O QUE O LÍBANO GANHA EM OLHAR PARA LESTE
2020-08-15
Depois de grandiloquentes declarações de solidariedade, logo ecoadas pela comunicação do regime global, as “doações” destinadas ao Líbano sob o patrocínio da França, da ONU e da União Europeia não passaram de 250 milhões de dólares, uma gota de água no vastíssimo mar de promessas - e ainda submetidas às “reformas reestruturais” do costume. No entanto, os 15 mil milhões de dólares envolvidos na reconstrução do porto de Beirute parecem ser “trocos” para empresas chinesas possuidoras do plano A para restauração e modernização das infraestruturas desenvolvimentistas e produtivas do país. O Líbano está numa encruzilhada: mais da mesma degradação sob o mito neoliberal da “Paris do Oriente”; ou virar-se para Leste, ao reencontro da história, da cultura e de uma via de desenvolvimento independente.
Pepe Escobar, Asia Times/O Lado Oculto
Por muito que a COVID-19 esteja a ser instrumentalizada pelos 0,001% que dominam o mundo para lançar o chamado “The Great Reset”, o Grande Reinício, a tragédia de Beirute já está a ser usada pelos suspeitos do costume para manter o Líbano escravizado.
Perante "protestos" oportunos, bem ao estilo das revoluções coloridas instrumentalizadas pelos Estados Unidos, o actual governo libanês liderado pelo primeiro-ministro Diab renunciou. Mesmo antes da tragédia portuária, Beirute tinha solicitado ao FMI uma linha de crédito de 10 mil milhões de dólares - negada enquanto as "reformas" do consenso neoliberal de Washington não forem implementadas: cortes radicais nas despesas públicas, despedimentos em massa, privatizações generalizadas.
Após a tragédia, o presidente francês Emmanuel Macron – que nem sequer é capaz de estabelecer um diálogo com os Coletes Amarelos - avançou de forma oportunista, em modo totalmente neocolonial, para se fazer passar por "salvador" do Líbano desde que as mesmas "reformas", claro, sejam implementadas.
No domingo 9 de Agosto a França e a ONU organizaram uma videoconferência para coordenar a resposta dos doadores - em conjunto com a Comissão Europeia (CE), o FMI e o Banco Mundial. O resultado não foi exactamente brilhante: foram prometidos 252 milhões de euros - mais uma vez condicionados por "reformas institucionais".
A França entrou com 30 milhões de euros, o Koweit com 40 milhões, o Qatar com 50 milhões e a CE com 68 milhões. Significativamente, nem a Rússia nem o Irão se encontravam entre os doadores. Os Estados Unidos - que sancionam duramente o Líbano - e os aliados do Conselho de Cooperação do Golfo, Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, não se comprometeram com nada. A China teve apenas uma presença formal.
Paralelamente, os cristãos maronitas no Brasil - uma comunidade muito poderosa - enviam fundos para os protestos da revolução colorida. O ex-presidente Michel Temer e o magnata industrial Paulo Skaf chegaram inclusivamente a voar para Beirute. O ex-presidente libanês Amin Gemayel (1982-1988) manteve muitos negócios no Brasil com fundos que desviou quando esteve no poder.
Tudo isto aponta para um neoliberalismo que não faz prisioneiros quando se trata de manter o seu poder mortal sobre o Líbano.
O modelo Hariri
A profunda crise económica do Líbano, agora agravada pela explosão no porto de Beirute, nada tem a ver com a COVID-19 ou com a guerra por procuração dos Estados Unidos contra a Síria - que trouxe um milhão de refugiados para a nação. É tudo uma questão do choque e pavor proverbial neoliberal, conduzido ininterruptamente pelo clã Hariri: antigos primeiros-ministros Rafiq, assassinado em 2011, e Saad, expulso do poder em Janeiro passado.
O modelo Hariri concentrou-se na especulação imobiliária e na financeirização. O grupo Solidere, controlado por investidores árabes e alguns libaneses, incluindo Hariri, destruiu o centro histórico de Beirute e reconstruiu-o com bens imobiliários de luxo. Este é o modelo clássico do neoliberalismo rentista que beneficia sempre uma pequena elite.
Paralelamente, o Banco do Líbano atraiu fundos da diáspora libanesa e investidores árabes variados, praticando taxas de juro muito generosas. De repente, o Líbano tinha uma moeda artificialmente forte.
Uma pequena classe média floresceu ao longo dos anos 2000, incluindo comerciantes de importação e exportação, o sector do turismo e operadores do mercado financeiro. No entanto, globalmente, a desigualdade foi o nome do jogo. De acordo com a Base de Dados sobre a Desigualdade Mundial, metade da população do Líbano detém agora menos riqueza do que os 0,1% do topo.
A bolha explodiu finalmente em Setembro do ano passado, quando por acaso me encontrava em Beirute. Sem dólares norte-americanos em circulação, a libra libanesa começou a entrar em colapso no mercado negro. O Banco do Líbano entrou em frenesi. Quando Hariri instituiu um "imposto Whatsapp" sobre as chamadas levantaram-se protestos massivos em Outubro. O capital embarcou em voo livre e a moeda desabou de vez.
Não há absolutamente nenhuma prova de que o FMI, o Banco Mundial e diversos "doadores" ocidentais/árabes possam libertar um Líbano agora devastado por essa lógica neoliberal que o mergulhou numa crise sistémica.
A saída seria focar em investimentos produtivos, longe das finanças e orientados para as necessidades práticas de uma população completamente empobrecida e devastada pela austeridade.
Mas Macron, o FMI e os seus "parceiros" só estão interessados em manter a "estabilidade" monetária; seduzir o capital estrangeiro especulativo; assegurar que a oligarquia libanesa predatória e ligada ao Ocidente escape do assassinato; e, além disso, comprar dezenas de bens libaneses pelo valor de amendoins.
Rota da Seda ou nada
Em contraste com a perpetuação exploradora do modelo neoliberal ocidental, a China oferece ao Líbano a oportunidade de ir para o Leste e de fazer parte das Novas Rotas da Seda.
Em 2017, o Líbano assinou a adesão à Iniciativa Cintura e Estrada (ICE ou BRI em inglês).
Em 2018, o Líbano tornou-se o 87º membro do Banco de Investimento em Infraestruturas Asiáticas (AIIB).
Durante os últimos anos, o Líbano já participou na internacionalização do yuan, oferecendo contas bancárias em moeda chinesa e aumentando o comércio bilateral nessa moeda.
Pequim já estava envolvida em discussões em torno da modernização das infraestruturas libanesas - incluindo a expansão do porto de Beirute.
Isto significa que agora Pequim pode estar na posição de oferecer um acordo renovado e conjunto de reconstrução/segurança para o porto de Beirute - tal como estava prestes a fechar um acordo menor com o governo de Diab, centrado apenas na expansão e renovação da infraestrutura.
O resultado final é que a China tem um verdadeiro Plano A para retirar o Líbano do seu actual beco sem saída financeiro.
E exactamente isso foi, e continua a ser, um anátema total para os interesses dos Estados Unidos, da NATO e de Israel.
A administração Trump não se deteve perante quaisquer limites para impedir Israel de ter a China a desenvolver o porto de Haifa.
A mesma táctica da "oferta que não se pode recusar" será aplicada com toda a força a quem quer que lidere o novo governo libanês.
Beirute é um nó absolutamente fundamental na conectividade geopolítica/geoeconómica da ICE no Mediterrâneo Oriental. Com Haifa temporariamente fora de cena, Beirute cresce em importância como porta de entrada para a União Europeia, complementando o papel do Pireu e dos portos italianos no Adriático.
É crucial notar que o porto de Beirute em si não foi destruído. A enorme cratera no local substitui apenas uma secção de cais. Os edifícios destruídos podem ser reconstruídos em tempo recorde. A reconstrução do porto está calculada em 15 mil milhões de dólares - dinheiro de bolso para uma empresa experiente como a China Harbor.
Entretanto, o tráfego naval está a ser redireccionado para o porto de Tripoli, 80 quilómetros a norte de Beirute e apenas a 30 quilómetros da fronteira entre o Líbano e a Síria. O seu director, Ahmed Tamer, confirma que "o porto testemunhou durante os últimos anos o trabalho de expansão das empresas chinesas e recebeu os maiores navios da China transportando um grande número de contentores".
Acrescente-se a isto o facto de o porto de Tripoli ser também essencial no processo de reconstrução da Síria - com o qual a China está totalmente comprometida.
A rede de conectividade do Sudoeste Asiático da Iniciativa Cintura e Estrada é um labirinto que inclui o Irão, Iraque, Síria e Líbano.
A China já planeia investir em autoestradas e ferrovias a serem transformadas em sistemas de alta velocidade. Isso ligará o corredor central China-Irão da ICE - recém-saído do acordo de parceria estratégica no valor de 400 mil milhões de dólares em 25 anos a ser assinado em breve - com o Mediterrâneo Oriental.
Acrescente-se o papel do porto de Tartus na Síria - com uma forte presença naval russa. Pequim investirá inevitavelmente na expansão de Tartus - que está ligado de forma crucial por autoestrada ao Líbano. A parceria estratégica Rússia-China estará envolvida na protecção de Tartus com os sistemas de mísseis S-300 e S-400.
Historicamente, num eixo maior que passou de Samarcanda a Córdova, com nós fortes como Bagdade e Damasco, o que lentamente evoluiu nesta parte da Eurásia foi uma civilização sincrética sobreposta a um passado regional rural e nómada ancestral. A coesão interna do mundo muçulmano foi forjada do século VII ao século XI: esse foi o factor chave que moldou os alinhamentos de uma Eurásia coerente.
Além do Islão, o árabe - a língua da religião, administração, comércio e cultura - foi um factor unificador essencial. Este mundo muçulmano em evolução foi configurado como um vasto domínio económico e cultural cujas raízes estiveram ligadas ao pensamento grego, semita, persa, indiano e árabe. Foi uma síntese maravilhosa que formou uma civilização única a partir de elementos de origens diferentes - persa, mesopotâmica, bizantina.
O Médio Oriente e o Mediterrâneo Oriental faziam naturalmente parte dela, totalmente aberta para o Oceano Índico, as rotas do Cáspio, a Ásia Central e a China.
Agora, séculos mais tarde, o Líbano deveria ter tudo a ganhar abandonando a mitologia de "Paris do Oriente" e olhando para o Leste – posicionando-se novamente do lado certo da História.