PATRÕES DA LOMBARDIA TÊM A MORTE NAS MÃOS

2020-04-16
O mundo desconhece a extensão real da tragédia que assolou a zona mais industrializada da região da Lombardia, em Itália, onde se regista a maior taxa de mortes por milhar de habitantes por COVID-19 da Europa. O mundo praticamente ignora que enquanto camiões militares transportavam cadáveres empilhados através das ruas das cidades as maiores organizações patronais dirigiam campanhas proclamando que "a economia não pode parar” e mantinham as fábricas abertas – enquanto o governo central lhes ia fazendo a vontade. Hoje a dor das populações está a transformar-se em raiva, mas será que virão a ser apuradas responsabilidades?
Alba Sidera*, Revista Contexto/O Lado Oculto
Existem imagens que marcam uma época, que ficam gravadas no imaginário colectivo de um país. A imagem que os italianos não poderão esquecer durante muitos anos é a que os habitantes de Bérgamo fotografaram das suas janelas na noite do 18 de Março de 2020. Setenta camiões militares atravessaram a cidade no meio de um silêncio fúnebre, um atrás do outro, numa lenta marcha em sinal de respeito: transportavam cadáveres.
Eram levados para outras cidades, fora da região da Lombardia, porque o cemitério, o necrotério, a igreja transformada em morgue de emergência e o crematório a funcionar 24 horas por dia não davam conta. A imagem eternizava a magnitude da tragédia em curso na região italiana mais afectada pelo coronavírus. No dia seguinte, o país amanheceu com a notícia de ser o primeiro na lista mundial das mortes oficiais por COVID-19. A maior parte na Lombardia. Porém, o que torna a situação tão dramática especificamente em Bérgamo? O que aconteceu nessa região para que em Março de 2020 o número de mortos tenha sido 400% acima do registado no mesmo mês do ano anterior?
A obscura história de Val Seriana
No dia 23 de Fevereiro existiam apenas dois casos positivos de coronavírus na província de Bérgamo. Numa semana, o número subiu para 220 — quase todos no Val Seriana, o vale do rio Serio. Em Codogno, cidade lombarda onde o primeiro caso de coronavírus foi detectado, no dia 21 de Fevereiro, bastaram 50 casos positivos para fechar a cidade e declará-la zona vermelha (de máximo risco). Por que não agiram da mesma forma no vale? Porque é aí que se concentra um dos polos industriais mais importantes da Itália e os empresários industriais pressionaram todas as instituições para evitar o encerramento das fábricas e a perda de dinheiro.
Por incrível que pareça, a região onde se registaram mais mortes por coronavírus por habitante em toda a Itália — e na Europa — nunca foi declarada zona vermelha, apesar da perplexidade dos presidentes de município que pediam tal medida; e dos cidadãos, que agora exigem que haja pessoas responsabilizadas por isso. Os médicos do Val Seriana são os primeiros a proclamar a realidade: se a região tivesse sido declarada zona vermelha — como todos os especialistas aconselhavam — centenas de vidas teriam sido salvas, garantem, impotentes.
A história é bastante obscura: os interessados em manter as suas fábricas abertas são também, em alguns casos, accionistas ou sócios de hospitais particulares. A Lombardia é a região italiana que melhor representa o modelo de mercantilização da saúde e tem sido vítima de um sistema de corrupção em larga escala, comandado pelo seu ex-governador Roberto Formigoni (que governou de 1995 a 2013) e que é membro destacado do partido Comunhão e Libertação (CeL). Pertencia ao mesmo partido de Berlusconi, que o defendia como o “governador vitalício da Lombardia”, mas contou sempre com o apoio da Liga, que governa a região desde que Formigoni saiu, acusado e condenado por corrupção na área da saúde. O seu sucessor, Roberto Maroni, iniciou em 2017 uma reforma da saúde que trouxe ainda mais cortes nos investimentos públicos e que praticamente aboliu os médicos de família, substituindo-os por “gestores”. Nos próximos cinco anos cerca de 45 mil clínicos gerais irão desaparecer, mas “quem é que vai ainda ao seu médico de família?”, perguntou, inabalável, em Agosto do ano passado, o político da Liga Giancarlo Giorgetti, então subsecretário de Estado do governo central de Conte-Salvini.
Comportamentos e situações inexplicáveis
A epidemia na região de Bérgamo, conhecida como Bergamasca, teve início oficialmente na tarde de domingo 23 de Fevereiro, embora os médicos de família e clínicos gerais — na linha de frente da denúncia da situação — garantam que desde o final de Dezembro já vinham atendendo muitos casos de pneumonias anómalas, inclusive em pessoas de 40 anos. No hospital Pesenti Fenaroli, de Alzano Lombardo, um município com 13.670 habitantes a poucos quilómetros de Bérgamo, chegaram os resultados dos testes de coronavírus de dois pacientes internados: eram positivos.
Como os dois infectados já tinham estado em contacto com outros pacientes, médicos e enfermeiros, a direcção do hospital decidiu fechar as portas. Mas, sem explicação alguma, reabriu-as horas depois, sem desinfectar as instalações nem isolar os pacientes com COVID-19. Pior ainda: todos os trabalhadores (médicos, enfermeiros, etc.) continuaram a trabalhar sem protecção durante uma semana inteira; grande parte deles foram contagiados e acabaram por disseminar o vírus entre a população. O número de contágios multiplicou-se por todo o vale. O hospital foi, assim, o primeiro grande foco da infecção: pacientes que ingressaram com uma simples dor num quadril acabaram por morrer de coronavírus.
Os presidentes dos dois municípios mais afectados do Vale do Serio, Nembro e Alzano Lombardo, esperaram todos os dias, às 19 horas, que chegasse a ordem de fechar as cidades – o que tinha ficado combinado. Tudo estava pronto: os regulamentos escritos, o exército mobilizado, o chefe da polícia tinha organizado os turnos de cada agente e as tendas já estavam montadas. Mas a ordem nunca chegou e ninguém lhes soube explicar porquê. Em vez disso chegaram muitos e muitos telefonemas dos empresários e donos de fábricas da região, preocupadíssimos em evitar a todo o custo o encerramento das suas atividades. Nem disfarçavam.
“Bérgamo não pára”
Sem qualquer remorso, no dia 28 de Fevereiro, em plena emergência por causa do coronavírus (que em cinco dias tinha atingido 110 infectados na região, saindo totalmente de controlo), a Confindustria, associação de empresários industriais italianos, deu início a uma campanha nas redes sociais com a hashtag #YesWeWork (“Sim, nós trabalhamos”). O presidente da Confindustria da Lombardia, Marco Bonometti, declarou à comunicação social: “Precisamos de baixar o tom, fazer a opinião pública compreender que a situação está a ser normalizada, que as pessoas podem voltar a viver como antes”.
No mesmo dia, a Confindustria Bergamo lançou a sua própria campanha direccionada aos investidores estrangeiros para convencê-los de que ali não estava a acontecer nada e que não encerrariam nem por brincadeira. O slogan não deixava dúvidas: “Bergamo non si ferma/Bergamo is running” (Bérgamo não pára).
A mensagem do vídeo promocional para os parceiros internacionais era escandalosa: “Foram diagnosticados casos de coronavírus em Itália, mas da mesma maneira que noutros países”, minimizando assim a situação. Também mentiam: “o risco de infecção é baixo”. Colocavam a culpa nos meios de comunicação por um suposto alarmismo injustificado e, enquanto mostravam operários trabalhando nas suas fábricas, gabavam-se do facto de todas as instalações continuarem “abertas e a todo vapor, como sempre”.
Apenas cinco dias depois explodiu o enorme surto de contágios e mortes que acabou por ser o mais importante de Itália e da Europa. Mas nem assim os empresários retiraram a campanha, e nem pensaram em fechar as fábricas. A Confindustria Bergamo reúne 1200 empresas, que empregam mais de 80 mil trabalhadores. Todos foram expostos ao vírus, foram obrigados a ter de trabalhar, em grande parte sem as medidas adequadas — aglomerados, sem distâncias de segurança nem materiais de proteção — colocando em risco as suas vidas e a de todas as pessoas em seu redor.
O presidente do município de Bérgamo, Giorgio Gori, do Partido Democrático, também se uniu ao clamor contra o encerramento da cidade e, no dia 1º de Março, ainda convidava as pessoas a encherem as lojas do centro com o slogan “Bérgamo não pára”. Pouco depois, perante a evidência da catástrofe, arrependeu-se e reconheceu que tinha tomado medidas muito fracas com a intenção de não afectar a atividade económica das grandes empresas da região.
Os patrões deram sempre as cartas
No dia 8 de Março, os contágios oficiais na região Bergamasca tinham passado, numa semana, de 220 para 997. Pela tarde, houve uma fuga de informação segundo a qual o governo central pretendia isolar a Lombardia. Depois de horas de caos, durante as quais muitas pessoas abandonaram Milão numa grande debandada, o primeiro-ministro Giuseppe Conte surgiu, já de madrugada, a anunciar o decreto numa confusa conferência de imprensa através do Facebook. Não era o que os presidentes dos municípios do Vale do Serio esperavam: nada de zona vermelha, mas sim laranja. Ou seja, foram restringidas as entradas e saídas dos municípios, mas todas as pessoas continuavam a poder deslocar-se para os respectivos trabalhos.
Dois dias depois o confinamento estendeu-se a toda a Itália. E nada mudou na região Bergamasca, na qual os contágios continuavam a crescer ao mesmo ritmo imparável das suas fábricas funcionando a todo vapor. “Quando todos na região, principalmente em Nembro e Alzano Lombardo, tinham a certeza de que seria decretada zona vermelha, algumas importantes empresas fizeram pressão para atrasar a declaração o máximo possível”, contou Andrea Agazzi, secretário-geral do sindicato FIOM Bérgamo, no programa Report da RAI. E acrescentou: “A Confindustria deu as cartas e o governo escolheu de que lado ia ficar”.
Os contágios e as mortes aumentaram, incessantes, especialmente nas regiões industriais da Lombardia, localizadas entre Bérgamo e Brescia. Exactamente um mês depois do primeiro caso oficial de coronavírus em Itália, no sábado 21 de Março foi atingido o triste recorde de quase 800 mortos por dia. Os governadores da Lombardia e do Piemonte — outro grande polo industrial — declararam que a situação era insustentável e que era necessário interromper a actividade produtiva. Conte, que até então se tinha manifestado contra essas medidas, surgiu na mesma noite, bastante perturbado, para afirmar que agora sim, seriam encerradas “todas as actividades económicas produtivas não essenciais”.
A Confindustria reagiu imediatamente e iniciou uma acção ofensiva para pressionar o governo. “Não podem ser fechadas todas as actividades não essenciais”, escreveram numa carta ao primeiro-ministro apresentando as suas exigências. Os industriais fizeram com que o decreto demorasse 24 horas a ser aprovado e que Conte aceitasse suas condições. De facto, o governo tinha escolhido o seu lado — e não seria o lado dos trabalhadores.
“Não parar a economia é bom para todos”
Os sindicatos, em bloco, reagiram em pé de guerra e ameaçaram com uma greve geral se não fosse cumprido o encerramento real das actividades produtivas não-essenciais. A Confindustria tinha conseguido colocar na lista de actividades que poderiam continuar a funcionar muitas que não eram de primeira necessidade, como as da indústria de armas e munições. Além disso, incluíram uma espécie de cláusula que permitia que qualquer empresa que se declarasse “funcional” para uma atividade económica essencial pudesse permanecer aberta na prática. Isto fez com que em Brescia, a outra província lombarda destruída pelo coronavírus, mais de 600 empresas excluídas da lista das essenciais iniciassem os procedimentos para poder continuar a funcionar.
“Não compreendo os motivos pelos quais os sindicatos iriam querer uma greve. O decreto já é bem restrito: o que mais precisaríamos de fazer?”, declarou o pouco empático presidente da Confindustria, Vincenzo Boccia. E acrescentou: “Já vamos perder 100 mil milhões de euros por mês. Não parar a economia é bom para o país inteiro”. Annamaria Furlan, secretária-geral da central sindical CISL, tentou explicar-lhe: “Sou sindicalista há 40 anos e nunca pedi o encerramento de uma fábrica, mas agora é a vida das pessoas que está em risco “.
Os trabalhadores das fábricas começaram protestos e greves enquanto os sindicatos negociavam com o governo; o qual, no fim, reconsiderou. Foram eliminadas algumas actividades da lista das mais de oitenta “essenciais”, como a indústria armamentista ou os call-centers que vendem por telefone produtos que ninguém solicitou. Também houve uma restrição às indústrias petroquímicas. Ficou igualmente assente que não bastava a auto certificação de uma empresa para considerá-la funcional para outra essencial, e foi estabelecido o compromisso de proteger o direito à saúde dos trabalhadores que continuassem nas fábricas. Apesar disso, ainda restaram alguns pontos ambíguos no decreto; e existe uma zona cinzenta que permite que muitas fábricas continuem abertas. Do mesmo modo, muitos operários continuam a trabalhar sem distância de segurança e sem o material de protecção adequado.
Cumplicidades letais
As fábricas da região Bergamasca continuaram praticamente todas abertas até ao dia 23 de Março, quando os contágios oficiais na região já chegavam a 6500. Uma semana depois, no dia 30 de Março, apesar do decreto de encerramento de “todas as atividades produtivas não essenciais”, ainda restavam 1800 fábricas em operação e já havia 8670 infectados na região.
Vejamos os nomes de empresas que se recusaram a encerrar. Uma das fábricas da região é Tenaris, líder mundial na produção de tubos e serviços para a exploração e produção de petróleo e gás, com uma facturação de 7300 milhões de euros e sede legal no Luxemburgo. Emprega 1700 trabalhadores nas suas instalações da região Bergamasca e pertence à família Rocca, que integra Gianfelice Rocca, o oitavo homem mais rico de Itália.
Na província de Bérgamo, como em toda a Lombardia, os planos de saúde privados são muito poderosos. Comprovadamente, metade dos serviços de saúde passa por mãos privadas. Os dois hospitais particulares mais importantes da região, que facturam cada um mais de 15 milhões de euros anuais, pertencem ao grupo San Donato — cujo presidente é nada mais nada menos que o vice-primeiro-ministro italiano, Angelino Alfano, ex-sucessor de Berlusconi — e ao grupo Humanitas. O presidente da Humanitas é Gianfelice Rocca, igualmente proprietário de Tenaris, indústria que também não quis mandar os seus trabalhadores para casa. A saúde privada bergamasca não foi activada para a emergência do coronavírus até o dia 8 de Março, quando, por decreto, todos os serviços não urgentes tiveram de ser adiados. Só então começaram a abrir espaço para os pacientes com COVID-19.
A Brembo é outra grande empresa com fábricas na região de Bérgamo. Pertence à poderosa família Bombassei, também envolvida em política: Alberto, o filho do fundador, foi deputado por Scelta Civica, o partido de Mario Monti. Tem três mil trabalhadores nas suas fábricas na zona de Bérgamo, que produzem travões para automóveis. Fatura 2600 milhões de euros. Também não aceitou fechar.
O Vale do Serio foi industrializado em grande parte por empresas suíças há mais de 100 anos. Por isso a presença de fábricas ligadas à Suíça ainda é importante. Outra grande empresa que tem mais de seis mil trabalhadores em Itália, mais de 850 na região, é a ABB, com capital suíço e sueco. Líder em robótica, fatura dois milhões de euros. No dia 30 de Março continuava aberta, em situação de total normalidade.
A Persico, empresa italiana que produz componentes automotivos, com 400 trabalhadores e 159 milhões de facturação, tem sede em Nembro, o município com mais mortes por COVID-19 por habitante em Itália. Pierino Persico, o proprietário, foi um dos que mais se opôs à declaração da cidade como zona vermelha.
Uma tragédia parcialmente encoberta
Em Nembro, em Março de 2019, morreram 14 pessoas. No mesmo mês deste ano foram 123 (um aumento de 750%). E, ainda assim, os infectados oficiais são apenas 200. Em Alzano Lombardo, em Março de 2019, morreram nove pessoas; em Março deste ano foram 101. Na cidade de Bérgamo (de 120 mil habitantes) o número de mortos em março foi de 553, contra 125 em Março de 2019. Os dados sobre os infectados não são confiáveis porque não se fazem testes e a Proteção Civil italiana — que realiza a recontagem — adverte que os números devem ser multiplicados pelo menos por dez.
Segundo um estudo publicado pelo Giornale di Brescia, na província lombarda a cifra de infectados seria 20 vezes maior que a oficial, cerca de 15% da população. E o mesmo em relação ao número de mortes. Segundo este estudo, seria o dobro das oficiais, ou seja, três mil só na província de Brescia. A falta de testes — em vivos e mortos — torna impossível efectuar uma contagem confiável. O que sabemos é que a Itália é um dos países com mais mortes por COVID-19 no mundo – a maioria das quais na zona norte industrial.
Agora, perante de milhares de cadáveres e uma população que começa a converter a sua dor em raiva, todos querem fugir das responsabilidades. O governador da Lombardia, Attilio Fontana, da Liga, culpa o governo central e assegura que não foi mais rigoroso porque não deixaram. Na verdade poderia tê-lo sido, como foram os governadores da Emiliana Romagna, Lazio e Campania, que declaram as suas regiões como zonas vermelhas.
A verdade é que nenhuma autoridade esteve à altura, excepto os presidentes de pequenos municípios, que foram os únicos que reconheceram — e denunciaram publicamente — as pressões dos industriais, que os assediavam com telefonemas para tentar, de todas as formas, evitar ou adiar o encerramento das fábricas. A partir de uma Bérgamo ferida e ainda em choque os cidadãos começam a organizar-se para pedir que os factos sejam esclarecidos e que alguém assuma, ao menos, a responsabilidade de ter permitido que os interesses económicos se sobrepusessem à saúde — ou melhor, à vida — dos trabalhadores de Bergamasca. Muitos deles, inclusive, precários.
*Alba Sidera é jornalista ítalo-catalã, correspondente do jornal catalão El Punt Avui em Itália e colaboradora da Revista Contexto.