NATO E A CIMEIRA DO SEU ANACRONISMO
2019-12-07
Strategic Culture/O Lado Oculto
A NATO pretendeu assinalar o seu 70º aniversário de maneira retumbante em Londres mas o tiro saiu-lhe pela culatra e transfigurou o show numa farsa notável. Começou tudo com pompa e circunstância num jantar de gala oferecido pela rainha dos britânicos no Palácio de Buckingham mas, ao cabo de dois dias, o cenário transformou-se, é certo, nas esperadas promessas de mais desestabilização mundial – incluindo no espaço – mas também em zangas, escárnio, mal dizer e facadas pelas costas. Para consumo público oficial tudo acabou em bem, mas a verdade é que existem feridas abertas e que não são apenas narcísicas.
Para uma organização que declara como missão “manter a paz e a segurança”, os conflitos internos entre dirigentes da NATO revelaram uma aliança em guerra consigo própria.
O momento culminante da faceta de comédia da reunião aconteceu um pouco antes da sessão de encerramento, quando o presidente dos Estados Unidos – o país que gere a organização – disparou a sua ira sobre os participantes ao aperceber-se de um vídeo em que outros dirigentes zombam dele por causa do estilo de comunicação. O motivo foi a gravação em vídeo, com microfone aberto, de uma conversa onde o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, o chefe do governo britânico, Boris Johnson, e o presidente francês, Emmanuel Macron, trocam dichotes sobre Trump. Este reagiu e o seu alvo preferido foi Trudeau, insultado como tendo “duas caras”.
As manchetes de primeira página de alguns dos principais jornais internacionais glosaram o tema. “Trump sai da reunião da NATO enquanto outros dirigentes se riem dele”, notou o circunspecto The Times de Londres. O Guardian foi no mesmo sentido: “Trump abandona a reunião da NATO ridicularizado pelos aliados”. O Financial Times recorreu à objectividade a cem por cento: “Desunião faz fracassar cimeira da NATO”. E o New York Times preocupou-se com os próximos tempos: “Zangas e incertezas toldam o futuro da NATO”.
Conflitos estratégicos
Os problemas da NATO não parecem corresponder apenas a conflitos de personalidade entre alguns dos dirigentes mais influentes. A chegada de Trump à presidência dos Estados Unidos, o seu estilo muito peculiar e a insistência no aumento das contribuições dos Estados trouxeram apenas à tona as tensões estruturais e estratégicas que vêm aquecendo há muito tempo.
Em síntese, o problema da NATO como aliança dirigida pelos Estados Unidos é que continua a expandir-se embora não tenha um objectivo credível susceptível de fomentar a coesão. Quando foi fundada, em 1949, quatro anos apenas depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a aliança tinha o propósito nominal de defender a Europa de supostas agressões da União Soviética. Na verdade, a história era ao contrário. A NATO foi fundada contra a União Soviética. E o Tratado de Varsóvia, dirigido pela Rússia, foi criado apenas em 1955, seis anos depois da fundação da Aliança Atlântica.
Seja como for, quando a União Soviética entrou em colapso em 1991, encerrando-se assim a guerra fria, a NATO, em vez de se dissolver como o Tratado de Varsóvia, continuou a expandir-se: nas últimas três décadas integrou 17 novos membros, muitos deles junto às fronteiras da Rússia e ex-membros da aliança militar dirigida pela União Soviética.
Ao contrário do discurso oficial, a NATO não mantém a paz e a segurança na Europa. Está a alimentar tensões perigosas com a Rússia; tensões que podem conduzir a uma verdadeira guerra entre potências nucleares.
Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, disse há poucos dias que “a expansão imprudente da NATO” está a colocar em risco a paz internacional. Acrescentou que a aliança funciona como uma máquina imperial de dominação, não apenas no hemisfério euro-atlântico mas também no Médio Oriente.
Obsoleta mas espalhando a guerra
A cimeira de Londres teve como palavra de ordem “inovar a aliança”. No meio das disputas e dos rancores entre os dirigentes, o slogan trai o desespero da organização para encontrar um objectivo credível para a sua existência nos tempos que correm.
A demonização da Rússia através das absurdas alegações segundo as quais Moscovo pretenderia invadir a Europa não faz sentido e não parece capaz de convencer as opiniões públicas ocidentais.
Por isso, o secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, montou uma operação de propaganda para anunciar “inovações”. Declarou à comunicação social que “além de proteger a Europa” a aliança considera pela primeira vez a China como “um desafio”. Anunciou ainda a iniciativa de transformar “o espaço num domínio operacional”; isto é, a NATO pretende criar uma outra frente de guerra numa área a propósito da qual se multiplicam os apelos no sentido de ser preservada como zona de paz.
Estas intenções demonstram, mais do que nunca, que a NATO é um veículo para maximizar a eficácia do imperialismo dos Estados Unidos. A aliança fornece uma cobertura multilateral para aqueles que são os objectivos globais de Washington. É a insistência nesse domínio sobre os europeus que está na origem de grande parte dos conflitos dentro da organização. O presidente francês, Emmanuel Macron, e as suas observações segundo as quais a aliança “está em morte cerebral” são sintomáticas da crescente contrariedade sentida pelos europeus em relação a um dominador capataz norte-americano.
Despesas ruinosas
À medida que a aliança liderada pelos Estados Unidos se foi expandindo – e continua nessa direcção com as possíveis integrações da Geórgia e da Ucrânia – o mesmo aconteceu com os orçamentos militares. Os gastos combinados da NATO são superiores a um milhão de milhões de dólares (um bilião); isto é, 20 vezes o orçamento de defesa da Rússia e cinco vezes o da China.
E tal como crescem o número de membros e as despesas o mesmo acontece com o número de guerras provocadas pela NATO e as operações de mudanças de regime conduzidas pela aliança, da ex-Jugoslávia e Balcãs em geral ao Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria, entre outras. Também nesse âmbito a NATO serve como uma ferramenta para as guerras ilegais dos Estados Unidos dando-lhes uma aparência de multilateralismo e legalidade quando não passam de agressões nuas e cruas em completa violação da legalidade internacional.
Apenas alguns dias antes do início do show de Londres, uma família de cinco pessoas, incluindo uma jovem mãe, foi liquidada por um avião dos Estados Unidos no Afeganistão. Um país que é cenário de uma guerra já com 18 anos provocada pelos Estados Unidos e “branqueada” graças ao envolvimento de todos os membros da NATO que aí se encontram.
O bloco da NATO já ultrapassou o prazo de validade. A sua presença e operação contínuas são algumas das principais razões pelas quais as tensões internacionais entre os Estados Unidos, a Europa, a Rússia e a China estão a agravar-se em vez de melhorar.
Como efeito perverso, o militarismo injustificado da NATO parece estar a acelerar a sua eventual obsolescência. As despesas militares, que funcionam como recursos desperdiçados, são insustentáveis e ruinosos para os seus membros. E o ressentimento interno em relação à arrogância dominante dos Estados Unidos está a suscitar cada vez mais discussão pública. Sem qualquer objectivo credível e genuíno de segurança, funcionando apenas segundo pretextos precários para impulsionar guerras imperialistas, o bloco da NATO caminha para o desvanecimento.
A cimeira do 70º aniversário da NATO, que se transformou num circo com péssimos artistas, funcionou como um portentoso exemplo do anacronismo da NATO.