AFEGANISTÃO: WASHINGTON SAI SEM SAIR
2019-01-04
Masud Wadan*, Cabul; Global Research/O Lado Oculto
Muitos aliados dos Estados Unidos no Médio Oriente e no Afeganistão ficaram surpreendidos com o anúncio da retirada de tropas da Síria e do território afegão feito pelo presidente Donald Trump. Embora alguns acreditem que a decisão foi originada com o objectivo de angariar vantagens internas pessoais e do seu partido já na perspectiva das futuras eleições presidenciais, isso não corresponde à realidade, sobretudo no Afeganistão, onde a história é muito diferente. A presença dos Estados Unidos na Síria deveu-se, em parte, a interesses israelitas como a contenção da influência iraniana – pelo que esta decisão enfureceu Telavive.
Há já alguns meses que os Estados Unidos estão a trabalhar numa reformulação da política em relação ao Afeganistão, pelo que a retirada de sete mil soldados num total de 14 mil não deve considerar-se uma decisão repentina. Resulta antes de uma nova agenda já perceptível nos mais recentes movimentos norte-americanos em relação a este país.
A decisão aparentemente abrupta e fruto de uma teimosia pessoal do presidente encontrou opositores, apelos à mudança de opinião e até renúncias de legisladores e generais. O próprio Pentágono, antes e durante o consulado de Mattis, defendeu a continuação militar na Síria e no Afeganistão. No entanto, a iniciativa apenas significa que Trump não se limitou a falar com os seus colaboradores mais próximos, uma vez que, por uma questão de senso comum e de realismo, o presidente não teria condições para decidir sozinho sobre estas matérias.
Afeganistão não fica a ganhar
Neste momento, os Estados Unidos têm nove megabases militares operacionais no Afeganistão e alguns milhares de soldados não-combatentes, pois as operações de combate já foram suspensas há algum tempo. Existe, portanto, uma situação em que a retirada não afecta muito a presença e a influência norte-americanas. Os grupos da oposição armada controlam mais de metade do país; e estão a decorrer conversações discretas sobre a paz e o futuro do Afeganistão; além disso, as próximas eleições presidenciais estão previstas para Abril de 2019. Tudo isto estabelece um terreno favorável para que se desenvolvam grandes mudanças.
Há vários meses que decorrem negociações do enviado especial dos Estados Unidos, Zalmay Khalilzad, com os Talibã e com os governos regionais, supostamente sobre o estabelecimento da paz, embora os segredos se desdobrem de dia para dia.
Se os Estados Unidos tivessem decidido a retirada com mais de metade do país sob o controlo do governo de Cabul, tal facto poderia indicar uma visão optimista quanto ao futuro e a prosperidade do Afeganistão. Porém, com os Talibã controlando a maior parte das grandes cidades e distritos do país e as conversações secretas a decorrer no Qatar e nos Emirados Árabes Unidos, existe a possibilidade de surgir uma grande mudança no horizonte, provavelmente em detrimento dos reais interesses da nação afegã.
Um acordo de sucessão
Relatórios não públicos revelam que a retirada de metade do contingente norte-americano do Afeganistão resulta de um acordo entre os Estados Unidos, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Sabe-se igualmente que o ex-chefe de Estado-Maior do Paquistão, o general Raheel Sharif – que também comandou a guerra do Iémen liderada pela Arábia Saudita, por encargo do ex-presidente paquistanês – convenceu Riade e os Emirados a enviar tropas para o Afeganistão. Diz-se que as tropas recém-chegadas dos países do Golfo estão instaladas no sul do Afeganistão para “ajudar a acabar com qualquer possível perturbação que surja com a retirada dos Estados Unidos e da NATO”. Mas se acontecer alguma coisa, continuarão a existir condições para os Estados Unidos retomarem o controlo operacional da situação sem cedências às intenções de paz ou, por outras palavras, manterem as suas enormes fontes de lucros: o tráfico de narcóticos, o comércio clandestino e a continuação da rentável exploração de minerais estratégicos.
Após as eleições presidenciais de 2019, o governo de Cabul será cuidadosamente delineado de forma a garantir os interesses dos Estados Unidos. A formação de um governo vigilante, obediente e dedicado aos Estados Unidos está no topo da agenda de Washington. De cada vez que um presidente afegão se aproxima do final do mandato, os políticos norte-americanos fazem um balanço sobre a sua manutenção ou substituição por alguém mais fiel. É do conhecimento geral que o actual governo bicéfalo formado pelo presidente Ashraf Ghani e o primeiro-ministro Abdullah Abdullah foi “cozinhado” nos bastidores sob o comando do então secretário de Estado norte-americano, John Kerry.
Trump acredita que, neste momento, os interesses dos Estados Unidos podem ser mantidos sem a presença física de tropas norte-americanas no terreno, partindo do princípio de que não deve ser Washington a arcar com os custos inerentes e os riscos de manter os seus soldados envolvidos directamente no conflito.
O presidente norte-americano e os que contribuíram para a decisão de retirar as botas militares do terreno são de opinião que o Afeganistão tem agora um número suficiente de peões em gravatas e em armas devotadamente leais aos Estados Unidos de modo a garantir os seus omnipresentes interesses económicos, políticos e militares. Deixou de ser necessária a presença de grande número de militares, o que também contribuirá para poupar Trump às críticas internas contra a intervenção.
Os Estados Unidos pretendem que o próximo presidente afegão e o seu governo mantenham a Rússia e o Irão à distância. O poder judiciário, legislativo e executivo do Afeganistão estão centralizados nas mãos do presidente, que tem autoridade para tomar decisões delicadas sem consultar ou prestar contas a outro qualquer órgão estatal. É essa a razão pela qual a escolha de um candidato adequado para os Estados Unidos é a melhor garantia de que o país será governado de acordo com os interesses de Washington.
O muro de arame farpado e o papel do Paquistão
Isso poderá, contudo, ser insuficiente. Daí que a nova agenda norte-americana esteja muito focada em forças árabes (e, possivelmente, paquistanesas) que deverão contribuir para a gestão do Afeganistão; decorrem, portanto, negociações sobre a maneira como devem ser preenchidas as lacunas provocadas pela parcial retirada militar dos Estados Unidos.
Taadin Khan, chefe da polícia de Kandahar e irmão mais novo do ex-chefe, Abdul Raziq, revelou que o Paquistão enviou os seus próprios representantes, sob capa de dirigentes talibãs, às negociações de paz do Dubai, numa tentativa de ganhar as maiores vantagens possíveis com a grande transição em perspectiva.
Porém, as frequentes viagens de Zalmay Khalilzad ao Afeganistão, Paquistão, Rússia e Estados árabes efectuadas nos últimos meses, como enviado especial dos Estados Unidos, ainda não passaram de trocas de informações e diligências na procura de um consenso que acompanhe a mudança da política norte-americana em relação a Cabul.
Um outro desenvolvimento revelador das mudanças em curso em relação ao Afeganistão é a imensa barreira de arame farpado que o Paquistão começou a erguer em 2018, ao longo da disputada fronteira com o Afeganistão designada “Durand Line”**, e que deverá ficar concluída em 2019. Habitualmente, grupos armados treinados em áreas tribais do Paquistão têm cruzado livremente essa fronteira para o lado afegão sem um mínimo de resistência em ambos os países.
Sob o governo de Ashraf Ghani, os Talibã e grupos afins consolidaram as influências nas regiões sob seu controlo no interior do Afeganistão, em áreas onde quase não encontram resistência, construindo os seus campos de treino e praticamente institucionalizando a sua presença. O Paquistão deixou de sentir necessidade de alojar e exportar grupos extremistas para o Afeganistão, significando isso que o regime de Islamabade está consciente do que se prepara em termos de mudanças estratégicas dos Estados Unidos na sua política afegã.
Abdul Raziq, o poderoso chefe da polícia de Kandahar que foi assassinado em consequência de um atentado suicida, cometido depois de ter participado numa conferência de imprensa com o norte-americano Scott Miller, opôs-se com firmeza à construção da cerca paquistanesa quando esta chegou à zona sob sua jurisdição. O assassínio de Raziq deveu-se, em parte, à sua atitude anti-paquistanesa e ao combate à barreira de arame farpado.
A violência e a guerra continuam
Infelizmente, em tempos tão instáveis caracterizados pelo facto de cada Estado estrangeiro envolvido na guerra afegã tentar extrair o maior volume de vantagens possível, a cidade de Cabul, a capital, é palco frequente de ataques armados indiscriminados, e sem lógica aparente, contra edifícios governamentais não-militares. Já nos últimos dias de Dezembro, assaltantes armados invadiram o edifício da Autoridade Nacional para Pessoas com Deficiência e Famílias dos Mártires a seguir a um violento atentado suicida cometido à entrada das instalações, precisamente no momento em que os funcionários estavam a sair ao fim de um dia se trabalho. Quase 50 pessoas perderam a vida em consequência da explosão ou sob as balas dos assaltantes que as perseguiram no interior do edifício, andar após andar.
Nenhuma organização assumiu a responsabilidade pelo ataque, sendo improvável que alguma venha a fazê-lo ou a aceitar eventuais acusações. Tratou-se, provavelmente, de mais um episódio da guerra entre redes regionais de informações e espionagem que ceifam intencionalmente vidas de cidadãos afegãos comuns como forma de pressão contra o governo central ou outras partes envolvidas no conflito.
*Analista geopolítico em Cabul
** Designação da linha fronteiriça entre a Índia britânica e o Afeganistão definida em 1893 e reformulada em 1919. É a actual fronteira internacional entre o Paquistão e o Afeganistão, com 2430 quilómetros de extensão