MACRON E A “MORTE CEREBRAL” DA NATO
2019-11-13
Finian Cunningham, Strategic Culture/O Lado Oculto
O presidente francês, Emmanuel Macron, agitou certamente as águas nos últimos dias quando lamentou que a NATO, comandada pelos Estados Unidos, esteja “em morte cerebral”. Os seus comentários, porém, parecem muito menos relacionados com uma avaliação objectiva e os princípios da aliança do que com uma necessidade de autoafirmação do dirigente gaulês.
Macron, que tem como ambição política central restaurar a França como uma potência global, pode estar a tentar explorar as tensões internas existentes na NATO ao fazer pressão para impôr o seu plano de estimação – a criação de um exército europeu.
Com a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, o presidente francês vê uma oportunidade para tentar catapultar o seu país como a principal potência no continente. O seu apelo à União Europeia para recuperar a “soberania militar” encobre o objectivo de reforçar o poder francês de modo a tornar-se a maior força militar europeia.
Numa entrevista ao The Economist, com sede em Londres, Macron disse: “o que enfrentamos actualmente é a morte cerebral da NATO”. Prosseguiu desenvolvendo a ideia de que os Estados Unidos estão a renunciar ao seu compromisso com a aliança e que Washington “está a virar-nos as costas”. Por isso os Estados europeus devem “acordar”, de modo a “tomarem o controlo do nosso destino”.
As declarações de Macron suscitaram rapidamente reparos dos Estados Unidos e de outros membros da NATO. A chanceler alemã, Angela Merkel, rejeitou a posição de Macron, considerando-a “radical”, e sublinhou que a aliança é “a pedra angular da segurança” da Alemanha.
O secretário de Estado norte-americano, Michael Pompeo, de visita à Alemanha, afirmou que a NATO “tem uma importância crítica” como sempre e sublinhou o compromisso norte-americano com o aliado alemão, em cujo território estacionam 38 mil soldados dos Estados Unidos.
Também o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, rejeitou a aparente depreciação do papel actual da aliança em declarações proferidas ao lado da chanceler alemã.
Ganhar protagonismo
Os dirigentes dos 29 Estados membros da NATO vão reunir-se em Londres nos dias 3 e 4 de Dezembro para assinalar o 70º aniversário da fundação da organização, em 1949; nos bastidores admite-se que o presidente francês tenha dado a entrevista para levantar polémica, influenciar a agenda das discussões e aproveitar a controvérsia a seu favor.
A um nível que deve considerar-se superficial, pode parecer que Macron se apoia num argumento válido. É verdade que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, critica constantemente os membros europeus da NATO, acusando-os de não cumprirem os seus compromissos em matéria de despesas militares. Nesse quadro, tem advertido que os Estados Unidos poderão retirar apoio à aliança. Trata-se de um comportamento típico de Trump na arena internacional, preocupando-se com a partilha de custos insignificantes ao mesmo tempo que insiste na acusação de que “a América está a ser roubada”.
Apesar destes factos, nada indica que “os Estados Unidos estejam a virar as costas” à NATO ou à Europa, como afirma Macron. Pelo contrário, Washington continua a enviar mais tropas, mais tanques e mais aviões de guerra para o território europeu, especialmente para os Estados bálticos, junto à fronteira com a Rússia.
Trump pode ameaçar afastar-se da NATO e da Europa, mas o establishment político e militar dos Estados Unidos sabe muito bem que não é uma atitude para levar a sério. O poder geopolítico dos Estados Unidos depende muito do vínculo transatlântico com a Europa garantido pela NATO – afinal o seu verdadeiro objectivo fundador. A NATO é essencial para a hegemonia de Washington sobre a Europa e, em especial, para evitar qualquer convergência entre a Europa e a Rússia como parceiros estratégicos. A retórica sobre a necessidade de “defender a Europa” de uma suposta agressão soviética, e posteriormente russa, não passa de um pretexto para o exercício do domínio norte-americano sobre a política europeia.
A retórica de Trump
É evidente que as declarações de Macron sobre a NATO são melodramáticas. Quando diz que “actualmente assistimos à morte cerebral” da aliança parte do princípio de que a liderança norte-americana está em causa. Ora a suposta “morte” é apenas superficial, suscitada por uma retórica de Trump que funciona como show-off. Na verdade, segundo todos os pontos de vista essenciais, a NATO e a sua dependência estratégica de Washington como estrutura para projectar o poder norte-americano sobre a Europa são hoje mais importantes que nunca.
Alguns pontos de vista sugerem que Macron considera a retirada de tropas norte-americanas da Síria como uma prova de que a NATO está em declínio. O presidente francês lamenta que a França e outros Estados europeus não tenham sido consultados pela parte norte-americana sobre a intenção de “abandonar os aliados curdos”.
Quando é que a Europa foi consultada?
Esta abordagem comprova que as declarações de Macron sobre o estado actual da NATO são nitidamente excessivas. Quando é que os Estados europeus foram consultados pelo chefe americano que paga as facturas da NATO?
Washington lançou numerosas invasões militares de países estrangeiros ao longo de décadas sem “consulta” antecipada à Europa. É função servil dos membros europeus da NATO simplesmente seguir as ordens dos Estados Unidos e marchar atrás das tropas-norte-americanas nas conquistas imperialistas de Washington. Ao fazê-lo, dão cobertura às acções criminosas norte-americanas com um verniz de “multilateralismo” e “legitimidade”.
Portanto, o lamento de Macron sobre a actual morte encefálica da aliança é um exagero. A NATO vive desde sempre num estado de morte cerebral no que diz respeito à independência europeia e às consultas aos Estados membros. A Europa não é mais do que um zombi seguindo as necessidades imperialistas de Washington.
Recordemos como as potências europeias acataram servilmente o “consenso de Washington” de 1989 estabelecendo a cartilha da política económica neoliberal socialmente desastrosa; ou as guerras catastróficas de Washington no Médio Oriente e na Ásia Central, que estão por detrás de grande parte da crise de refugiados em direcção às sociedades europeias.
Testemunhemos também como os Estados europeus seguem docilmente e empenhadamente a política de hostilidade de Washington em relação à Rússia, adoptando as sanções contra Moscovo que prejudicam as próprias economias europeias.
Note-se que na sua entrevista o presidente francês afirmou que uma Europa mais independente deveria procurar diálogo e parcerias com a Rússia. O que parece uma ideia na direcção correcta acaba por tropeçar na realidade, porque as oportunidades de isso acontecer são muito remotas devido ao domínio de Washington sobre a Europa.
Puxão de orelhas
A tentativa de Macron de provocar controvérsia e alguma acrimónia nas relações entre a NATO e Washington é de êxito mais do que duvidoso e apenas pode ser interpretada como uma acção para ter protagonismo dentro da sua estratégia de afirmar a França como principal potência europeia.
Daí que a chanceler alemã tenha manifestado publicamente a sua reprovação em relação aos ditos de Macron. Afinal, Berlim também tem vindo a demonstrar empenho em aumentar o seu poder militar nacional e uma maior presença nas questões internacionais. Ainda há poucos dias a ministra alemã da Defesa, Annegret Kamp-Karrenbauer, afirmou o interesse numa “implantação proactiva” da Bundeswehr na cena internacional, para garantir “os interesses estratégicos” da Alemanha.
Merkel já se tinha juntado a Macron na defesa da criação de um exército europeu. Também já chegou a afirmar que os Estados Unidos deixaram de ser fiáveis como protectores. Esses comentários de Merkel, Macron e outros políticos europeus não representam, no fundo, qualquer equívoco em relação à natureza do poder norte-americano e a sua relação primordial com a Europa. Os apelos à criação de um exército europeu não traduzem uma rejeição do militarismo da NATO; revelam antes que a Alemanha e a França estão a tentar fazer reviver os seus respectivos militarismos nacionais.
Nestes dias, no entanto, o neo-napoleónico Macron parece ter ido um pouco longe demais na cruzada pelo renascimento do poder global francês. O exagero das críticas à NATO e aos Estados Unidos está relacionado com um aumento do poder militar francês através do desempenho de um papel de supervisor militar da Europa. E logo a tia Merkel se viu obrigada a puxar as orelhas do traquino garoto francês. Porque Berlim tem projectos próprios.