HUMBOLDT, A VENEZUELA E A TRAIÇÃO DA EUROPA
2019-02-03
Franklin Frederick, especial para O Lado Oculto
«Não se pode elogiar o bastante a legislação das novas repúblicas da América espanhola que, desde o início, tiveram a séria preocupação de acabar definitivamente com a escravidão. Neste respeito, esta vasta parte da Terra tem uma vantagem imensa sobre o sul dos Estados Unidos (…).»
«Na América do Norte os homens brancos criaram para si uma República branca com as mais vergonhosas leis de escravidão.»
Alexander von Humboldt (1769-1859)
Em 2019 celebram-se os 250 anos do nascimento de Alexander von Humboldt, o cientista que, segundo Símon Bolívar, que o conheceu pessoalmente, foi o verdadeiro «descobridor» da América. Entre 1799 e 1804, Alexander von Humboldt, acompanhado pelo botânico francês Aimé Bonpland, viajou pelas colónias da América espanhola de então, explorando regiões que pertencem hoje à Venezuela, ao Equador, à Colômbia, ao Peru e a Cuba. De volta à Europa, Humboldt iniciou a publicação de vários livros contando as suas aventuras na América e revelando, para um curioso e fascinado público europeu, as riquezas naturais e culturais da América do Sul. Ao mesmo tempo que escreveu sobre as maravilhas da natureza tropical da América e a riqueza cultural dos seus povos originários, Humboldt denunciou, como nenhum outro antes dele, os horrores da escravidão, da opressão dos povos indígenas e da injustiça do sistema colonial. A sua importância para o nosso tempo vem justamente da sua capacidade de ver as interrelações entre o meio-ambiente, a sociedade, a política e a economia. Foi ele o primeiro pensador ocidental moderno a descrever cientificamente o planeta como um organismo vivo onde seres humanos, plantas, animais, solos e clima se relacionam e se influenciam. A novidade desta visão, na sua época, onde ainda prevalecia uma visão mecanicista da natureza, foi revolucionária. Para Humboldt, poesia e ciência eram dois modos complementares e necessários para a compreensão do mundo. A sua influência sobre poetas, escritores e cientistas foi enorme. Goethe adorava passar horas conversando com seu amigo mais jovem Humboldt e tanto o «Fausto» como os seus estudos sobre as plantas talvez não existissem como os conhecemos hoje se não fosse pela influência de Humboldt.
Charles Darwin levou consigo na sua viagem no «Beagle» vários livros de Humboldt com os quais dialogava permanentemente. Sem Humboldt, dificilmente Darwin teria escrito a «Origem das espécies» ou Thoreau teria escrito «Walden».
“Quando as florestas são destruídas,,,”
Humboldt foi provavelmente o último pensador a dominar quase a totalidade do pensamento científico de sua época, quando isso ainda era possível, mesmo que extraordinariamente difícil, utilizando este conhecimento para mostrar como diversos fenómenos distintos se encontram em relação uns com os outros, numa abordagem a que hoje chamaríamos interdisciplinar.
Ao explorar a região do lago Valencia, na actual Venezuela, por exemplo, Humboldt começou a compreender as relações entre agricultura e mudança climática. Como ele próprio escreveu:
«Quando as florestas são destruídas, como elas são por toda a parte na América, com uma pressa imprudente, pelos fazendeiros europeus, as fontes de água tornam-se menos abundantes ou secam por completo. Os rios, que permanecem secos em parte do ano, convertem-se em torrentes sempre que as grandes chuvas caem nas montanhas. Com a desaparição dos arbustos e da pequena vegetação nos flancos das montanhas, as águas das chuvas não têm mais obstáculos no seu curso e ao invés de se infiltrarem lentamente nos rios, carregam a terra e formam as súbitas inundações que devastam a região.»
Humboldt chamou a atenção para o facto de as florestas aumentarem a capacidade dos solos de reter água e contribuem para arrefecer o clima. Compreender estas interrelações e como elas contribuem para a mudança climática é parte fundamental do trabalho do IPCC – Intergovernamental Panel on Climate Change – hoje em dia, o que Humboldt já fazia há mais de 100 anos. Mais ainda, Humboldt claramente denunciou o sistema colonial e o modo de produção capitalista – sem usar este termo - como principais responsáveis pela destruição do meio ambiente e consequentes impactos no clima: os fazendeiros europeus e a sua produção voltada para os interesses da metrópole, utilizando mão-de-obra escrava e expulsando os povos indígenas das suas terras. Humboldt denunciou claramente a «barbárie» colonial europeia e apresentou uma visão dos povos indígenas sul-americanos e dos escravos negros completamente diferente das concepções dominantes na sua época. Humboldt não só rejeitou o racismo endémico do seu tempo e a suposta «superioridade» da «raça branca», mas declarou que a cultura dos povos indígenas é tão criativa e diversa como a europeia. Além disso, Humboldt atacou com veemência um dos principais proponentes do «racismo científico» europeu, o conde de Buffon, expondo o ridículo das suas ideias.
O progresso das ciências no século XIX levou inevitavelmente a uma especialização cada vez maior e ao relativo isolamento das diversas disciplinas científicas, dificultando assim a visão integral que Humboldt ainda pode ter do planeta. Esta situação permanece até hoje, pois a maior dificuldade que temos é justamente a de integrar o enorme conhecimento que já acumulamos em diversos campos diferentes numa visão de conjunto, tarefa fundamental que pode contribuir, de maneira decisiva, para o nosso futuro. Mais uma vez, o trabalho do IPCC é um exemplo concreto e actual desta tentativa. Pela sua própria natureza, porém, o IPCC não pode incluir de maneira clara e precisa as dimensões políticas e económicas nos seus estudos, ou apenas aludir superficialmente aos problemas colocados pela economia capitalista e não condenar o capitalismo em si.
Do colonialismo ao nazismo
Se, por um lado, a visão de mundo de Humboldt, combinando filosofia, poesia e praticamente a totalidade do conhecimento das ciências naturais do seu tempo, só foi possível exatamente naquela época; por outro lado, de um certo modo, Humboldt veio «cedo demais». Ele morreu antes de a Alemanha iniciar as suas aventuras coloniais em África, principalmente na Namíbia, e do consequente recrudescimento do racismo «científico», não só na Alemanha mas em toda a Europa. O conde de Gobineau, que retomaria a bandeira do racismo de Bouffon, tão ridicularizado por Humboldt, nasceu em 1816 – Humboldt tinha então 47 anos – vivendo até 1882 – portanto mais de 20 anos depois de Humboldt falecer, mais de 20 anos de «trabalho» em prol do racismo sem um adversário que tivesse a mesma reputação e capacidade de um Alexander von Humboldt. E a ligação entre o colonialismo alemão em África e o posterior surgimento do movimento nazi já foi amplamente demonstrado por historiadores tais como David Olusoga e Casper W. Erichsen em «The Kaiser’s Holocaust». Com a ascensão do nazismo no final dos anos vinte do século XX na Alemanha, como conciliar o pensamento de Humboldt, o mais célebre cientista alemão do século XIX, com a ideologia nazi? Na verdade, ainda no final do século XIX, Humboldt já se tinha tornado uma personagem embaraçosa para a elite cultural capitalista da Europa. Consequentemente, a sua obra tinha que ser amputada da sua parte mais visionária: a sua denúncia do colonialismo e da exploração económica do meio ambiente e dos seres humanos, sobretudo indígenas e escravos. Devia esquecer-se que o mais célebre cientista de todos os tempos atacou o racismo e defendeu os povos indígenas e os escravos negros da exploração económica capitalista – justamente para que esta exploração dos países do terceiro mundo pelas mesmas potências europeias denunciadas por Humboldt pudesse continuar.
Posso estar enganado, mas não creio que Karl Marx – um exacto contemporâneo do conde de Gobineau – tenha estudado em profundidade os escritos de Humboldt, mas não posso deixar de pensar que o marxismo teria adquirido uma outra compreensão sobre os países do terceiro mundo e da natureza caso Marx o tivesse feito. Em relação ao racismo e a uma pretensa «superioridade» da civilização europeia e da «raça branca» sobre os povos indígenas e os negros, por exemplo, as ideias de Hegel, exacto contemporâneo de Humboldt, que tanto influenciou Marx, são bem mais próximas das ideias do conde de Gobineau do que da visão revolucionária de Humboldt.
Humboldt e Bolívar
Talvez a contribuição mais relevante para a compreensão do momento que vivemos hoje venha, porém, da relação entre Humboldt, Símon Bolívar e Thomas Jefferson. No seu retorno da viagem pela América espanhola em 1804, Humboldt passou por um curto período pelos EUA, onde encontrou Thomas Jefferson, então celebrado presidente deste país. Jefferson partilhava dos mesmos interesses que Humboldt pelas ciências naturais e também era uma mente enciclopédica. Os dois deram-se muito bem, conversando por horas quando Humboldt foi hóspede da Casa Branca. Mas havia uma questão fundamental irreconciliável entre os dois: a escravidão. Thomas Jefferson, um dos «pais fundadores» da nova república que se anunciava como pátria da liberdade e da igualdade, não só era proprietário de escravos como reconhecia a importância de manter a escravidão para o desenvolvimento económico dos Estados Unidos. Humboldt denunciou esta hipocrisia e o horror subjacente a uma tal ideia de «desenvolvimento económico». Jefferson também concordava com as ideias de Buffon sobre a «inferioridade» da «raça negra», o que Humboldt considerava uma idiotice.
Pouco depois de seu retorno à Europa, em Paris, Humboldt foi apresentado a um jovem fidalgo recém-chegado das colónias espanholas da América: Símon Bolívar, o futuro «libertador». Mais tarde Bolívar relatou como o encontro com Humboldt abriu seus olhos para as maravilhas e o potencial do seu próprio país, a futura Venezuela. Foi Humboldt quem, de facto, deu a conhecer a América ao próprio Bolívar, como este mencionou na sua famosa «Carta da Jamaica». Os dois voltaram a encontrar-se meses depois em Roma – e desta vez Bolívar já falava da necessidade da independência da América espanhola. Nesse momento os conselhos e a sabedoria de Humboldt foram fundamentais para o amadurecimento político do jovem Bolívar. Ainda em Roma, Bolívar proferiria o juramento de libertar a América, retornando em seguida ao seu país. E as lutas pela independência das colónias espanholas não passaram despercebidas por Thomas Jefferson, que mantinha uma correspondência com Humboldt, solicitando as mais diversas informações sobre o movimento revolucionário liderado por Bolívar à medida que este se desenrolava. Questões a que Humboldt podia responder «melhor que nenhum outro», como escreveu Jefferson. Mas a relação de Jefferson com a luta pela libertação das colónias espanholas era bastante ambígua. Se, por um lado, Jefferson considerava importante o estabelecimento de repúblicas e o fim do controle da monarquia espanhola sobre o território americano, também temia as consequências desta libertação sobre a economia dos EUA. Enquanto a Espanha mantinha o seu controlo sobre as colónias, a economia dos EUA beneficiava da exportação de grãos e trigo para a América espanhola, já que a agricultura das colónias era totalmente voltada para os interesses financeiros da metrópole ou, como diríamos hoje, tratava-se de uma economia baseada na exportação de alguns poucos produtos para o mercado mundial. Com a independência, as colónias poderiam produzir o seu próprio alimento, o que seria um duro golpe para as exportações dos EUA. Além disso, a independência da América espanhola colocava um outro perigo, muito maior, para os EUA, perigo que Jefferson compreendeu muito bem: ele esperava que as colónias permanecessem separadas, que não se unissem num só país, pois como «uma única massa eles serão um vizinho muito poderoso», como Jefferson admitiu.
O significado de uma América do Sul unida
E desde então este tem sido o verdadeiro problema e o grande pesadelo dos EUA: uma América do Sul unida, independente e poderosa. É a razão principal das agressões que vemos hoje dos EUA contra a Venezuela. Que a Venezuela tenha petróleo e outras riquezas naturais cobiçadas pelas grandes corporações multinacionais intrinsecamente ligadas à elite que governa os EUA é um facto, mas não explica completamente a intensa aversão e hostilidade dos EUA à Venezuela. A razão mais profunda e mais antiga é esta que vem desde a época de Humboldt, das guerras de libertação de Bolívar e da administração Jefferson: a necessidade de impedir, por todos os meios, a união da América do Sul, de não permitir seu desenvolvimento independente e soberano. Desde a sua eleição em 1999, Hugo Chavez sofreu três violentos ataques, o golpe de 2002, o «paro» de 2002-2003 e o referendo de «recall» de 2004, fora as permanentes tentativas de desestabilização e de estrangulamento económico. Mas Chávez foi também quem mais contribuiu para a integração latino-americana: a UNASUR e o CELAC foram iniciativas lideradas principalmente pela Venezuela sob o seu governo, representando o maior e mais perigoso desafio à hegemonia dos EUA na região desde a revolução cubana. Hugo Chávez e a Venezuela ousaram retomar o sonho de Simon Bolívar de uma América do Sul independente, unida, soberana e poderosa. O Império não pode suportar esta afronta – nem esta ameaça.
Símon Bolívar, ao contrário de Jefferson, libertou todos os seus escravos e colocou na primeira Constituição do novo país por ele libertado da Espanha a proibição da escravidão, daí a admiração de Humboldt na citação colocada no início deste texto. Humboldt acompanhou e encorajou as lutas pela independência da América espanhola até o fim de sua vida. Entre Jefferson e Bolívar, entre uma nação que liberta os seus escravos e outra que se alimenta deles, Humboldt colocou-se ao lado de Bolívar e do seu projecto. No século XX Humboldt teria defendido e apoiado os movimentos de libertação das colónias europeias em África e na Ásia, teria trocado cartas com Ho Chi Min e defendido o Vietname, saudado a revolução cubana e sido amigo de Fidel Castro e de Che Guevara. Humboldt teria admirado Hugo Chávez e o projeto bolivariano, a ALBA. E hoje, sem dúvida, Humboldt estaria defendendo a Venezuela das agressões da «República dos homens brancos». Gabriel Garcia Márquez sabia disso, por isso colocou Humboldt no seu romance «O General no seu labirinto» e mencionou-o, claro, em «Cem Anos de Solidão».
Humboldt e a traição da Europa
Talvez os eventos programados do «Ano Humboldt», sobretudo por instituições da Alemanha, não venham a falar deste Humboldt, talvez o coloquem como um personagem do passado, com pouca relevância para o presente e sobretudo para o futuro. Afinal, Humboldt hoje pode ser considerado o mais gritante exemplo da traição pela Europa dos seus próprios ideais iluministas. Quando vemos a Europa juntar-se às mentiras proferidas pelo Império sobre a Venezuela, quando observamos a Europa juntar-se ao golpe contra o governo legitimamente eleito de Nicolas Maduro, a agressão não é somente contra o povo venezuelano, é também e sobretudo contra o que a cultura europeia produziu de melhor. Celebrar Humboldt hoje, e ao mesmo tempo não defender a Venezuela, será mais um exemplo da hipocrisia e da falta de honestidade intelectual que parecem ter-se tornado a marca de nossa época.
Caberá talvez à Venezuela, Cuba e Bolívia tomar a frente das celebrações do «Ano Humboldt». Pois Alexander von Humboldt e o seu legado vivem hoje muito mais entre esses povos latino-americanos do que numa Europa neoliberal cada vez mais submissa aos interesses do Império e da «supremacia branca» que ele representa.