AVENTURAS E DESVENTURAS DO SULTÃO ERDOGAN NA GUERRA DA SÍRIA

2020-02-18
O chefe do regime fundamentalista turco, Recep Tayyip Erdogan, é o responsável pela reactivação da guerra da Síria através do seu crescente envolvimento militar, ao lado dos terroristas, para impedir que a província de Idleb seja libertada pelas tropas de Damasco. Ao fazê-lo, o sultão neo-otomano cumpre orientações geoestratégicas de Washington, contra movimentos russos e chineses em direcção ao Mediterrâneo Oriental, mas caiu no que pode ser uma armadilha: sob o poder aéreo russo, as tropas ocupantes turcas estão cercadas pelo Exército Sírio por todos os lados menos por um: o que permite o regresso ao seu país. As “linhas vermelhas” de Damasco e, sobretudo, de Moscovo quanto ao que Ancara tem a fazer, no âmbito do acordo de Sochi de 2018, são irredutíveis.
Pepe Escobar*, Asia Times/O Lado Oculto
Recep Tayyip Erdogan, um extraordinário neo-otomano, não está exactamente inclinado a cometer o seppuku, o ritual suicida japonês.
Mas, se não for sob a perspectiva do neo-otomanismo, como pode explicar-se o facto de o presidente turco estar a apoiar restos da Al-Qaeda na Síria enquanto enfrenta duas opções repugnantes - uma retirada humilhante ou uma guerra total contra o Exército Árabe Sírio?
A evolução é lenta, o baralhado tabuleiro de xadrez na província de Idleb depende de estradas: é imperativo para o governo de Damasco controlar a estrada M5 entre Damasco e Alepo e a estrada M4, entre Latakia e Alepo. Recuperar completamente esses dois eixos cruciais desenvolverá finalmente a economia síria em crise.
Hoje em dia, pouquíssimos operadores internacionais se lembram do importantíssimo memorando de entendimento de Sochi, assinado entre a Rússia e a Turquia, em Setembro de 2018.
A dúvida ocidental sempre foi sobre se Damasco obedeceria ao acordo. Absurdo. No memorando, Ancara garantiu a protecção do tráfego civil nas duas estradas. É Ancara que não está a cumprir, não apenas em termos de garantir que "grupos terroristas radicais" estejam fora da zona desmilitarizada, mas especialmente no ponto número 8: "No interesse de garantir a livre circulação de residentes e bens locais, bem como de restaurar os laços comerciais e económicos, o tráfego nas estradas M4 (Alepo-Latakia) e M5 (Alepo-Hama) será retomado antes do final de 2018.”
Vastas extensões de Idleb estão, de facto, sob o controlo do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), uma forma abreviada da al-Qaeda na Síria. Ou "rebeldes moderados", como são conhecidos entre as das elites de Washington - ainda que o próprio governo dos Estados Unidos os rotule como uma organização terrorista.
Para todos os efeitos práticos, o sistema Erdogan está a apoiar e a armar o HTS em Idleb. Quando o Exército Nacional Sírio (SAA) reage contra os ataques do HTS, Erdogan fica em polvorosa e ameaça com uma guerra.
O Ocidente compra acriticamente a propaganda de Ancara. Como se atreve o “regime de Assad” a retomar a M5, que “estava sob controlo rebelde desde 2012”? Erdogan é elogiado por incentivar "o Irão e a Rússia a suspender o apoio ao regime de Assad". A NATO invariavelmente condena "ataques às tropas turcas".
A explicação oficial de Ancara para a presença turca em Idleb reduz-se ao envio de reforços para os "postos de observação". Outro absurdo. Esses postos não foram feitos para sair dali. Além disso, Ancara exige que o Exército Árabe Sírio se retire para as posições que ocupava há alguns meses - longe de Idleb.
Damasco não pode “cumprir” essa exigência, porque as tropas turcas são de facto um corpo de ocupação que protege "rebeldes moderados" lutando pela "democracia" que foram decisivamente excluídos por Moscovo - e até por Ancara - do memorando de Sochi. Não há como contornar isso.
A questão do poder aéreo
Vamos olhar para os factos a partir de terra - e dos céus. Moscovo e Damasco controlam o espaço aéreo sobre Idleb. Jactos Su-34 patrulham todo o território noroeste da Síria. Moscovo tem navios de guerra - repletos de mísseis de cruzeiro - estacionados no Mediterrâneo Oriental.
Toda a ofensiva das tropas regulares sírias nos últimos meses para libertar território nacional foi uma demonstração prática dos principais serviços de inteligência russos - planeamento, execução e logística.
O que está a ser montado é um caldeirão clássico - uma réplica do caldeirão de Donbass, na Ucrânia, em 2014, que destruiu o exército de Kiev. O exército sírio está a cercar os turcos por norte, leste e sul. Só haverá uma saída para os turcos: a passagem da fronteira em Bab al-Hawa. De volta à Turquia.
Perante um desastre certo, não foi por acaso que Erdogan teve de falar em "desescalada" com Putin na terça-feira (11 de Fevereiro). As linhas vermelhas, do lado de Moscovo, são irredutíveis: as estradas serão libertadas (de acordo com o texto de Sochi). O sultão neo-otomano não pode entrar numa guerra com a Rússia. Então, sim: ele está a fazer bluff.
Mas por que o faz? Existem três possibilidades principais. 1) Washington está a fazer pressão, prometendo total apoio ao “nosso aliado da NATO”. 2) As Forças Armadas turcas não podem dar-se ao luxo de perder a sua reputação. 3) Os "rebeldes moderados" não ligam nenhuma a Ancara.
A opção 1) parece a mais plausível – mesmo que force Erdogan a confrontar-se directamente com a Rússia, com a qual assinou contratos económicos e energéticos extremamente importantes. Erdogan pode não ser o general Jukov, mas sabe que um bando de jihadistas e apenas seis mil soldados turcos desmoralizados não têm hipóteses contra o exército de Damasco e o poder aéreo russo.
É esclarecedor comparar o actual dilema turco com a aliança dos grupos turcomanos e do Exército Livre da Síria (FSA) quando lutavam em conjunto contra os curdos em Afrin.
Ancara tinha o controlo dos céus e uma enorme vantagem de artilharia - do seu lado da fronteira. Agora a Síria e Rússia mandam nos céus e a artilharia turca simplesmente não pode entrar em Idleb. Sem mencionar que as linhas de abastecimento são terríveis.
Neo-otomanismo revisitado
Então o que está Erdogan a fazer? O que está a acontecer é que a rede da Irmandade Muçulmana de Erdogan administra agora Idleb no solo - uma jogada de reposicionamento fascinante capaz de garantir que o presidente turco continue a ser um homem forte com quem Bashar al-Assad terá de conversar sobre negócios quando chegar a hora certa.
O fim do jogo parcial para Erdogan será "vender" a Assad que, no final de contas, ele foi o responsável por se livrar das nebulosas jihadistas HTS/FSA. Enquanto isso, o circo prevalece - ou melhor, uma péssima ópera, com Erdogan mais uma vez a gostar de interpretar o vilão. Ele sabe que Damasco venceu uma cruel guerra por procuração de nove anos - e está a recuperar todo o seu território soberano. Não há como voltar atrás.
E aqui chegamos à dinâmica complexa do quebra-cabeça turco-iraniano. Devemos lembrar-nos sempre que ambos são membros do processo de paz de Astana, ao lado da Rússia. Na Síria, Teerão apoiou Damasco desde o início, enquanto Ancara apostava - e armava - os jihadistas "combatentes da liberdade democrática".
Do século XVI ao século XIX, o Irão xiita e o império sunita otomano estiveram envolvidos em contenções mútuas intermináveis. E sob a bandeira do Islão, a Turquia de facto governou o mundo árabe.
Saltando no tempo, no século XXI o ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia, Ahmet Davutoglu, codificou o neo-otomanismo. Davutoglu teve a ideia de que o leste da Anatólia não termina nas fronteiras da Arménia e do Irão, mas estende-se à costa oeste do Mar Cáspio. E também pensou que o sul da Anatólia não termina nas fronteiras com o Iraque e a Síria - mas alonga-se até Mosul.
Essencialmente, Davutoglu argumentou que o Médio Oriente tem de ser o quintal da Turquia. E a Síria seria o portão de ouro através do qual a Turquia “recuperaria” o Médio Oriente.
Todos esses planos transformaram-se agora em pó. O panorama geral, é claro, permanece: os Estados Unidos determinados, por todos os meios necessários, a impedir a unidade euro-asiática e a parceria estratégica Rússia-China de ter acesso a rotas marítimas, especialmente no Mediterrâneo Oriental, através da Síria, via Irão.
A microimagem é muito mais prosaica. Esse objectivo de Washington depende de Erdogan e de conseguir garantir que suas tropas de ocupação não sejam derrotadas pelo exército de Assad. Como os poderosos (neo-otomanos) decaíram.
*Jornalista e correspondente de várias publicações internacionais