RÚSSIA REENTRA EM ÁFRICA PERDOANDO DÍVIDAS ANTIGAS
2019-11-29
Dmitry Bokarev, New Eastern Outlook/O Lado Oculto
Na recente cimeira Rússia-África, realizada em finais de Outubro em Sochi, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou o cancelamento de 20 mil milhões de dólares de dívidas acumuladas por países africanos. Qual o significado deste gesto, que mesmo em Moscovo foi muito criticado como uma generosidade sem sentido? Uma das explicações é o facto de a Rússia estar atenta à política chinesa no continente africano.
A actividade económica da China em África cresce a ritmos vertiginosos, penetrando em praticamente todas as áreas da vida económica do continente: energia, indústria, transportes, exploração mineira, construção civil, criação e recuperação de infraestruturas básicas. A China tem investido elevadíssimas somas de dinheiro – cerca de 120 mil milhões de dólares nos últimos quatro anos, no quadro de uma cooperação que existe há décadas.
Graças a esses investimentos, a China tornou-se, no essencial, a potência económica mais influente no continente africano e vem fazendo pleno uso dos vastos recursos económicos africanos, designadamente minerais, combustíveis fósseis e ainda tirando proveito de uma força de trabalho mais barata. Pequim pensa igualmente o continente em termos estratégicos, criando a sua única base militar no estrangeiro em Djibuti, no sensível estreito de Bab-el-Mandeb. Não é uma estrutura militar clássica, para dar apoio a esforços de ocupação político-militares nas regiões adjacentes, mas sim um apoio logístico a uma área crítica da Iniciativa Cintura e Estrada (ICE), também conhecida como “a nova rota da seda”. O estreito em causa é uma passagem estratégica entre o Índico e o Mediterrânio por onde circula quase todo o comércio entre a Europa e a Ásia.
De costa a costa
A China também está a trabalhar arduamente na criação de um sistema de transporte africano unificado para ligar todo o continente através de uma pormenorizada rede ferroviária e rodoviária. A circulação de mercadorias chinesas entre os portos da costa leste e da costa oeste de África faz-se cada vez mais rapidamente através dessas vias, evitando que navios chineses tenham que fazer longas jornadas para entregar as suas exportações nas Américas do Sul e do Norte. A África está a transformar-se, deste modo, num polo fundamental da Iniciativa Cintura e Estrada.
Assumindo a China um papel económico preponderante em África isso significa, inevitavelmente, um aumento de influência política, que permitirá solidificar zonas de controlo, como está a acontecer no Índico. Os projectos de construção de bases militares chinesas na ilha de Madagáscar e no Sri Lanka inserem-se nessa estratégia.
Todo este quadro implica a possibilidade de a China dar um novo passo em frente através do imenso potencial dos recursos naturais em África.
Perdão de dívidas como investimento
A China é a prova evidente de que os elevados investimentos em África proporcionam retorno. E parece que a Rússia chegou à conclusão de que o continente é uma região muito valiosa e geradora de oportunidades. Moscovo prepara-se assim para reforçar a sua entrada em cena na luta de influências no continente africano.
O formato actual das cimeiras Rússia-África parece replicar o das cimeiras China-África. Não se trata de uma coincidência mas de uma indicação de que Moscovo pretende seguir o exemplo de Pequim. Para o fazer, porém, necessita de uma escala de investimentos que envolvem muito dinheiro.
A Rússia, actualmente, não tem condições para competir nessa área. Além disso, para garantir retorno dos investimentos são necessários laços políticos com os países beneficiários.
A Rússia parte de um patamar bastante inferior ao que a China já alcançou. Além disso, os laços entre Moscovo e os países africanos enfraqueceram consideravelmente desde o fim da União Soviética, pelo que a Rússia não sente ainda a confiança necessária para proceder a investimentos de milhares de milhões de dólares.
Portanto, de acordo com o provérbio “um centavo economizado é um centavo ganho”, o facto de a Rússia cancelar dívidas africanas no valor de 20 mil milhões de dólares é uma maneira de fazer um investimento equivalente.
Tendo em conta o nível de desenvolvimento económico da maioria dos países africanos, bem como as elevadas dívidas que estes países têm, designadamente, com a China, é muito possível que não pudessem pagar a totalidade dos montantes em dívida a Moscovo – travando assim oportunidades de cooperação futura.
Em Sochi, a Rússia limpou as dívidas antigas, convidando assim os países africanos a restabelecer uma cooperação económica. Estes ficam agora assoberbados sobretudo com as dívidas a Pequim. O gesto russo, porém, veio tolher um pouco a China caso seja tentada a fazer pressão sobre os devedores para liquidarem as suas obrigações. Os países africanos sabem agora que, recorrendo à Rússia, podem encontrar um parceiro alternativo ao papel dominante chinês.