MÍSSEIS RUSSOS NA TURQUIA ABALAM XADREZ ESTRATÉGICO

2019-07-17
Em 12 de Julho a Rússia entregou à Turquia o primeiro carregamento de mísseis antiaéreos S-400, de acordo com o Ministério da Defesa de Ancara. Estão previstas mais duas entregas até final do Verão, sendo a última, segundo a mesma fonte, de “mais 120 mísseis antiaéreos de vários tipos” e que viajarão por via marítima. A concretização do negócio entre Moscovo e o país que possui as maiores forças convencionais da NATO, a seguir aos Estados Unidos, tem um potencial desestabilizador para as relações de forças existentes entre as grandes potências mundiais.
Prof. Michel Chossudovsky, Global Research/O Lado Oculto
Vários meios de comunicação social, incluindo dos Estados Unidos, afirmam que durante os meses de Julho e Agosto os “operadores turcos de S-400” estarão em fase de treino na Rússia. Um grupo de 20 militares turcos estiveram igualmente num centro de treino russo nos meses de Maio e Junho.
O que está em desdobramento é uma crise na estrutura das alianças militares. A Turquia não pode manter a sua presença na NATO nos termos dos padrões originais ao mesmo tempo que estabelece um acordo de cooperação militar com a Rússia.
A amplitude da resposta norte-americana a esta nova situação ainda não é conhecida em todos os seus vectores, apesar de as mais recentes declarações de Donald Trump contornarem a eventualidade de uma ruptura. Washington tem afirmado que impedirá a Turquia de participar na fase de desenvolvimento operacional dos caças F-35 e de receber os aviões deste tipo em cuja produção investiu desde a primeira hora.
Não é de excluir que a Turquia volte a ser vítima de tentativas de mudança de regime, como a que atingiu o governo de Erdogan em 2016 e abortou porque o presidente turco recebeu informações decisivas da Rússia em cima da hora; da mesma maneira, há que esperar a continuação de represálias financeiras contra a lira turca e também sanções económicas, uma das armas de guerra que os Estados Unidos mais utilizam no momento presente.
Esconder a crise não a resolve
Fazendo lembrar a Primeira Guerra Mundial, as mudanças na estrutura de coligações militares representam momentos cruciais da história.
No entanto, as alianças militares de hoje, incluindo “coligações transversais” entre as mais importantes potências, são marcadamente diferentes e muito mais complexas do que as envolvidas nesse primeiro grande conflito.
A simples hipótese de uma saída da Turquia da NATO poderia contribuir, por exemplo, para enfraquecer a hegemonia dos Estados Unidos no Médio Oriente, além de abalar as estruturas da Aliança Atlântica.
A NATO é uma fortíssima força militar com 29 membros e largamente controlada pelo Pentágono. Um movimento de saída da Turquia da NATO seria passível de agravar as divisões dentro da aliança e de enfraquecer o consenso imposto actualmente pelos governos dominantes, que assenta na ameaça de uma guerra preventiva contra o Irão e a Federação Russa.
Sendo a Turquia ainda oficialmente um membro da NATO, o presidente Recep Tayyip Erdogan tem desenvolvido, sobretudo nos últimos dois anos, “relações amistosas” com os dois maiores inimigos dos Estados Unidos, o Irão e a Rússia.
Ora a cooperação militar entre Washington e Ancara vai buscar as suas raízes à guerra fria e a Turquia tem, de longe, as maiores forças convencionais da aliança, a seguir aos Estados Unidos, ultrapassando a França, o Reino Unido e a Alemanha.
A crise entre a Turquia e os Estados Unidos tem sido deliberadamente ignorada ou banalizada pela comunicação social que faz eco do atlantismo – e que também esconde o facto real de existirem divisões internas sérias na NATO. A entrega dos mísseis S-400 russos à Turquia quase um ano antes do prazo previsto poderá desestabilizar ainda mais a estrutura das alianças militares em detrimento de Washington.
EUA-Turquia-Israel: a extinta tripla aliança
A Turquia é uma aliada do Irão. Inevitavelmente, o facto de a Turquia passar a dispor dos S-400 afectará os actuais planos de guerra dos Estados Unidos contra o Irão – país que vai também adquirir o mesmo tipo de mísseis defensivos.
Este quadro implica, por certo, que mesmo sendo a Turquia um Estado membro da NATO se retire do sistema integrado de defesa aérea constituído pela aliança, os Estados Unidos e Israel. O Estado hebraico é, como se sabe, o maior promotor de uma guerra de agressão contra o Irão.
Isto significa que a antiga aliança entre a Turquia e Israel está extinta.
Em 1993, Israel e a Turquia assinaram um Memorando de Entendimento que levou à criação de “comissões conjuntas” israelitas e turcas para enfrentarem as chamadas “ameaças regionais”. Nos termos do Memorando, os dois países concordaram em “cooperar na recolha de informações sobre a Síria, o Irão e o Iraque e reunir-se regularmente para partilhar as respectivas avaliações em matéria de terrorismo e das capacidades militares desses países”.
A tripla aliança entre os Estados Unidos, a Turquia e Israel foi igualmente acoplada a um acordo de cooperação militar entre a Israel e a Aliança Atlântica em 2005, que incluía “muitas áreas de interesse comum como a luta contra o terrorismo e interesses militares comuns”. Os militares israelitas viam essa cooperação como um meio “de aumentar a capacidade de dissuasão de Israel em relação a potenciais inimigos que ameaçam o país, principalmente o Irão e a Síria”.
A ligação entre os Estados Unidos, a Turquia e Israel foi coordenada pelo Estado-maior Conjunto norte-americano. Era uma tripla aliança com uma estrutura de comando militar integrada e coordenada no âmbito do Médio Oriente alargado. Assentou nos laços militares bilaterais dos Estados Unidos respectivamente com Israel e a Turquia, acrescidos da forte relação militar bilateral entre Telavive e Ancara. Israel e a Turquia tornaram-se parceiros muito próximos dos Estados Unidos por altura dos ataques aéreos contra o Irão que chegaram a ser planeados em 2005. Escusado será dizer que esta tripla aliança está extinta.
O facto de a Turquia estar agora próxima do Irão e da Rússia não facilita as intenções norte-americanas e israelitas de realizarem ataques aéreos contra o Irão. A cooperação militar entre a NATO e Israel estabelecida em 2005 e que assentou fortemente na Turquia tornou-se agora disfuncional; isto é, Ancara deixou de apoiar as ameaças de Washington e Telavive contra Teerão e entrou mesmo numa aliança de conveniência com o Irão.
Cisão na “NATO” do Golfo
As alterações nas alianças militares não se limitam à Turquia. Após a divisão entre o Qatar e a Arábia Saudita, o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG, um ramo da NATO) entrou em desordem: o Qatar aproximou-se do Irão e da Turquia contra a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. O Qatar tem uma enorme importância estratégica, porque partilha com o Irão as maiores reservas marítimas de gás natural do mundo, no Golfo Árabe-Pérsico.
A base militar de al-Udeid, perto de Doha, capital do Qatar, é a maior que os Estados Unidos ocupam no Médio Oriente: abriga a própria sede do Comando Central dos Estados Unidos (CentCom). Por sua vez, a Turquia estabeleceu as suas próprias instalações militares também no Qatar.
Viragem no Sul da Ásia
Uma profunda mudança nas alianças geopolíticas está a acontecer também no Sul da Ásia, sobretudo a partir de 2017, com a integração plena da Índia e do Paquistão na Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Esta alteração histórica constitui, inevitavelmente, um golpe para Washington, que tem acordos de comércio e defesa com ambos os países.
Enquanto a Índia permanece alinhada com Washington, o domínio político dos Estados Unidos sobre o Paquistão (através de acordos militares e de inteligência) foi enfraquecido como resultado dos acordos de comércio e investimento do Paquistão com a China.
Por outras palavras, essa ampliação da OCX enfraquece as ambições hegemónicas dos Estados Unidos no Sul da Ásia e na maior parte da Eurásia. Influencia as rotas de energia, os corredores de transportes, fronteiras, segurança mútua e direitos marítimos.
O Paquistão é a porta de entrada no Afeganistão e na Ásia Central, onde a influência dos Estados Unidos foi enfraquecida em benefício da China, do Irão e da Turquia. A China está envolvida em grandes investimentos mineiros, além do desenvolvimento de rotas de transporte que permitem uma crescente integração do Afeganistão na China Ocidental.
E onde se encaixa a Turquia? Este país faz cada vez mais parte do projecto eurasiático dominado pela Rússia e a China. Em 2017 e 2018, Erdogan teve várias reuniões com os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin; e a Turquia é actualmente um observador da Organização de Cooperação de Xangai.