de trabalhos" designada Assistência Responsável na Nicarágua (RAIN) e o respectivo plano para "a transição da Nicarágua para a democracia" - um eufemismo para retirar do poder a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).

No documento, a agência governamental norte-americana usa uma retórica neoconservadora de linha dura, referindo-se ao governo eleito da Nicarágua como o "regime Ortega" e deixando claro que Washington quer instalar uma administração neoliberal que irá privatizar a economia, impor reformas neoliberais e expurgar todas as instituições de qualquer vestígio do movimento sandinista.

O esquema de mudança de regime da USAID afirma abertamente que um dos principais "objetivos da missão" é a "transição para uma economia baseada nas regras de mercado" e a "proteção dos direitos de propriedade privada" na Nicarágua.

O documento conclui apelando ao futuro regime instalado pelos EUA na Nicarágua para "reconstruir instituições" e "restabelecer" os militares e a polícia; para "desmantelar instituições paralelas" que apoiam a Frente Sandinista; e para perseguir os líderes da FSLN através de "medidas de justiça transitórias" - por outras palavras, uma purga completa do movimento sandinista para impedir que este volte ao poder.

Como se não fosse suficientemente explícito que o objetivo de Washington é a mudança de regime, o documento de 14 páginas da USAID emprega a palavra "transição" 102 vezes, nove das quais só na primeira página.

“Transição sem eleições”

A USAID declara a sua intenção de ajudar no que poderia ser uma "transição ordeira" ou uma "transição repentina sem eleições", que é um alusão clara ao golpe. Ao mesmo tempo reconhece que a oposição de direita da Nicarágua está dividida e tem poucas hipóteses de ganhar as próximas eleições nacionais de 2021.


Em 2018, a administração Donald Trump apoiou uma violenta tentativa de golpe na Nicarágua, na qual bandos de extrema-direita tomaram conta de bairros e paralisaram o país com barricadas sangrentas conhecidas como "tranques". Os terroristas apoiados pelos Estados Unidos desencadearam um reinado de terror, matando e ferindo centenas de activistas sandinistas e forças de segurança do Estado; marcando as casas dos activistas de esquerda, pilhando e incendiando algumas; e torturando e ameaçando os que apoiavam o governo eleito.

Quando a tentativa de golpe de Estado de 2018 falhou, o governo dos EUA recorreu a uma série de tácticas agressivas para derrubar a liderança da Nicarágua. Nos últimos dois anos, a administração Trump impôs várias sanções sufocantes à pequena nação centro-americana, frequentemente com apoio bipartidário no Congresso; não se ouviu uma palavra de oposição do Partido Democrata e escutaram-se aplausos da indústria dos direitos humanos, financiada por bilionários.

A Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA foi fundamental nas violentas tentativas de golpe de Estado dos EUA contra o governo eleito da Venezuela em 2019, trabalhando directamente com o Departamento da Defesa (Pentágono). A USAID tem injectado centenas de milhões de dólares no financiamento dos esforços norte-americanos de mudança de regime em Caracas e financia o regime golpista de Juan Guaidó, apoiado por Trump.

A USAID sempre funcionou como um braço da CIA orientado na vertente de poder brando de Washington. Mas sob a administração do Trump deu um impulso aos seus esforços golpistas na América Latina.

Com apoio do LinkedIn

Em Abril de 2020, a USAID foi assumida pelo director de facto John Barsa, um homem de negócios da linha dura republicana, aliado de Trump e filho de imigrantes cubanos anticomunistas. Em coordenação com o Secretário de Estado e antigo director da CIA Mike Pompeo, Barsa transformou a USAID numa arma contundente de mudança de regime, financiando abertamente esforços de golpe contra os governos socialistas de Cuba, Venezuela, e Nicarágua.

O website Grayzone contactou a USAID para pedir a confirmação da autenticidade do documento que detalha os seus planos para uma "transição" política na Nicarágua. A agência não respondeu.

Conseguimos, contudo, reunir provas que demonstram a legitimidade do documento. Para começar, os metadados no arquivo PDF mostram que o autor original foi a divisão de formulários da General Services Administration (GSA) do governo dos EUA, que supervisiona a logística para a USAID e outras agências.


Ainda mais convincente é o facto de as páginas que explicitam o plano de mudança de regime empregarem precisamente a mesma linguagem e frases de uma lista de empregos que foi publicada em finais de Julho por outra organização financiada pelo governo dos EUA, a Democracy International. Na verdade, o documento da USAID parece ser uma descrição mais detalhada do cargo para este fim.

A Democracy International anunciou na sua listagem no LinkedIn que procura um cidadão nacional nicaraguense da capital Manágua para trabalhar como "Especialista Técnico de Nível Superior - Democracia, Direitos Humanos e Governança para prestar apoio técnico e programático à Ordem de Trabalhos de Assistência Responsável da USAID/Nicarágua (RAIN) na Nicarágua".

Ecoando o documento da USAID, a lista de actividades da Democracy International afirma que "o objetivo da Ordem de Trabalhos é fornecer assistência técnica e analítica rápida, reactiva e relevante que faça a ponte entre os esforços da USAID/Nicarágua para criar as condições e apoiar uma transição pacífica para a democracia na Nicarágua".

Este funcionário ajudaria a desenvolver um "Plano de Resposta à Transição" - um esquema de mudança de regime. (A breve listagem de empregos utiliza o termo "transição" 10 vezes).


Durante a guerra fria, empregos de coordenação de golpes como estes teriam sido postos de trabalho encobertos organizados e colaboração com a CIA. No entanto, no século XXI, este trabalho sujo de mudança de regime é realizado em campo aberto e anunciado publicamente no LinkedIn.

“Golpe de Estado, Inc.”

Caso não estivesse clara a relação desta organização com a USAID, declara-se textualmente na exposição do posto de trabalho: "Democracy International, Inc. fornece assistência técnica, serviços analíticos e implementação de projectos para a democracia, direitos humanos, governança e programas de atenuação de conflitos em todo o mundo para a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o Departamento de Estado dos EUA e outros parceiros de desenvolvimento".

A lista de actividades menciona explicitamente que o funcionário trabalhará com o governo dos EUA para fornecer "aconselhamento técnico e conhecimento aos ministérios do GON (governo da Nicarágua), ao USG (governo dos EUA), e outras partes interessadas".

Claramente, a Democracy International está à procura de uma pessoa local para ajudar a levar a cabo os esforços de mudança de regime de Washington a partir de dentro. O documento da USAID expõe em pormenor a estratégia específica de desestabilização a seguir.

O Grayzone ligou para os escritórios da Democracy International com um pedido de comentários sobre a lista de empregos do LinkedIn, o programa RAIN e o documento da USAID. Um(a) secretário(a) não nos deixou falar com um membro específico da equipa internacional, dizendo simplesmente: "Informaremos os responsáveis que recebemos uma chamada, transmitimos o seu nome e número e eles ligar-lhe-ão".

O (A) secretário(a) perguntou se o Grayzone tinha uma pergunta específica a fazer. Dissemos: "Os meios de comunicação locais da Nicarágua criticaram o programa RAIN da USAID que é descrito no anúncio de emprego da Democracy International e caracterizam-no como o que parece ser uma tentativa para orquestrar um golpe de Estado no país. Pode responder a esta caracterização e acha que ela é justa ou injusta"? O funcionário da Democracy International respondeu: "Uau, isso é muito interessante. Vou sem dúvida dizer que telefonou".

A Democracy International nunca telefonou de volta.

Privatizações em massa e programas a longo prazo

O plano de Assistência Responsável da USAID na Nicarágua (RAIN) deixa claro que é apenas uma "ponte a curto prazo" para provocar mudanças de regime no país, acrescentando: "É intenção da USAID seguir o RAIN com programas a longo prazo, que serão determinados à medida que a crise evoluir".

O plano de mudança de regime delineou um "Objectivo Missão 2" no qual "a Nicarágua fornece a base para o crescimento económico futuro e o aumento do comércio através da transição para uma economia de mercado baseada em instituições reguladoras transparentes e responsáveis, estabilidade fiscal e monetária, respeito pelo Estado de direito e protecção dos direitos de propriedade privada".

Um "objetivo da missão" suplementar destaca o desejo da USAID de instaurar um novo regime neoliberal na Nicarágua que "trabalhe com o sector privado para reconstruir a institucionalidade e uma burocracia administrativa eficiente e justa" - por outras palavras, a privatização em massa.

(Entre os supostos crimes cometidos pelo "regime" nicaraguense, a USAID enumera o "confisco de propriedades").


O documento da USAID traça outras prioridades dos Estados Unidos para a Nicarágua, na sequência de uma operação de mudança de regime bem sucedida.

O "Objetivo Missão 3" da USAID seria "Reforma da segurança e reconstrução das instituições" para "restabelecer forças de segurança independentes e profissionais". Este é claramente um apelo ao afastamento dos sandinistas da polícia e dos militares e à importação de instrutores norte-americanos para estabelecer uma força de segurança de estilo neocolonial, tal como o general Keith Dayton fez na Cisjordânia ocupada após a extinção da resistência palestiniana na sequência do Segundo Intifada.

O "novo governo tem de agir rapidamente para desmantelar instituições paralelas", acrescenta a USAID. Esta é uma pista indirecta de que Washington procura destruir a Frente Sandinista, a Juventude Sandinista e outras instituições de base que trabalham com a gestão mas são independentes do actual governo socialista. Segundo um olhar mais agudo, tal proposta poderá equivaler à eliminação da esquerda na Nicarágua ao estilo Augusto Pinochet.

"Além disso, terá de implementar medidas de justiça transitórias", acrescenta o documento da USAID. Esta linguagem, que também tem sido utilizada na guerra por procuração na Síria, sugere que o novo governo neoliberal da Nicarágua seria obrigado a processar os funcionários da Frente Sandinista, fazendo eco da estratégia que os regimes de direita apoiados pelos EUA na Bolívia e no Equador têm utilizado para criminalizar os partidos de esquerda que anteriormente governavam esses países, caçar antigos líderes de esquerda e lançar funcionários da oposição na prisão com base em acusações duvidosas.

Outra parte importante do trabalho da RAIN incluiria o recrutamento de coordenadores golpistas nacionais para ajudar a realizar o plano de mudança de regime. A USAID descreveu esta responsabilidade da seguinte forma: "Identificação de potenciais parceiros nicaraguenses para subvenções de impacto rápido da Ordem de Trabalhos para promover atividades relacionadas com a transição".

A iniciativa atribui 540 mil dólares em subvenções para atrair grupos de oposição nicaraguenses de modo a ajudar no esforço de mudança de regime. (No segundo país mais pobre do hemisfério ocidental, onde o salário mínimo está entre 200 e 300 dólares por mês, meio milhão de dólares não é uma soma pequena).

Estes fundos iriam complementar os milhões de dólares que a USAID e o NED fornecem anualmente às organizações de direita nicaraguenses.

O documento da USAID insiste em que "o futuro imediato da Nicarágua permanece altamente incerto". No entanto, reconhece que a oposição de direita está dividida e é impopular, admitindo que a sua liderança não "se uniu em torno de um partido ou candidato".

Três cenários de golpe

Tendo em conta a fragilidade da oposição perante as eleições nacionais de 2021, o plano da USAID esboça três cenários para a queda do governo socialista e uma "transição" para um regime neoliberal amigo dos EUA.

O primeiro é um "Cenário de Transição Ordenada", uma situação rebuscada em que um grupo de oposição impopular apoiado pelos EUA consegue de alguma forma ganhar as eleições.

O segundo cenário potencial de mudança de regime é descrito como uma "Transição Súbita e Inesperada" em "que uma ou mais crises políticas, tais como uma eleição rápida ou fracassada, uma renúncia presidencial, uma grande crise sanitária, uma grande catástrofe natural ou conflitos internos conduzam a uma súbita crise de regime e transição para um governo interino ou um novo governo". Esta é a opção do golpe, e a USAID deixa claro que ficaria mais do que satisfeita com tal situação; por isso pretende que os seus vínculos à RAIN se preparem para ela.

O terceiro é um "Cenário de Transição Retardada", em que o governo sandinista permanece no poder. Neste caso, a USAID diz que a RAIN ajudaria a desestabilizar o governo de outras formas e a conduzir a uma mudança de regime no futuro.


A USAID, porém, não quer que os leitores fiquem com a impressão errada. Destaca no documento que seu golpe seria “sensível à conformidade com as questões de género” e baseado em “trabalho analítico informado por género”. (Mesmo que as mulheres que constituem o grosso da base sandinista tenham de ser excluídas da "transição" política determinada por Washington).

O documento da USAID equilibrou a sua linguagem liberal sobre o género com a retórica neoconservadora afirmando, por exemplo, que "influências estrangeiras malignas, principalmente Cuba, Venezuela e Rússia, continuarão a tentar reforçar o regime autocrático corrupto de Ortega".

"E se a Nicarágua fizesse isto nos Estados Unidos"?

A existência do documento de mudança de regime da USAID foi relatada pela primeira vez em 31 de Julho no popular programa de rádio e vídeo nicaraguense Sin Fronteras, apresentado por William Grigsby Vado.

Grigsby, uma personalidade de esquerda proeminente dos meios de comunicação social com um grande número de seguidores na base da Frente Sandinista, condenou a conspiração dos EUA. "É nauseante, o documento; é difícil lê-lo", disse com indignação. "É preciso ter um fígado forte para o suportar. Dói muito".

"Que direito tem o governo dos EUA de contratar uma empresa para subverter a ordem pública em qualquer país?" pergunta Grigsby. "É uma intervenção sem vergonha. Neste caso, estão a subverter a ordem pública e financiando actividades da oposição política. Isto é inaceitável"!

"E se a Nicarágua fizesse isso nos Estados Unidos, se por exemplo Daniel Ortega dissesse 'Ei, vamos ajudar os manifestantes em Portland'"? acrescentou. "Mas eles reservam-se o direito de agir contra a institucionalidade democrática de um país".

Grigsby concluiu condenando o "imperialismo ianque" e zurzindo em figuras da oposição nicaraguense que participam neste esquema de mudança de regime.

"Todos vocês podem fazer uma de duas coisas", desafiou em direcção à oposição. "Sigam as regras da democracia, aceitem a derrota e participem no jogo político. Ou podem simplesmente continuar a ser pistoleiros e traidores".

O documento da USAID mostra que Washington continua a forçar esta última opção, conduzindo o país para um profundo conflito.

*Jornalista, escritor e cineasta. É editor assistente de The Grayzone e produtor do podcast Moderate Rebels, em parceria com o editor Max Blumenthal.


fechar
goto top