O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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CHAMAM-LHE “POLÍTICA”: O ESCÂNDALO DAS “RECOMPENSAS” É O NOVO RUSSIAGATE

2020-07-04

O mundo da política nos Estados Unidos da América, que serve de padrão a todas as “democracias”, está abaixo de lixo. Os principais arautos da comunicação corporativa servem-se agora de “fugas anónimas” para acusar a Rússia de pagar aos Talibã para matarem soldados norte-americanos no Afeganistão – e assim conseguirem um dois em um: intervir nas eleições presidenciais impondo uma tónica militarista e armadilhar as possibilidades de paz, fazendo a vontade ao Pentágono. Montadas as “fugas” sem qualquer prova, abundam as hipóteses de se tratar de uma nova versão do fracassado “Russiagate”, que fazia de Trump um “agente de Moscovo”. A “democracia” que se vai usando em todo o mundo e a comunicação dominante que se pratica têm, sem dúvida, uns bons mestres.

Alan McLeod, MintPress/O Lado Oculto

Com base em fontes anónimas dos serviços secretos, o New York Times, o Washington Post e o Wall Street Journal têm vindo a publicar relatos bombásticos através dos quais pretendem fazer acreditar que a Rússia está a pagar recompensas aos Talibã por cada soldado norte-americano que consigam matar no Afeganistão. A história está a provocar escândalo nos Estados Unidos, dominando o ciclo de informação e fazendo com que o candidato democrata Joe Biden esteja a aproveitar-se da situação: acusou Trump de “abandono do dever” e de “continuar a sua campanha embaraçosa e de submissão perante Vladimir Putin”, que está “para lá de todos os limites”.

Existem, contudo, todos os motivos e mais alguns para duvidar da autenticidade dos relatos. Em primeiro lugar, parecem basear-se na sua totalidade em informações de funcionários dos serviços de inteligência que exigiram o anonimato. As fontes não apresentaram qualquer prova concreta nem demonstraram que qualquer soldado norte-americano tenha morrido em consequência dos supostos incentivos; tudo se resume a informações vagas que os seus autores admitem ter sido obtidas a partir de militantes afegãos “interrogados” (isto é, torturados). Os artigos publicados admitiram, inclusivamente, a incerteza quanto à fidelidade das únicas fontes que estão na sua origem; a Casa Branca, o Kremlin e os Talibã rejeitaram com veemência as informações postas a circular.

Exemplos há muitos

As questões da “segurança nacional” dos Estados Unidos têm estado na origem de sucessivos episódios baseados em informações de “autoridades anónimas” e que têm conduzido a situações de guerra. Em 2003, o país estava inundado de histórias sobre as armas de destruição massiva em poder de Saddam Hussein no Iraque; em 2011, fontes anónimas fizeram circular rumores de que estaria iminente um genocídio na Líbia; e em 2017 foram também “fontes anónimas” da inteligência que acusaram o presidente sírio, Bachar Assad, de estar por detrás do uso de armas químicas em Douma, preparando o terreno para bombardeamentos efectuados pelos Estados Unidos, Reino Unido e França. Todas essas informações se revelaram falsas.

“Depois de tudo pelo que já passámos será que podemos dar aos ‘funcionários de inteligência’ anónimos do New York Times o benefício da dúvida sobre coisas deste género? Acho que não”, afirma Scott Morton, director editorial da publicação Antiwar.com e autor de um livro em que defende o fim da guerra no Afeganistão. “Todas estas histórias foram escritas numa linguagem onde se admitem dúvidas sobre a veracidade dos factos relatados”, acrescentou. “Na prática, limitam-se a relatar o ‘facto’ de que existem boatos”.

Scott Morton recorda que “já em 2017 houve alegações de que a Rússia estava a armar e a pagar aos Talibã, mas generais directamente envolvidos admitiram no Congresso que também eles não tinham provas. Num episódio humilhante, passado também em 2017, a CNN montou um grande escândalo sobre o suposto apoio de Putin aos Talibã com base em algumas fotos de membros deste grupo usando velhas armas russas. Os jornalistas veteranos militares da publicação Task and Purpose desmontaram rapidamente todos os fundamentos dessa matéria falsa. 

Há bastante mais gente céptica em relação a este novo escândalo.

Joanne Leon, apresentadora do Podcast Around the Empire, um programa dedicado às acções militares norte-americanas no exterior, declarou a propósito:

“Para mim, o ponto principal é que depois de incontáveis fugas de ‘inteligência anónima’ (relacionadas com o chamado escândalo Russiagate), muitas das quais se revelaram comprovadamente falsas ou que nunca foram sustentadas em provas reais, não posso levar a sério esta história. A própria ‘comunidade de inteligência’ não pode concordar com a credibilidade destas informações, que são semelhantes ao caso de um documento fundamental para descredibilizar o Russiagate, a avaliação de inteligência de Janeiro de 2017”.

O momento também conta

O momento em que todo o episódio se desenvolve também faz erguer as sobrancelhas de muita gente. As negociações de paz entre os Estados Unidos e os Talibã estão em andamento e Trump continua comprometido em retirar as tropas norte-americanas do Afeganistão. Além disso, vários tratados dissuasores da corrida aos armamentos entre os Estados Unidos e a Rússia estão prestes a expirar, pelo que um escândalo deste tipo pode reactivá-la e acabar com quaisquer hipóteses de paz, fazendo ao mesmo tempo as delícias dos industriais de guerra. O enviado especial do Departamento do Tesouro nomeado por Trump nas negociações dos tratados, Marshall Billingslea, declarou recentemente que os Estados Unidos estão dispostos a gastar para deixar a Rússia e a China no “esquecimento” numa nova corrida aos armamentos, imitando a estratégia dos anos oitenta contra a União Soviética. Como resultado, mesmo durante a pandemia os negócios continuam a crescer para a indústria militar e para as empresas a ela associadas. 

“O ‘Estado de segurança nacional’, com o Pentágono à cabeça, faz todos os possíveis para manter os Estados Unidos na guerra do Afeganistão”, afirma Scott Morton. “Se Trump tivesse dado ouvidos o seu ex-secretário da Defesa James Mattis e ao ex-conselheiro de segurança nacional HR McMaster estaríamos numa escalada militar e entre planos para iniciar negociações com os Talibã só no próximo ano; em vez disso, as conversações decorreram no último ano e meio e já existe um acordo que pode permitir avanços importantes até final de Maio do próximo ano”.

Segundo Joanne Leon, “as mesmas facções de aproveitadores que se opõem sempre à retirada de tropas estão agora entusiasmadas com este ‘bountygate’ num momento em que o presidente Trump tenta avançar nas negociações com os Talibã e procura desesperadamente sair das perspectivas de afundamento eleitoral em que se encontra”.

Acontece que se a Rússia está a pagar aos Talibã para matar norte-americanos, por certo não está a fazer um bom trabalho. De um pico de 496 mortes em 2010, as perdas de militares dos Estados Unidos no Afeganistão têm vindo a diminuir, com apenas 22 baixas mortais em 2019, o que lança dúvidas sobre a eficácia do suposto plano do Kremlin.

Cinicamente, os Estados Unidos estão a acusar Moscovo de praticar precisamente a sua própria política em relação à Rússia na Síria. Em 2016, o ex-director interino da CIA, Michael Morell, afirmou durante o programa Charlie Rose que o seu trabalho era fazer “com que os russos pagassem um preço” pelo seu envolvimento no Médio Oriente. Interrogado sobre se isso significava matar russos, Morell respondeu: “Sim, discretamente. Não são coisas que se contem ao mundo, não nos levantamos no Pentágono para dizer ‘fizemos isto’; mas fazemos de uma maneira que garanta que eles saibam disso em Moscovo”.

Tal como o Russiagate, desmascarado como completamente falso, também este novo escândalo pretende ter o efeito de pressionar a opinião pública mais liberal a tornar-se muito mais agressiva e militarista em política externa; não é por acaso que o democrata Biden faz campanha garantindo que será muito “mais difícil” com a Rússia e a China do que Trump seria. Considerando que o Boletim dos Cientistas Atómicos adiantaram o relógio do Armagedão ou do Juízo final para apenas 100 segundos antes da meia-noite – o mais perto que já alguma vez esteve – os democratas estão a brincar com o fogo. A organização destacou explicitamente o conflito entre os Estados Unidos e a Rússia como a mais permanente ameaça à existência no planeta. Passará muito tempo antes de saber-se com toda a certeza se a Rússia pagou ou não recompensas aos Talibã para matar militares norte-americanos; mas a eficácia das “fugas” publicadas pela imprensa, essa não está em questão.



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