QUANDO OS TRATADOS SE ASSINAM PARA SEREM VIOLADOS
2020-08-12
É suposto que a assinatura dos tratados internacionais implica o respectivo cumprimento. Nisso assenta – ou melhor, deveria assentar – uma ordem internacional na qual cada Estado respeita os compromissos assumidos perante os outros e as instâncias internacionais. Não é assim, porém, que as coisas funcionam: a Itália, por exemplo, assinou o Tratado de Não-Proliferação de armas Nucleares e possui armas nucleares no seu território, o que viola o compromisso assumido. Na verdade, trata-se de uma certa forma displicente de olhar a legalidade internacional muito corrente entre Estados membros de instituições como a NATO e a União Europeia. Sendo o caso de Itália, como muito bem sabemos, não a excepção mas sim a regra.
Manlio Dinucci, Roma; Il Manifesto/O Lado Oculto
No 75º aniversário do bombardeamento atómico de Hiroxima e Nagasaki, o presidente da República Italiana, Sergio Matarella, reafirmou que “a Itália apoia com determinação o objectivo de um mundo livre de armas nucleares”. O presidente da Comissão de Defesa do Parlamento, Gianluca Rizzo (Movimento 5 Estrelas) assumiu-se como o seu eco: “Faço minhas as palavras do presidente da República por uma política que tenda para um mundo livre de armas nucleares”. Portanto, empenho institucional máximo, mas em que direcção? Falemos com base em factos.
A Itália ratificou em 1975 o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que estipula: “Qualquer Estado não dotado de armas nucleares que seja Parte do Tratado compromete-se a não aceitar de quem quer que seja, directa e indirectamente, a transferência de armas nucleares ou outros dispositivos explosivos nucleares ou de controlo dessas armas ou desses dispositivos explosivos”. Violando o TNP, a Itália cedeu as suas próprias bases para receber armas nucleares norte-americanas: actualmente são bombas B61, com um número calculado em várias dezenas mas que não é verificável. Estão instaladas nas bases de Aviano, com os caças norte-americanos F-16C/D, e em Ghedi-Torre, onde os Tornado PA-200 da Força Aérea italiana estão preparados para ataques nucleares sob comando dos Estados Unidos.
A Itália, confirma a NATO, faz parte dos países que “fornecem à aliança aviões equipados para transportar bombas nucleares, sobre as quais os Estados Unidos mantêm o controlo absoluto, e pessoal treinado para este objectivo”. As B61 serão substituídas brevemente pelos engenhos do modelo B61-12: uma nova bomba nuclear com uma potência seleccionável no momento do lançamento, que se dirige com precisão para o alvo e tem a capacidade para penetrar no subsolo para destruir os bunkers dos centros de comando.
Uma base avançada de guerra
O programa do Pentágono prevê a construção de 500 bombas B61-12, o que implica uma despesa de 10 mil milhões de dólares. É um programa que está na fase final: nos polígonos do deserto do Nevada estão em curso testes de lançamento da nova bomba (sem ogiva nuclear). Entre os aviões certificados para a sua utilização estão os Tornado PA-200 e os novos F-35, em fase de entrega à Força Aérea italiana. Não se sabe quantas bombas B61-12 serão armazenadas em Itália e noutros países europeus. Poderão ser mais numerosas que as B61 instaladas noutras bases. A base de Ghedi, agora reestruturada, poderá acolher até 30 caças F-35A com 60 B61-12. Às novas bombas juntam-se as armas nucleares da Sexta Esquadra norte-americana baseada em Itália, cujo tipo e o número são secretos. Por outro lado, uma vez que o Tratado INF (proibição de mísseis nucleares de médio alcance) foi abandonado, os Estados Unidos estão em fase de desenvolvimento de mísseis desse tipo instalados em terra, os quais, como os euromísseis dos anos oitenta, poderão também ser colocados em bases italianas.
A Itália, oficialmente um Estado não-nuclear, desempenha assim a sempre perigosa função de base avançada da estratégia nuclear dos Estados Unidos e da NATO contra a Rússia e outros países. Enquanto membro do Conselho do Atlântico Norte, a Itália rejeitou, em 2017, o Tratado da ONU sobre a abolição das armas nucleares. Durante esse mesmo ano mais de 240 deputados italianos – maioritariamente do Partido Democrático e do Movimento 5 Estrelas actualmente no governo – empenharam-se em promover a adesão da Itália ao Tratado da ONU ao assinarem o Apelo ICAN. Na primeira fila estiveram o actual presidente da Comissão de Defesa, Gianluca Rizzo, e o actual ministro dos Negócios Estrangeiros, Luigi Di Maio. Passados três anos os factos provam que o seu solene compromisso não passou de um expediente demagógico para caçar votos.
Para concretizar em Itália “uma política que tenda para um mundo livre de armas nucleares”, como proclama Gianluca Rizzo, existe apenas um caminho: libertar o país de armas nucleares, como determina o TNP, e aderir ao Tratado da ONU cumprindo o que nele se estipula: “(…) cada Estado signatário que disponha de uma arma nuclear ou outro dispositivo explosivo nuclear no seu território ou em qualquer outro local colocado sob a sua jurisdição ou controlo dos quais um outro Estado seja proprietário ou detentor, ou que controle, deve proceder à retirada rápida dessas armas o mais depressa possível”.
Os signatários do Apelo ICAN exigem, deste modo, aos Estados Unidos para retirarem todas as armas nucleares de Itália. Se no Parlamento de Roma existe alguém que pretende um mundo livre de armas nucleares, então que o mostre não por palavras mas com factos.