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WASHINGTON INVENTA UM PARLAMENTO PARA GUAIDÓ

Juan Guaidó à frente do seu parlamento paralelo no jornal El Nacional de Caracas

2020-01-07

O autoproclamado Juan Guaidó foi apeado domingo da presidência da Assembleia Nacional da Venezuela por deputados da oposição, do seu próprio partido e aliados. O cargo serviu-lhe, há um ano, para se catapultar à “presidência interina” do país. Despedido de funções, a justificação de ocupar a presidência do Parlamento para continuar a ser “chefe de Estado” deixou de existir. Então, Washington resolveu o problema: inventou uma Assembleia Nacional paralela na sede de um jornal de oposição e “elegeu” Guaidó o seu presidente. No “quintal das traseiras” vale tudo para impôr “a legalidade”

Victoria Korn*, America Latina en Movimiento/O Lado Oculto

No domingo, 5 de Janeiro, foi empossada a nova direcção da Assembleia Nacional da Venezuela, instância que se colocou fora do quadro institucional em 2016 e que tem agora como presidente Luís Parra (do partido Primeiro Justiça, oposição de extrema-direita) por um período de um ano.

Foram igualmente empossados: Franklym Duarte (Partido Social Cristão, Copei), primeiro vice-presidente; José Gregorio Noriega (Vontade Popular), segundo vice-presidente; e Negal Morales (Acção Democrática), secretário. Todos são membros da oposição ao governo bolivariano.

O acto realizou-se durante a tarde nas instalações da Assembleia; depois disso realizou-se outra sessão, esta inesperada e sob as directivas de Washington: os deputados de direita e extrema-direita que não reconheceram a eleição de Parra realizaram uma sessão na sede do jornal El Nacional e ratificaram Juan Guaidó como presidente da Assembleia Nacional. Muitos deputados não estiveram presentes mas foi-lhes reconhecido o voto electrónico.

O dia de domingo terminou assim com dois presidentes da Assembleia Nacional da Venezuela, um na sede do poder legislativo e outro nas instalações de um meio de comunicação opositor do governo, avalizado pelo governo dos Estados Unidos e divulgado pelos meios de comunicação hegemónicos transnacionais. A conta Twitter da embaixada virtual dos Estados Unidos na Venezuela estabeleceu que o que aconteceu na Assembleia Nacional foi “completamente contra a vontade do povo e das leis que governam o processo. A democracia não pode ser intimidada”.

O que aconteceu no domingo, qualificado pela imprensa hegemónica transnacional como um golpe de Estado no Parlamento, pode servir a Washington como uma nova plataforma para o seu permanente ataque contra o governo venezuelano e o processo político que encabeça. A fractura da oposição, que já se vinha agravando na Assembleia Nacional devido às acusações mútuas de corrupção, transformou-se num cenário de imprevisíveis consequências.

Paralelismo golpista

O que pode ler-se é que por trás dos acontecimentos de domingo está a decisão dos Estados Unidos de impedirem a todo o custo a normalização do país. Por isso, a convocação das eleições legislativas deste ano seguramente não será reconhecida por Washington e, por consequência, pelos que criaram uma Assembleia Nacional paralela.

A ex-direcção da Assembleia Nacional, encabeçada por Juan Guaidó – que usou o cargo para se autoproclamar “presidente interino” – tinha escrito no Twitter logo no início da sessão da Assembleia Nacional: “Golpe no Parlamento. Sem votação nem quórum, deputados do Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV, partido governamental encabeçado por Nicolás Maduro) tentam empossar uma direcção falsa”. Diga-se, de passagem, que não existe qualquer deputado “chavista” na direcção parlamentar empossada.

Luís Parra, o novo presidente do legislativo, especificou que 81 deputados votaram a favor da nova direcção. Francisco Torrealba, da corrente governativa, explicou que Juan Guaidó não tinha votos suficientes para ser reeleito e, devido a isso, negou-se a convocar o plenário de domingo para eleger a nova direcção. (Imediatamente saltou do processo para editar um vídeo a pedido das cadeias de televisão norte-americanas).

Não é a primeira vez que a oposição tenta criar uma instituição paralela; isso aconteceu com o chamado “Tribunal Supremo de Justiça” (TJS) “no exílio”, criado em 2017. A única explicação para a existência de um Parlamento paralelo é manter Guaidó como presidente da Assembleia Nacional e “presidente interino”, de maneira a continuar os planos de Washington, uma vez que nunca conseguiu construir um esboço de governo paralelo. A sua capacidade para mobilizar pessoas é escassíssima e a sua credibilidade está muito ferida.

“Hoje és um pesadelo”

O presidente Nicolás Maduro deixou claro que a nova direcção da Assembleia Nacional continua a ser de oposição. “Vinham surgindo mudanças na Assembleia Nacional: uma rebelião dos próprios deputados da Assembleia. Havia indícios de que Guaidó iria ser afastado pelos próprios membros da oposição”, disse o presidente venezuelano.

“Hoje queremos abrir a porta ao futuro deste Parlamento”, disse Luis Parra da tribuna do hemiciclo, em declarações transmitidas pela televisão estatal. “Este ano há eleições para este Parlamento. (…) Queremos que o CNE (Conselho Nacional Eleitoral) defina como serão realizadas. Devemos regressar à Constituição”, acrescentou.

A nova direcção foi proposta pelo deputado de direita José Brito, que acusou Juan Guaidó de abandonar “por completo a gestão parlamentar” para dedicar-se a “consolidar uma estrutura de poder pessoal”; a sua gestão à frente do legislativo caracterizou-se pela “incompetência, incapacidade e desmedida ânsia de poder”.

Vários deputados da oposição acusaram Guaidó de corrupção e propuseram uma nova direcção da Assembleia Nacional sem o parlamentar do Vontade Popular à frente deste órgão, que viveu um ano marcado pelas actividades corruptas e pela contínua presença à margem das instituições.

Os deputados declararam-se em rebeldia contra Guaidó por este ter utilizado a presidência do Parlamento como um projecto pessoal para se enriquecer. Dos 167 deputados da Assembleia Nacional estiveram presentes 140 e 81, incluindo o sector do “chavismo”, votaram a proposta da nova direcção. No acto participou toda a direcção anterior, com excepção de Guaidó.

“No ano de 2019 que agora acabou, tu foste a esperança do país, hoje és a maior decepção; pudeste ser o futuro, porém hoje és e serás passado; foste um sonho convertido em pesadelo, Juan Guaidó; a partir de hoje o teu tempo acabou”, declarou José Brito, deputado da oposição e membro dos sectores parlamentares de direita.

Perante a ausência de Guaidó e aplicando o Regulamento Interno e de Debates, o deputado mais antigo da Assembleia Nacional, Hector Aguero, assumiu a direcção dos trabalhos para apresentação da lista encabeçada por Parra, que obteve os votos necessários. A equipa de Guaidó qualificou estes procedimentos como “um golpe contra o Parlamento”, uma vez que as eleições “não tiveram nem votação nem quórum”.

Guaidosismo telecomandado

Os obstáculos da oposição venezuelana não estão apenas no “chavismo”. As fissuras de longa data que Guaidó pareceu solucionar com a sua autoproclamação foram-se reabrindo com a frustração, tanto interna como internacional, provocada pela falta de resultados durante o ano.

Guaidó conseguiu imediatamente o reconhecimento de mais de 50 países, incluindo os Estados Unidos, a maioria dos latino-americanos e numerosos europeus; anunciou uma equipa governativa e enviou embaixadores para onde foi reconhecido; e voltou a colocar a crise venezuelana no plano internacional. 

Fracassou, porém, em quase todos os objectivos: não conseguiu que a chamada “ajuda humanitária” entrasse na Venezuela; a chamada “Operação Liberdade” com que pretendia derrubar Maduro ficou-se por uma mera intentona e colocou pedras no caminho da quarta negociação falhada nos seis anos passados desde a morte de Hugo Chávez.

O processo negocial de Oslo e Barbados, que decorreu entre Maio e Agosto, é o “cavalo de Tróia” que muitos analistas culpam da decomposição da oposição. As partes estiveram próximas de assinar um acordo que contemplava a saída de Guaidó e Maduro e que daria lugar a um governo de transição que guiasse o país até novas eleições e, entretanto, resolvesse a crise económica e humanitária.

O processo descarrilou por causa das sanções norte-americanas e Maduro concentrou-se então numa negociação paralela com os partidos minoritários da oposição. Esta deu frutos em Setembro, com um acordo para retomar as conversações incluindo pactos concretos como a libertação dos chamados “presos políticos”, o regresso dos deputados “chavistas” à Assembleia Nacional e a renovação do Conselho Nacional Eleitoral (CNE).

Parra, o novo presidente da Assembleia Nacional, declarou que apesar das diferenças “estamos obrigados a acabar com a confrontação”; e falou de um novo caminho para despolarizar o Parlamento e acabar com os confrontos entre as instituições públicas. Além disso, condenou a comunidade internacional por “ameaçar” deputados eleitos venezuelanos e também pediu a Rússia e Cuba não se “intrometerem” nos assuntos internos do país.

Os apoios de Guaidó 

O partido Cambiemos, do deputado Timoteo Zambrano, condenou a “imposição” de Luis Parra como novo presidente da Assembleia Nacional e assegurou que a “nomeação” é “fraudulenta, viola o Regulamento Interno e de Debates do Parlamento e a Constituição”. Segundo este apoiante de Guaidó, a situação “só agravará a crise política em que vive a Venezuela”.

O partido Cambiemos é, juntamente com as Soluções para a Venezuela, de Claudio Fermín, Avanzada Progresista, de Henri Falcón e o MAS, de Felipe Mújica, parte do grupo de organizações que apoiam a Mesa de Diálogo Nacional com o governo, que avança com negociações para tentar ultrapassar a crise nacional.

Henri Falcón também se distanciou do que aconteceu domingo no Parlamento através da sua conta Twitter, onde escreveu: “Além das nossas diferenças e da mudança que consideramos necessária na direcção da Assembleia Nacional é um dever e um direito de cada deputado eleito pelo povo decidir. Condenamos as acções arbitrárias e violentas que distorceram um acontecimento histórico para o país”.

A contundente e repetida derrota da estratégia insurrecional contra o governo bolivariano demonstra que a direita venezuelana não acumulou suficientes forças políticas, sociais e institucionais para alterar a correlação dentro do país nem para derrubar o presidente constitucional Nicolás Maduro.

Hoje, parte da oposição tenta libertar-se da dependência das estratégias e interesses do governo dos Estados Unidos. A oposição apresenta-se mais débil, desarticulada, desconcertada e a contas com uma imensa derrota, sem lideranças, sem estratégia e sem mensagem.

*Jornalista venezuelana associada ao Centro Latino Americano de Análise Estratégica (CLAE, www.estrategia.la


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