CHOCAM-SE OVOS DA SERPENTE NO URUGUAI

2018-10-26
Nicolás Centurión”, Portal Vermelho/O Lado Oculto
A direita uruguaia continua a apostar numa estratégia para impôr no imaginário colectivo a sensação de mal-estar e insegurança, de modo a justificar depois qualquer tipo de intervenção externa: diplomática, política, militar ou de inteligência, devido à dificuldade em derrubar o governo de centro-esquerda da Frente Ampla.
A ideia agora é reinventar o fantasma do terrorismo, com uma teoria conspirativa segundo a qual o procurador argentino Alberto Nisman teria sido assassinado por uma célula iraniana do Hezbollah, com contactos na Venezuela e bases na Tríplice Fronteira (Brasil Argentina e Paraguai) e no Uruguai (em Montevideo), segundo (supostamente) os serviços secretos norte-americanos. Será uma rábula do humorista argentino Peter Capusotto ou a trama de uma dessas horríveis séries da Netflix, que tenta ser complexa e acaba apenas por ser um pastelão mal contado? Não, quem promove esta narrativa é a deputada uruguaia opositora Graciela Bianchi.
Destas declarações, surge a pergunta: por que os serviços de inteligência dos Estados Unidos dariam informação a uma deputada da oposição de um país onde não ocorreu a morte? Desde quando tem ela esta informação? Por que a apresentou aos meios de comunicação e não à Justiça? Sem dúvida, ela tinha um objetivo: gerar medo na população.
Mas, quem é Graciela Bianchi? Deputada do parlamento eleita com um discurso de “defensora da República”, trata-se de uma ex-apoiante da Frente Ampla, conhecida pelo seu tom prepotente e ressentido, que há pouco tempo aderiu ao Partido Nacional. O seu papel, tanto no Parlamento como nas redes sociais, tem sido vergonhoso, como mostram suas declarações públicas.
Já foi apanhada a dormir durante uma sessão parlamentar e destaca-se publicando enraivecidos manifestos nas redes sociais, com uma redacção surpreendente para quem já foi uma directora de escola secundária pública.
Mas isto não é somente um delírio e não procura o mero espectáculo político. É uma estratégia para gerar um contínuo mal-estar na população. Cultivar a sensação de insegurança para logo justificar qualquer tipo de intervenção estrangeira. Desta forma, o Estado de excepção volta a ser falado. Bianchi derrapou de forma atroz e até a cúpula do seu partido não lhe deu crédito; mas conseguiu gerar na população o efeito desejado.
O dano já está feito, observando-se como se multiplicam agora as conspirações no seio da sociedade uruguaia. Bianchi não está sozinha, a direita tem um leque de opções para tentar derrotar a Frente Ampla nas eleições de 2019:
– Verónica Alonso (Partido Nacional), líder da bancada contra a “ideologia de género” e a favor de um só tipo de família convencional, juntamente com pastores evangélicos e fanáticos religiosos associados a movimentos regionais que se posicionam sobre o tema.
– Carlos Lafigliola (Partido Nacional), ultraconservador em termos de direitos civis, que quer acabar com a Lei do Aborto impulsionada pelo governo do ex- presidente José Mujica, entre outras.
– Jorge Larrañaga (Partido Nacional), líder da campanha “viver sem medo”, a favor do uso dos militares na segurança pública – embora ele mesmo afirme que não sente medo de viver no Uruguai.
– Luis Alberto Aparicio Alejandro “Cuquito” Lacalle Pou (Partido Nacional), que aproveita o facto de liderar as pesquisas internas do seu partido, mostra uma imagem de moderado, mas é conservador no âmbito social e liberal no económico. Não votou a favor dos projectos de lei importantes para os trabalhadores, tão pouco apoiou os das minorias que sempre são discriminadas.
– Edgardo Novick (Partido da Gente), um empresário que paga salários miseráveis nos seus estabelecimentos comerciais. É um antimujiquista e a sua campanha é sustentada pela própria fortuna, já que carece de ideias.
– Ernesto Talvi (Partido Colorado), associado à rede conspirativa internacional Rede Atlas. Um visionário que, no final do Século XX, fez previsões positivas sobre o futuro económico do Uruguai e três anos depois o país sofreu a pior crise de sua história. A Rede Atlas acaba de desembarcar no Uruguai através do movimento Acção Republicana, encabeçado pela guatemalteca Gloria Álvarez.
Como brinde, suge o caso do presidente do Centro Militar, coronel Silva Valiente, que fez fortes declarações contra a comunidade LGBT, ao melhor estilo Jair Bolsonaro; e também afirmou que o Uruguai não teve uma ditadura militar, reivindicando uma homenagem ao ex-presidente de facto, o general Gregorio “Goyo” Álvarez. Considera que o candidato ultradireitista à Presidência do Brasil merece o seu respeito: “temos que ser tolerantes com Bolsonaro”.
Embriagados com a conjuntura
Assim está o panorama. É assustador imaginar os efeitos que podem ter no país os exemplos dos Bolsonaro, dos Trump, que parecem seres vindos de outra realidade, de uma ficção. Ficamos em choque diante da obscenidade de algumas declarações, mas não damos importância às simples situações quotidianas que nos deixam sem reacção: o taxista que pede a pena de morte, o colega de trabalho que quer o fim dos sindicatos, o chefe que assedia uma colega, o vizinho que defende a morte dos indigentes.
Todas estas pistas nos conduzem à bestialidade, mas caminhamos com a cabeça baixa relativizando um sentir comum fascista, até começar a escutar o golpe das angústias no peito.
O Uruguai não será uma excepção dentro da região. A estratégia é continental, vem sendo gerada há décadas, e orquestrada no norte. O Uruguai não é uma potência mundial, mas o interesse que desperta nos planos imperialistas demonstra que cada território deve ser disputado, e que o inimigo é implacável.
Observamos disputas partidárias que começam a perder a forma tradicional. As batalhas eleitorais passam a enfrentar dois tipos de projetos: o ajuste, a repressão e o fascismo por um lado; e, por outro, a democracia – com todos os seus defeitos, mas democracia enfim.
O mundo de alguns poucos, onde a desigualdade e a miséria serão cada vez maiores, contra um mundo onde caibam as grandes maiorias. E aí se visualizará claramente quem luta com e para o povo.
Mas enquanto não arrancarmos da raiz este sistema, a disputa será sempre entre os de baixo e os de cima. “Se vir as barbas do vizinho a arder, organize-se e o fascismo ajude a varrer”, respondem os universitários uruguaios.
*Nicolás Centurión é estudante de Psicologia da Universidade da República do Uruguai. Analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)