O MITO ATERRADOR DA GUERRA NUCLEAR LIMITADA

2020-03-04
Brian Cloughley, Strategic Culture/O Lado Oculto
Existem muitos apoiantes influentes da guerra nuclear e alguns deles afirmam que o uso de armas de “baixo rendimento” e/ou de curto alcance pode ser assumido sem o risco de uma escalada para o Armagedão total. De certa forma, o seu argumento é comparável ao do grupo de optimistas de olhos em alvo que pensavam, aparentemente a sério, que poderia haver qualquer coisa como “rebeldes moderados”.
Em Outubro de 2014, o Washington Post informou que “a CIA está a desenvolver esforços secretos para treinar combatentes da oposição síria devido à preocupação com o facto de as milícias moderadas apoiadas pelos Estados Unidos estarem a perder rapidamente espaço na guerra civil no país”; e que, por isso, o Congresso norte-americano aprovou o plano do presidente Barack Obama para treinar e armar rebeldes sírios moderados para lutar contra os extremistas do Estado Islâmico.
Acreditar que possa haver algum grupo de insurgentes descritos como “rebeldes moderados” é uma atitude bizarra, pelo que seria fascinante saber como os estrategos de Washington avaliam essas pessoas. Obviamente não lhes ocorreu que qualquer pessoa usando armas ilegalmente numa rebelião não pode ser definida como moderada. E quão moderado é moderado? Será que um rebelde moderado pode ser equipado com armas norte-americanas que apenas matam extremistas? Ou pode matar apenas cinco crianças por mês? Toda essa noção é absurda e, logicamente, o esquema entrou em colapso depois de terem sido gastas grandes quantidades de dinheiro dos contribuintes norte-americanos.
Bombas nucleares “moderadas”
E quantias muito maiores de dinheiro estão a ser gastas no desenvolvimento e produção do que pode ser qualificado como armas nucleares moderadas, apenas porque não têm o impacto dos zilhões de quilotoneladas arrasadoras da maioria das mais de quatro mil ogivas existentes. Aparentemente acredita-se em Washington que se uma arma nuclear é (comparativamente) pequena, então é menos perigosa que uma grande arma nuclear.
Em Janeiro deste ano, o diário britânico Guardian informou que “o governo Trump alega que o desenvolvimento de uma arma atómica de mais baixo rendimento tornaria menos provável a guerra nuclear, dando aos Estados Unidos uma capacidade de dissuasão mais flexível. Tal opção vem invalidar qualquer convicção inimiga (especialmente a russa) de que os Estados Unidos se recusariam a usar o seu próprio e temível arsenal como resposta a um ataque nuclear limitado, uma vez que os seus mísseis estão todos na faixa dos ‘demasiado grandes para usar’ e poderiam provocar incontáveis vítimas civis”.
A guerra nuclear prevista nesse cenário seria, de facto, uma catástrofe global – assim como serão quaisquer guerras atómicas, uma vez que não há maneira de limitar a escalada. Depois de uma arma nuclear explodir e matar pessoas, a nação possuidora de armas nucleares que for atingida entrará massivamente em acção. Não há alternativa, porque nenhum governo se limitará a ficar sentado e a tentar conversar com um inimigo que escalou o derradeiro degrau da guerra.
Quais serão os limites de uma escalada?
Alguns estrategos nucleares, principalmente no subcontinente indiano, consideram que o uso de uma arma nuclear táctica no campo de batalha poderá convencer de alguma forma o inimigo (Índia ou Paquistão) de que não haverá necessidade de recorrer a armas de maior capacidade e ao lançamento de ogivas em massa. Esta ideia parte do princípio de que o lado atingido avaliará a situação com calma e desapaixonadamente para chegar à conclusão de que, no máximo, deverá responder com arma semelhante. Um cenário que supõe a existência de boa espionagem sobre os reais efeitos da bomba que explodiu no campo do opositor. Estamos, portanto, na antecâmara do impossível.
Os cenários de guerra são muito confusos, pelo que o planeamento táctico pode ser extremamente complexo. E não existem precedentes no caso da guerra nuclear, pelo que ninguém – ninguém – ao certo saberá quais serão as reacções de qualquer nação. A Revisão da Atitude Nuclear de 2018 nos Estados Unidos salienta que as armas de baixo rendimento “ajudam a garantir que os adversários potenciais não vejam qualquer vantagem possível numa escalada nuclear limitada, tornando menos provável o emprego do nuclear”. Será que os potenciais opositores dos Estados Unidos concordam? E como poderão fazê-lo?
A reacção de qualquer Estado com armas nucleares vítima de um ataque nuclear confirmado terá de ser rápida. Não é possível garantir, por exemplo, que o primeiro ataque não seja parte de uma série. Será, por definição, decisivo, porque o mundo ficará a um passo do Juízo Final. A Revisão Nuclear norte-americana assenta na perspectiva optimista de que a “flexibilidade” irá limitar, de alguma maneira, uma troca nuclear ou poderá até convencer uma nação nuclear de que não deve responder, o que é uma hipótese, no mínimo, intrigante.
Segundo o website Lawfare, a Revisão da Atitude Nuclear norte-americana defende a modificação “de um pequeno número de ogivas de mísseis balísticos lançados de submarinos (SLBM) existentes”, de maneira a “proporcionar uma opção de baixo rendimento”.
De acordo com a mesma publicação, a atitude nuclear revista “exige também uma exploração mais aprofundada das opções de baixo rendimento argumentando que a sua expansão ‘contribuirá para garantir que os potenciais adversários não encontrem qualquer vantagem possível numa escalada nuclear limitada, tornando menos provável o emprego do nuclear’. O objectivo é ter em conta o argumento de que os adversários podem pensar que os Estados Unidos, preocupados com danos colaterais, hesitariam em empregar uma arma nuclear de alto rendimento em resposta a um conflito de ‘nível inferior’ em que um adversário usaria um engenho de baixo rendimento”.
O texto explicita igualmente o argumento de que a expansão das opções de baixo rendimento é “importante para a preservação da dissuasão credível”, especialmente “quando se trata de conflitos regionais de menor escala. ”
“Credibilidade” suspeita
“Dissuasão credível” é uma das expressões favoritas dos que acreditam na guerra nuclear limitada, mas a sua credibilidade é suspeita. O ex-secretário da Defesa dos Estados Unidos, William Perry, disse o ano passado que não estava tão preocupado com o grande número de ogivas existentes no mundo como com as propostas abertas de que essas armas são “utilizáveis”. A guerra fria está de volta e o ex-secretário realça que “a convicção de que pode haver vantagem táctica através do uso de armas nucleares – que há muitos anos não vejo ser discutida abertamente nos Estados Unidos ou na Rússia – está agora a acontecer naqueles países que eu acho extremamente preocupantes”. O mais perturbador, porém, é que embora esteja certamente a ser discutida em Moscovo está a transformar-se em doutrina em Washington.
No final de Fevereiro, o secretário da Defesa dos Estados Unidos, Mark Esper, participou num “exercício militar secreto no qual a Rússia e os Estados Unidos trocaram ataques nucleares”. O Pentágono informou que “o cenário incluiu uma situação na Europa em que estamos em guerra com a Rússia e a Rússia decide usar uma arma nuclear limitada e de baixo rendimento contra um alvo em território da NATO”. A atitude dos Estados Unidos foi reagir com aquilo a que o Pentágono chamou “uma resposta limitada”.
Antes de mais, a noção de que a Rússia daria o primeiro passo para a guerra nuclear é completamente infundada e não há indícios nem provas de que tal possa vir a acontecer. Se assim fosse, porém, nem por um instante poderá imaginar-se que Washington responderia no quadro de uma guerra nuclear moderada. Estes jogos de guerra autojustificativos são perigosos. E tornam o Armagedão cada vez mais próximo.