A TRAGÉDIA DO IMPÉRIO: FALTA EM SAÚDE O QUE SOBRA EM GUERRA

2020-04-13
Eduardo Perondi, Estados Unidos; Desacato.info/O Lado Oculto
Utilizar sacos de plástico como luvas, acessórios de natação para protecção ocular, gazes e fraldas como máscaras, contentores frigoríficos como necrotérios estacionados em frente dos hospitais, valas comuns para enterrar os corpos. Estas são algumas das respostas das autoridades nos Estados Unidos perante o surto de coronavírus. Linha de frente no combate à pandemia, trabalhadores da saúde relatam, num misto de medo e indignação, cortes de salários, suspensão e modificação de contratos, jornadas de até 16 horas, falta de materiais de protecção à contaminação, esgotamento emocional e muita, muita raiva. “Sentimos-mos como ovelhas a caminho do matadouro”, relata uma médica de Nova York[1].
Maior potência económica do mundo, os Estados Unidos estão a enfrentar momentos muito difíceis com o surto de coronavírus. Actual epicentro da pandemia, os EUA ultrapassaram os 500 mil contágios e 20 mil mortes por COVID-19[2]. Talvez nenhum país estivesse suficientemente preparado para um desafio desta magnitude, nem a China, apesar da resposta rápida e eficiente do país asiático. Mas, aparentemente, poucos estavam tão insuficientemente preparados. A lógica do mercado que vigora no sistema de saúde norte-americano piora muito a situação. A atenção à saúde depende de seguros privados, pagos de forma individual ou associados a um emprego formal. Somente nas últimas três semanas 17 milhões de pessoas perderam o trabalho[3], sem contar o sector informal.
Dezenas de milhões de cidadãos norte-americanos não possuem, portanto, qualquer cobertura médica. Alguns receiam ir a um hospital e sair de lá endividados. Medo de morrer pela doença e também de lhe sobreviver? Outros tantos milhões de migrantes indocumentados que vivem e trabalham nos Estados Unidos também não possuem qualquer sistema que os proteja. Neste caso, é preciso acrescentar o medo de procurar um médico e encontrar um agente da polícia migratória. Estão absolutamente sós na luta contra a pandemia.
Tudo isso faz com que as mortes por coronavírus sejam muito selectivas nos EUA. A proporção de negros e latinos que falecem é muito mais alta que os demais. Na cidade de Chicago, por exemplo, 70% dos mortos por COVID-19 são negros, que representam menos 30% da população total[4]. Moradores de bairros pobres e periferias têm o dobro da probabilidade de morrer pela infecção que em outras partes das grandes metrópoles. Devido às piores condições de habitação e de alimentação, falta de sistemas de saúde, necessidade de se expor ao risco de contágio para ganhar a vida, etc. O vírus não é democrático, nem no contágio e menos na letalidade. Reproduz todas as desigualdades visíveis e ocultas na “normalidade” da sociedade.
Pirataria, saqueio e guerra
Há bem mais que improviso na resposta imperialista. Depois de semanas negando a gravidade da doença, culpando os chineses pelo vírus e insistindo na “cloroquina” como remédio, o governo de Trump teve de reagir ao desastre. E fê-lo no melhor estilo do Tio Sam: promovendo um enorme saqueio mundial de recursos médicos. Depois da falta de preparação e da soberba, o poder imperial. A pirataria moderna consegue o que, nesta hora, o dinheiro pode não comprar. Os Estados Unidos confiscaram para si ventiladores, testes COVID-19 e máscaras de protecção comprados por Paraguai, Brasil, Alemanha, e outros países[5]. O lema é “America first”, repete o magnata da Casa Branca. Na fila do caos também há posições bem definidas. E o direito internacional surge como uma convenção ingénua perante o poder imperial, confirmado também pelas pilhagens médicas realizadas por França e Itália, sócios menores deste sistema imperialista decadente.
Mas como decadente não significa inofensivo, Trump resolveu aproveitar a oportunidade do momento para debilitar os seus inimigos. Os Estados Unidos endureceram as sanções económicas contra o Irão – um dos países mais afectados pelo COVID-19 – ignorando o papel da ONU. As autoridades iranianas denunciam o “terrorismo médico” norte-americano, que impede o acesso a medicamentos[6]. Trump também pressiona para que os seus aliados não aceitem ajuda médica de Cuba, apesar de esta já estar presente em 38 países desde o início da pandemia. Cuba enviou médicos para a Itália, assim como a China, que também mandou toneladas de suprimentos médicos para este país. Os Estados Unidos enviaram soldados e armas[7], numa clara ameaça à Rússia.
Trump também enviou um arsenal de guerra rumo ao Mar das Caraíbas, o maior poderio bélico visto desde os anos oitenta na América Latina[8], região que os Estados Unidos consideram como o seu quintal das traseiras. O pretexto é o combate ao narcotráfico, afirmam os representantes da nação que mais consome drogas no mundo. Mas o alvo não é a Colômbia, onde se produz 93% da cocaína que entra nos Estados Unidos. Esta guerra não convencional é contra a Venezuela[9], país que tenta administrar soberanamente as suas próprias crises e as maiores reservas de petróleo do mundo no meio de sanções, chantagens, ameaças de golpe e, agora, de intervenção militar estrangeira. A ameaça é real, os porta-aviões navegam pelas costas do Pacífico ao Atlântico promovendo um bloqueio naval e estrangulando a economia venezuelana, enquanto esperam que funcione o seu “plano para a transição democrática na Venezuela”.
Recessão económica e a janela de oportunidades
Para piorar, a pandemia é apenas a cara visível e imediata de uma profunda crise económica mundial, talvez sem precedentes e que pode durar muito tempo. O Estado governado por Trump e a plutocracia capitalista que controla o sistema sabem disso. Por essa razão anunciaram um pacote de 2,3 biliões de dólares de resgate, uma enorme soma de recursos destinados a salvar a economia. O auxílio à população prevê a distribuição de todas as migalhas que caírem da mesa do banquete corporativo ou, como dizem os neoliberais, lançarão algum dinheiro do helicóptero[10].
O resgate norte-americano prevê que dois terços do dinheiro público lançado no mercado seja para as empresas[11]. Esta “intervenção do Estado na economia”, como festejam os incautos, está dirigida mais uma vez a salvar grandes corporações, estatizar as suas dívidas, dar-lhes novos empréstimos baratos, destravar regulações ambientais, favorecer especuladores, proporcionar aquisições de empresas menores que irão à falência. Ou seja, todas as facilidades para que voltem à produção irracional capitalista, para explorar uma força de trabalho que estará mais barata, abundante, flexível e mais controlada pós-COVID. Um óleo lubrificante nas engrenagens da reprodução capitalista.
No fundo, aplicam a mesma lógica que, de tempos a tempos, leva o mundo a crises profundas como esta, que já se anunciava bem antes da aparição do vírus. De facto, estão a administrar esta pandemia com a mesma lógica, aproveitando a janela de oportunidades da crise. Aparentemente, muitos capitalistas já estavam preparados para ela, como demonstra o relato do Evento 201[12] – uma simulação de uma hipotética pandemia de coronavírus – patrocinado pelo Fórum Económico Mundial, Fundação Bill & Melinda Gates, CIA, Bloomberg, ONU, etc, que aconteceu em Outubro de 2019 em Nova York, um mês antes dos primeiros registos do coronavírus na China. Qual será o valor de mercado de quem patentear a prometida vacina para o COVID-19? O casino das finanças mundializadas já admite apostas?
Não surpreende, portanto, que grandes corporações e cadeias produtivas farmacêuticas estejam a facturar muito nestes dias de pandemia, assim como as “aplicações” de entrega de comida, plataformas digitais de trabalho, estudo e entretenimento. As acções da Disney desabam e sobem as da Netflix. Os pequenos comércios bairro abrem falência e surgem novas lojas digitais. Aumenta a procura da Amazon, que precisa de contratar mais trabalhadores e os despede quando reclamam contra as medidas de higiene da empresa[13]. Controlo férreo do trabalho, dos recursos estratégicos e sobre a cadeia de produção e abastecimento de alimentos. Nada de novo sob o céu contaminado do capital.
As máscaras que ocultam a negligência
A lógica da acumulação tenta administrar a crise. Ela está por detrás do negacionismo, dos bluffs, da cloroquina, da loucura planeada e de tantos disparates proferidos para distrair a atenção e mascarar negligências. No universo da desinformação é mais fácil aceitar que somos governados por loucos do que a verdade cruel por detrás das suas prioridades. Complexas conspirações são mais credíveis do que a realidade absurdamente simples de que um vírus pode matar muita gente. E que estas vidas pouco importam para a lógica que controla este mundo.
Sofisticadas tecnologias são eficientes para anestesiar os que ficam, evitar empatia com os que se vão, extrair o pior das vísceras de alguns. Os que morrem são “os outros”. Os sentidos de sobrevivência, de classe, de pertença, de possibilidades, fazem o resto. É preciso ficar em casa. Mas quem pode e quem não pode/não tem casa para ficar hoje? E daqui a um mês ou dois? Quem volta primeiro? A quarentena de uns depende de que outros enfrentem o vírus na rua? O que vai ficar do controlo social, vigilância e militarização da sociedade aplicados durante esta tempestade?
São tempos difíceis. Mas os momentos de dificuldade também passam, como nos ensinam a história, a memória, a verdade, as ciências e outros sábios ensinamentos que os tomam a sério baseados na razão. Para toda a doença há algum remédio, talvez também uma fake-news. O antídoto está aí, escancarado na frente de todos. Mas não basta vê-lo. É preciso lutar por ele, conquistá-lo, para que todos o tenham.
Perante a infecção, o organismo reage, cria anticorpos e defende-se, para sair fortalecido. Que as metáforas nos ensinem algo. Que não seja lavar as mãos.
[1] Democracy Now, 03/04/2020.
[2] University Johns Hopkins, 10/04/2020.
[3] Los Angeles Times, 09/04/2020.
[4] El País, 07/04/2020. < https://elpais.com/sociedad/2020-04-07/el-coronavirus-se-ensana-con-los-afroamericanos-en-estados-unidos.html>
[5] Luis Hernández Navarro, LaJornada 07/04/2020. <
[6] HispanTV, 04/04/2020. < http://www.hispantv.com/noticias/politica/463016/iran-eeuu-sanciones-coronavirus-catastrofe>
[7] RT, 17/03/2020.
[8] BBC News, 03/04/2020. < https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-52146237>
[9] Carlos Fazio, LaJornada 04/04/2020. < https://www.jornada.com.mx/ultimas/mundo/2020/04/04/lawfare-y-guerra-asimetrica-vs-venezuela-8860.html>
[10] BBC News, 09/04/2020.
[11] Michael Roberts, 01/04/2020. < https://www.sinpermiso.info/textos/economia-de-guerra-contra-el-coronavirus>
[12] Pepe Escobar, 18/03/2020. < https://www.alainet.org/es/node/205314>
[13] BBC News, 31/03/2020. < https://www.bbc.com/mundo/noticias-52114445>