A FESTA DA GUERRA E OS SEUS ARRUFOS
2019-12-03
Norman Wycomb, Londres
O presidente francês foi “muito, muito, muito desagradável” e “insultuoso” ao afirmar que “a NATO está em morte cerebral”, disse Donald Trump, o presidente que já qualificou a NATO como “obsoleta” e se queixa, a todo o momento, de que os aliados não pagam o que devem. Os festejos do 70º aniversário da aliança guerreira em Londres prometem.
Como é de tradição, irá acabar tudo em bem, com a natural demonização da Rússia e também da China, como já foi adiantando o secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg.
Até lá, porém – com excepção do jantar de gala providenciado por Sua Majestade a rainha Isabel II – há algumas contas a acertar porque alguns dirigentes com agendas próprias têm evidenciado a tentação de se destacar do cinzentismo castrense.
Emmanuel Macron tratou de marcar o seu espaço através da sua entrevista ao The Economist em que diagnosticou a “morte cerebral” da NATO. Para que não ficassem dúvidas sobre o que ficou dito, o presidente francês repetiu a sentença depois de ter recebido algumas reacções pouco elogiosas. E acrescentou que os aliados “têm perdido confiança” nos Estados Unidos.
O presidente dos Estados Unidos, como inquestionável comandante-em-chefe da aliança, tomou agora a batuta das reprimendas e acusou Macron de ter sido “muito, muito, muito ‘nasty’”, termo que pode traduzir-se como desagradável mas tem várias graduações de sinónimos como “sórdido”, “mau”, “deselegante”, ou mesmo “sujo” e “nojento”. Seja qual for a tonalidade escolhida por Trump, percebe-se que nenhuma das opções é elogiosa.
Erdogan além de Macron
Trump notou que a França é a única voz discordante no unanimismo reinante, no que parece que faltou à verdade uma vez que a Turquia tem as suas reivindicações a apresentar por conta das reacções às operações que desenvolve no Norte da Síria. Recep Tayyip Erdogan parece, portanto, ser outro dos enfants terribles potencialmente desmancha-festejos - e logo ameaçando vetar o chamado “plano de defesa” com o qual a NATO pretende proteger os Estados bálticos e a Polónia das maquinações russas.
A ameaça turca deixou os responsáveis das nações bálticas a pôr água na fervura garantindo que não acreditam na capacidade da Turquia para fazer tão enorme maldade.
Ainda a França
Mas na sua conferência de imprensa, à chegada a Londres, Trump esteve com o discurso afiado sobretudo contra Macron. Alguns jornalistas da comitiva presidencial comentaram que “quem o viu e quem o vê”, fazendo alusão ao facto de Donald Trump ter anteriormente considerado a NATO uma organização “obsoleta” na qual os membros faltam aos seus deveres financeiros.
O presidente norte-americano chegou a afirmar que considera a ideia de a França “se ir embora” da NATO. “Olho para Macron e digo que ele precisa mais de protecção do que ninguém; fico muito surpreendido com a possibilidade de a França se ir embora”, afirmou Trump.
Percebeu-se rapidamente que a animosidade do presidente norte-americano não se deve apenas à “morte cerebral” da NATO, mas também às taxas digitais que o presidente francês impôs a entidades intocáveis para a Casa Branca como o Google e o Facebook, por exemplo. “Começou a taxar produtos dos outros, por isso vou ter de o taxar também”, ameaçou Trump. De caminho, comentou que a França, com Macron, “não vai economicamente nada bem” e citou números do desemprego como exemplo. Trump levava a lição estudada e Macron irá fazer, nesta cimeira, o papel de alvo que o canadiano Justin Trudeau e a alemã Angela Merkel já fizeram noutras.
Como prova de que a sua ideia sobre a “obsolescência” da NATO já é passado, Trump agitou alguns trunfos para demonstrar a fé atlantista. “Desde que estou em funções, o número de membros que cumprem as suas obrigações financeiras duplicou e comigo as despesas da NATO cresceram 130 mil milhões de dólares”.
Tudo acabará na mesma
No final, as celebrações do 70º aniversário da NATO acabarão em bem para que continue tudo na mesma com a expansão global da organização sob as ordens do seu comandante-em-chefe, seja ele qual for, com ou sem impeachment.
Jens Stoltenberg encarregou-se de antecipar a resolução das divergências garantindo que os aliados estão unidos no essencial.
E o essencial, segundo Stoltenberg, é a modernização do equipamento da aliança e o aumento das despesas militares; combater a Rússia e também a China.
Não que a Rússia seja “uma ameaça iminente”, afirmou o secretário-geral, um tanto surpreendentemente. “A ameaça é de estratégia”, sublinhou. E para justificar voltou a citar a suposta intenção russa de desenvolver novos mísseis de médio alcance, uma coisa de que ninguém apresentou provas dentro ou fora da Aliança mas que já serviu para os Estados Unidos abandonarem o Tratado de 1987 sobre a proibição dessas armas. “A Rússia está a fazer coisas erradas, portanto nós temos de fazer o mesmo”, sentenciara Trump.
A aprovação do “plano de defesa” do Báltico” foi dada como assegurada por Stoltenberg, não acreditando, pois, na ameaça de veto colocada pela Turquia. Quanto a Erdogan, a solução passará por uma formulação ambígua sobre a posição turca na Síria com a qual todos se sintam satisfeitos e seguros perante as suas opiniões públicas.
A propósito da China, Stoltenberg garantiu que a NATO vai estar alerta porque se trata de um país “muito activo do Ártico aos Balcãs Ocidentais, no ciberespaço” e que além disso – o que parece uma grande ameaça – “tem investido muito nas nossas infraestruturas”.
Em suma, dois dias de festa, de decisões agressivas tomadas antecipadamente e apimentadas com as travessuras de Trump e Macron, as barganhas de Erdogan, tudo não só para inglês ver mas também todos os aliados.