O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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ISRAEL CONTINUA NAS MÃOS DE NETANYAHU: CISJORDÂNIA AMEAÇADA

2020-05-02

Com pouco mais de um terço dos deputados no Parlamento, o “eterno” primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, driblou o ex-chefe da oposição como se fosse um simples amador e avança para um governo de maioria no qual assegurou poderes para designar os juízes que o deveriam julgar por corrupção. E, sobretudo, garantiu condições para iniciar a anexação da Cisjordânia, o maior assalto dos últimos tempos contra os palestinianos e o direito internacional, com as costas protegidas por Donald Trump.

Mitchell Plitnick, Responsible Statecraft/O Lado Oculto

Benjamin Netanyahu acaba de alcançar uma impressionante vitória ao cabo de três cerradas consultas eleitorais realizadas durante mais de um ano. O político que ainda no ano passado superou David Ben-Gurion como o primeiro-ministro de Israel durante mais tempo em funções prosseguirá no cargo pelo menos durante os próximos 18 meses, um feito que lhe custou muito pouco para extrair do seu novo aliado, Benny Gantz, muito mais do que este queria dar.

Gantz, um político neófito, foi superado por Netanyahu, que conhece todos os truques, sujos ou não, do cardápio. O acordo a que finalmente chegaram concede ao partido de Gantz algumas pastas políticas importantes, incluindo as da Defesa e dos Negócios Estrangeiros, mas deixou Netanyahu em posição para conseguir o que realmente deseja em praticamente todos os domínios. Incluindo o maior ataque previsto contra o povo palestiniano e o direito internacional: a anexação de partes extensas da Cisjordânia.

Por exemplo, o Partido Likud de Netanyahu pode nomear o novo presidente do Knesset (Parlamento), posto fundamental para controlar os procedimentos legislativos e a que Netanyahu tem muita prática em recorrer. Tecnicamente, Gantz tem poder de veto sobre o nome indicado, mas os dois principais partidos parecem ter chegado a acordo em colocar no cargo Yariv Levin, membro do Likud, o que limita aquele recurso. Em troca, o partido Azul e Branco de Gantz terá o controlo da comissão parlamentar que irá gerir a agenda legislativa – mas o papel do presidente do Knesset é determinante e garantirá uma grande influência de Netanyahu.

Acusações de corrupção foram enterradas

O primeiro-ministro abdicou do controlo directo da economia em troca da concretização do seu principal objectivo, que é o de garantir a segurança pessoal contra as acusações de corrupção que pendem sobre ele. Benny Gantz concedeu-lhe essa vantagem quando concordou que Netanyahu possa ter direito de veto sobre as nomeações dos próximos procurador-geral e promotor público. Gantz concordou igualmente com o poder de veto de Netanyahu sobre as designações judiciais, matéria onde existiam importantes pontos de discórdia. Yair Lapid, ex-aliado de Gantz na coligação Azul e Branco, twittou a propósito: “Portanto, o compromisso sobre a comissão de nomeações judiciais é que Bibi (Netanyahu) escolheu todos os seus membros. Gantz e Ashkenazi concordaram em permitir que o réu nomeasse os juízes que decidirão sobre os seus assuntos”. 

Gabi Ashkenazi é membro do grupo parlamentar da coligação Azul e Branco.

Netanyahu ganhou ainda outras posições que lhe permitem proteger-se das acusações; esta era a principal preocupação que o impedia de lançar-se no seu projecto de anexar grandes áreas da Cisjordânia. Alguns parceiros políticos de Gantz tentaram convencê-lo a tomar medidas para travar o processo de anexação, mas, na realidade, este demonstrou pouco empenho nessa matéria.

Uma das partes do acordo de aliança governamental entre o Likud e a aliança Azul e Branco estabelece que durante os primeiros seis meses o executivo funcionará como um governo de emergência para combater a pandemia do novo coronavírus. Isso significa que durante esse período não haverá legislação importante em apreciação, com uma excepção. A anexação de territórios da Cisjordânia pode ser levada a votação no governo e no Knesset já no dia 1 de Julho. É provável que Netanyahu tenha maioria em ambas as frentes.

Anexação da Cisjordânia

Gantz tentará que o processo de anexação decorra em coordenação com os Estados Unidos, mas isso dificilmente poderá ser considerada uma posição política ou uma exigência de negociação. Netanyahu já antes congelara a participação do partido de extrema-direita Yamina no governo de coligação, atribuindo ao Azul e Branco a maioria das pastas que aquele reivindicava. Trata-se de uma medida para atenuar as pressões da extrema-direita no sentido de a anexação de partes da Cisjordânia ser imediata, permitindo ao primeiro-ministro ganhar algum tempo para acertar os desenvolvimentos com Donald Trump, a Arábia Saudita, o Egipto e outros importantes governos árabes.

O chamado “Acordo do Século” patrocinado pela administração Trump prevê uma extensa anexão da Cisjordânia por Israel. Mas o modo desastroso como foi feita a sua apresentação ao longo de meses criou problemas a Netanyahu a partir do momento em que a extrema-direita recusou a perspectiva de adiar por mais tempo esse processo para permitir a Jared Kushner – genro de Trump e um dos redactores do documento – tentar arrastar o maior número possível de governos árabes para o seu lado.

Em pleno processo eleitoral dos Estados Unidos, Trump deseja satisfazer a sua base cristã evangélica e, nesse sentido, a anexação é um trunfo a jogar. O acordo com Gantz permite a Netanyahu um período mínimo de dois meses para trabalhar com a Casa Branca de modo a conseguir apoios árabes relevantes para essa violação do direito internacional. O presidente norte-americano, abalado pela forma desastrosa como tem conduzido internamente o combate contra a pandemia de coronavírus, não irá querer esperar muito mais tempo para impor o seu “plano de paz”. 

O partido de extrema-direita Yamina ainda tem lugar na coligação governamental israelita. De momento afirma que não aceitará as condições que estão em cima da mesa, mas a situação pode alterar-se. Mesmo que isso aconteça, a sua influência e a da ala extremista do Likud serão diminutas, o que não constituirá problema de relevo para Netanyahu, resolvendo-se assim um dilema que seria complicado. O primeiro-ministro enfrentava uma escolha difícil entre proceder rapidamente à anexação, satisfazendo a extrema-direita, ou adiá-la mais um pouco, contrariando este sector mas correspondendo à estratégia montada através de Trump, que já antecipara ofertas importantes a Israel como a transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém e o reconhecimento da anexação israelita do território sírio dos Montes Golã.

Agora Netanyahu pode alinhar-se mais confortavelmente com o cronograma dos Estados Unidos. Trump dera sinais de querer voltar rapidamente ao “Acordo do Século”, mas a crise do COVID-19 alterou os planos. O dia 1º de Julho parece ser uma meta optimista para avançar para anexação num quadro em que Trump e os parceiros árabes se sentiriam igualmente confortáveis. Netanyahu quer ser o primeiro chefe de governo de Israel a alargar a anexação da Cisjordânia – violando o direito internacional e liquidando a chamada “solução de dois Estados” reconhecida internacionalmente – fazendo-o enquanto avança nas relações com as monarquias árabes do Golfo; o alinhamento com o cronograma de Trump torna-se possível desde que a pressão da extrema-direita não seja muito elevada. Benny Gantz, ao ceder a Netanyahu, permitiu-lhe essa flexibilidade estratégica. 

Antes das eleições norte-americanas

Trump e Netanyahu vão querer avançar com a anexação de partes da Cisjordânia ainda antes das eleições presidenciais dos Estados Unidos em Novembro. O processo de ataque aos direitos dos palestinianos conjuga-se com a estratégia de Trump para manter unida a sua base eleitoral; para Netanyahu e Gantz, a preocupação centra-se no facto de Trump poder não ganhar. Aparentemente, e apesar de ser tão um apoiante de Israel tão forte como Trump, Joe Biden, o candidato democrático, opõe-se à anexação. Biden tem, aliás, uma posição muito ambígua: ainda defende teoricamente a “solução de dois Estados” apesar de esta ter sido, de facto, enterrada sob a sua supervisão como vice-presidente de Barack Obama – sobretudo ao tolerar vastas, frequentes e ilegais operações de colonização dos territórios ocupados.

Em Janeiro último, Joe Biden disse ao New York Times: “Acredito que a solução de dois Estados continua a ser a única maneira de garantir a segurança a longo prazo de Israel mantendo a identidade judaica e democrática. É também a única maneira de garantir a dignidade palestiniana e o seu legítimo direito à autodeterminação nacional. É ainda uma condição necessária para que haja uma maior cooperação entre Israel e os seus vizinhos árabes. Por todas estas razões considero que incentivar uma solução de dois Estados continua a ser do interesse crítico dos Estados Unidos”.

Embora Biden dê claramente prioridade ao carácter judaico do Estado de Israel sobre os direitos dos palestinianos, os seus pontos de vista alinham-se com o tipo de estratégia pró-Israel do Partido Democrático, manifestada através da chamada “Maioria Democrática por Israel”. Esta entidade de lobby sionista enviou recentemente uma carta a Netanyahu, Gantz e Lapid alertando contra a anexação e na qual se lê: “Essa medida dificultaria a solução de dois Estados – ou torná-la-ia talvez impossível – e provavelmente teria consequências negativas de longo alcance para a aliança entre os Estados Unidos e Israel”.

Gantz nunca iria travar a anexação; o modo como estabeleceu agora a sua aliança com Netanyahu, porém, faz com que o governo possa avançar de maneira mais eficaz. Além de ter concedido ao primeiro-ministro a sua protecção pessoal perante a justiça, o ex-chefe da oposição israelita recebeu muito pouco pela sua rendição.


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