O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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UM “PASSE DE BEM-ESTAR” OU A TENTAÇÃO BIG BROTHER?

2020-07-16

O que têm em comum a aliança de vacinação GAVI de Bill Gates, a poderosa Mastercard e a empresa Trust Stamp mais os seus softwares de identificação biométrica? Negócios, certamente, grandes negócios, pensará o leitor. Nada disso: a acreditar nos próprios, trata-se de uma grande convergência cívica e humanitária que juntará a recolha de dados biométricos de identificação de indivíduos com base em inteligência artificial, os dados de saúde e vacinação, sobretudo os motivados pelo combate à COVID-19, e os métodos de pagamento sem mexer em dinheiro, essa matéria de repente tornada repelente e “contagiosa”. A esta combinação virtuosa chamaram “Passe de Bem-Estar” ou de saúde. No limite, juntam-se potencialmente ainda muitas outras virtualidades num só “passe” em que o pessoal, o público e os grandes interesses privados se diluem com as melhores das intenções, como podem ser também a identificação de futuros focos de COVID-19, de ajuntamentos para manifestações, a “prevenção policial”, o rastreio de infectados e a desmaterialização das pulseiras electrónicas da justiça. Um admirável mundo novo.

Raul Diego, MintPress/O Lado Oculto

Uma plataforma biométrica de identidade digital “que evolui com o desenvolvimento da pessoa” deverá ser introduzida “em comunidades remotas e com baixos rendimentos” da África Ocidental no quadro de uma parceria estabelecida entre a aliança de vacinação GAVI – criada pela Fundação Bill e Melinda Gates – a Mastercard e a Trust Stamp, uma empresa privada de “autenticação de identidade” baseada em inteligência artificial (IA).

O programa começou a ser lançado em finais de 2018 e concretiza-se através da integração da plataforma de identificação digital da Trust Stamp no “Passe de Saúde” GAVI-Mastercard, por sua vez um registo de vacinação digital e um sistema de identificação vinculado ao sistema de reprodução por cliques da Mastercard. Este alimenta-se de tecnologia de inteligência artificial e assenta no sistema de NuData, uma tecnologia que reconhece os utilizadores através de uma combinação de dados biométricos. O grupo financeiro Mastercard compromete-se a promover a “manutenção centralizada dos registos de vacinação infantil”.

O grupo Mastercard considera-se líder no caminho para “um mundo para lá do dinheiro vivo”: esta sua parceria com a aliança de vacinação GAVI estabelece uma nova abordagem no sentido de associar, numa plataforma coesa, um sistema biométrico de identificação digital, os registos de vacinação e um sistema digital de pagamentos. Os investimentos do lançamento do projecto ao longo de quase dois anos foram sustentados por um fundo de “donativos” de 3,8 milhões de dólares através da GAVI, a que se junta uma verba igual disponibilizada pela Fundação Bill e Melinda Gates. 

No início de Junho, a GAVI informou que o programa “Passe de Saúde” (Welness Pass) da Mastercard seria adaptado como resposta à pandemia de COVID-19. Cerca de um mês depois a Mastercard anunciou que a plataforma de identificação biométrica da Trust Stamp será integrada no “Passe de Saúde”, uma vez que o seu sistema tem capacidade para actuar no domínio da informação biométrica em áreas do mundo sem acesso à internet ou à conectividade de telefones móveis e, além disso, não requer dados legais de um indivíduo para funcionar. O “Programa de Bem-Estar”, como é definida a nova plataforma constituída pela GAVI, a Mastercard e a Trust Stamp, será lançado em breve na África Ocidental e será associado a um processo de vacinação contra a COVID-19 logo que a vacina esteja disponível.

O esforço para desenvolver a biometria como parte integrante dos sistemas nacionais de registos de identidades está em andamento há vários anos no continente africano e, a exemplo do que acontece através do mundo, tem provocado acesos debates sobre as suas componentes menos transparentes. No caso africano a contestação gira também em torno dos custos envolvidos e a suportar pelos governos. Um dos casos mais em foco é do Gana, onde a Comissão Eleitoral pretende por em prática um sistema biométrico de gestão de eleitores já para as eleições de Dezembro próximo. Bright Simons, vice-presidente honorário da organização não-governamental IMANI, pôs em causa as “alocações orçamentais” para o novo sistema, um registo “repetido e desnecessário de 17 milhões de pessoas” que implica investimentos de milhões de dólares “por razões que ninguém consegue explicar neste país”.

Ocultando razões ocultas

O sistema de identificação biométrica da Trust Stamp, que recebeu amplo financiamento através de um grande investimento da Mastercard em Fevereiro, utiliza uma tecnologia designada Evergreen Hash que cria “uma máscara em três dimensões (3D)” gerada por inteligência artificial com base numa única foto de rosto, palma da mão ou impressão digital de um indivíduo. Afirmam os promotores que uma vez criada essa “máscara 3D” os dados originais são abandonados e substituídos por chaves criptográficas para o nome da pessoa e outros dados identificadores comuns.

“Apenas uma pequena percentagem dos dados originais ficará no hash” (a mistura de dados em bruto), declara o presidente executivo (CEO) da Trust Stamp, Gareth Genner. “O que realmente fica é qualquer coisa mais segura para armazenar, porque não pode ser usada para identificar directamente o indivíduo. Ninguém o reconhecerá nesse enorme amontoado de números”. O resultado, segundo Genner, é um sistema de “informações irreversíveis que não identificam a pessoa” e que “protege a privacidade, reduz o potencial de uso indevido e permite a inclusão efectiva quando não existe outra forma de registo legal”.

Genner afirmou ainda, em comunicado de imprensa, que a “mistura de dados brutos” única pode “evoluir” à medida que seja criada uma nova mistura actualizada de dados de saúde sempre que uma criança ou um adulto recebe uma vacina. Os algoritmos de inteligência artificial da Trust Stamp podem determinar com rigor se “misturas” diferentes pertencem ao mesmo indivíduo, significando isto que “a mistura de dados em bruto evolui ao longo do tempo juntamente com a própria pessoa”, acrescentou Genner.

Não fica claro se o Welness Pass, Passe de Saúde ou Passe de Bem-Estar é criado por razões de saúde pública ou em função de interesses de mercado. Na realidade, a aliança GAVI é amplamente financiada pelas Fundações Bill e Melinda Gates e Rockefeller, por alguns governos e pela grande indústria farmacêutica associada à produção e comercialização de vacinas. Nos termos do próprio website, a GAVI preocupa-se principalmente em melhorar “a saúde dos mercados de vacinas e outros produtos para imunização” e não tanto a saúde dos indivíduos. Tal como a Mastercard, a GAVI está empenhada, a par das vacinas, no esforço que conduza a “um mundo para lá do dinheiro vivo” (World Beyond Cash), que vem consolidar o seu modelo de negócio, há muito relacionado com a redução do uso do dinheiro físico.

Utilizações múltiplas

A Trust Stamp partilha igualmente essa visão focada nos mercados para o seu sistema de identificação digital; a empresa reconhece que procura novas opções de comercialização da tecnologia Evergreen Hash, especialmente em sistemas prisionais.

Contactos estabelecidos com organizações prisionais públicas e privadas revelaram interesse em utilizar a tecnologia da Trust Stamp para garantir a identificação de indivíduos em liberdade condicional “sem fazê-los pagar as caras pulseiras electrónicas que monitorizam todos os seus movimentos”. A plataforma Trust Stamp, assegura a empresa, pode garantir os mesmos resultados de uma maneira menos dispendiosa e “sem contacto”.

O interesse da Trust Stamp em disponibilizar a sua tecnologia para alegadas respostas à COVID-19 ou fazer aplicar a lei revela a existente tendência crescente, à escala mundial, segundo a qual cada vez mais empresas privadas fornecem soluções digitais no quadro da COVID-19 e que são aplicáveis igualmente a sistemas prisionais, objectivos de vigilância e de “prevenção policial”.

Por exemplo, o software de rastreio de contactos originalmente introduzido como parte da resposta à COVID-19 – e que a Comissão Europeia pretende generalizar aos 27 Estados membros – tem sido usado pelos departamentos de polícia dos Estados Unidos para identificar manifestantes durante os recentes protestos e distúrbios no país. Também uma contestada tecnologia israelita de rastreio está a ser usada em Rhode Island, Estados Unidos, por disponibilizar análises baseadas em inteligência artificial que tanto serão capazes de identificar futuros focos de infecção de COVID-19 como supostos locais onde virão a concentrar-se participantes em acções de protesto.

Um elemento preocupante sobre a nova iniciativa “Passe de Saúde” é que interliga soluções digitais de usos múltiplos, designadamente dados biométricos de identificação e informações de saúde e vacinação com métodos de pagamento sem contacto e sem dinheiro, cada vez mais aconselhados como alternativas por estarem isentos “de contágios”. Por detrás desta estratégia de aconselhamento têm estado, desde a declaração da pandemia de COVID-19, grupos e entidades associados à aliança de vacinação GAVI, entre as quais a Organização Mundial de Saúde (OMS), poderosamente financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates.




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