SEM SALVAR A ÁGUA NÃO HAVERÁ SAÚDE GLOBAL
2020-04-24
Ricardo Petrella, Other News/O Lado Oculto
Começa a anoitecer. Hoje morreram mais de 21 mil crianças com menos de cinco anos no mundo inteiro — são 7,9 milhões por ano. Entre os principais motivos estão as doenças causadas pela falta de água potável, por um saneamento inadequado ou pelo consumo de água poluída. Há muitos anos que as emergências de saúde relacionadas com a água preocupam muita gente, mas os grupos dominantes, aqueles que têm o poder de decidir, não parecem considerar essencial e urgente tomar medidas para mudar a situação.
Certamente parecem saber, segundo seu discurso, que o problema é sério e que em 2030 a disponibilidade de água própria para consumo humano será 40% menor do que a necessária para o mundo, como prevê a ONU. No entanto, dão a impressão de que estão à espera que a escassez de água atinja níveis ainda mais dramáticos, no limite da irreversibilidade, para intervir — ainda que em pânico, cada país por conta própria, de forma errática e improvisada.
De facto, a mortalidade infantil provocada por falta de água e de saneamento básico pouco importa aos grupos sociais dominantes, para além das declarações retóricas sobre as circunstâncias. Se realmente importasse, teriam resolvido o problema há décadas. Continuamos a testemunhar um duplo acto de expropriação e de mistificação da segurança da água praticado pelas três “potências mundiais” que colonizaram a vida na Terra, especialmente durante os últimos 70 anos.
Os suspeitos do costume
Saliente-se, em primeiro lugar, o poder global de grupos e instituições que tomam decisões em nome dos princípios da sociedade capitalista. Actualmente parece normal que os maiores consumidores, predadores e exploradores de água do mundo — tais como Nestlé, Coca-Cola, Pepsi Cola, Danone, Unilever, Syngenta, Bayer, Monsanto, Bouygues, Suez, Veolia, Amazon, Microsoft, Apple, Facebook, Google, Total, Shell, Exxon, Rio Tinto, Glencore, General Electric, Boeing, CityCorp, BNP, entre outros — se tenham autoproclamado os principais defensores da água e também os protagonistas da aplicação de medidas e definições para promover a segurança hídrica
Para eles, a segurança da água significa segurança económica do capital mundial, o que envolve a criação de condições favoráveis (regras, financiamento, mercados) para garantir que a água necessária, na sua devida quantidade e qualidade, seja amplamente acessível e utilizada para sustentar as suas actividades. Caso contrário, afirmam, deixaria de haver crescimento, riqueza, bem-estar, qualidade de vida.
Semear o medo com a queda do PIB e do consumo (imagine-se um mundo sem Nestlé e Coca-Cola, Toyota e BMW, Amazon e Microsoft!) tem sido, até agora, a principal ferramenta através da qual os mais poderosos do capitalismo global expropriam o valor da segurança e da vida da água. Isto não acontece porque seus dirigentes sejam pessoas cruéis por natureza, mas porque agir desta forma está dentro da lógica esperada de uma sociedade capitalista. Isto tem sido comprovado em todas as tentativas fracassadas para “humanizar” o capitalismo ou atribuir-lhe “um rosto mais humano” ou “uma cor vermelha, verde, azul”.
Uma arma de guerra
Em segundo lugar, existem os grupos e instituições que discursam e agem em nome de uma ordem militar mundial, um poder cada vez mais ligado aos “avanços” tecnológicos e à inteligência artificial. Esse poder não precisa de nenhuma legitimação externa ou de “pactos constitucionais” entre os seus membros. A única coisa de que necessita para agir é da suposta legitimidade da “ciência para a segurança”. Inclusive, é capaz de continuar a gastar biliões de dólares por ano em destruição, só para garantir sua existência — e fá-lo sem provocar revoltas populares no mundo
O antigo provérbio romano “se querem a paz, preparem-se para a guerra” já foi incorporado e transformado em “se querem a paz, façam a guerra!”. A indústria militar dos Estados Unidos, resumida no seu proprietário e principal beneficiário, o Exército norte-americano, é o factor mais poderoso. Gasta quase quatro vezes mais que a China, 10 vezes mais que a Rússia, 25 vezes mais que a Itália. Ao longo de décadas, o Exército dos EUA foi a única instituição que se apetrechou com meios para analisar e descrever todos os países e recursos do mundo segundo o grau de impacto em casos de conflitos (por natureza e probabilidade) com os Estados Unidos e de ameaças à sua segurança. É também a única instituição capaz de basear as medidas de segurança militar norte-americana na sua segurança hídrica. A circunstância é testemunhada pelo relatório especial de 2012, Global Water Security, compilado pela comunidade de serviços secretos dos Estados Unidos a pedido do Departamento de Estado.
Se a escassez de água piorar e se globalizar, alguém aposta que os militares norte-americanos agirão para garantir aos Estados Unidos o acesso aos aquíferos ainda abundantes e não contaminados do mundo? A ordem militar mundial norte-americana redefiniu a segurança da água como base para a segurança económica do país. Esta é a expressão suprema da segurança militar dos Estados Unidos. Actualmente é a expropriação mais violenta e explícita da segurança hídrica à qual a comunidade global é submetida — com o consentimento total das autoridades públicas de Estado.
O manancial das oligarquias
Por último há que notar a expropriação e mistificação da segurança levada a cabo pelas oligarquias “locais” públicas e privadas de cada país — intimamente conectadas entre si através do mundo. Não só colonizaram e sacrificaram a segurança da água em nome da “segurança nacional”, mas também os povos e os cidadãos. Isto nada mais é do que a segurança dos interesses e poderes dessas oligarquias. O adjectivo “nacional” não passa de uma máscara utilizada pelos grandes grupos empresariais, com grande eficácia e oportunismo, porque nos últimos séculos a identidade “nacional” tem adquirido um forte sentimento de pertença colectiva — e assim, cinicamente, abusam desse truque para legitimar o seu poder. Basta lembrar a poderosa força motriz por detrás do imperativo de “competitividade nacional” que, desde os anos setenta fez centenas de milhões de habitantes no mundo engolir dor, miséria e desastre enquanto isso não passa de um mero dispositivo para defender os interesses das oligarquias capitalistas e militares “locais” mais fortes.
É hora de inverter o jogo e mobilizar a humanidade para a necessidade urgente de construir uma segurança universal dos cidadãos, livre do poder destrutivo do capitalismo global, da ordem militar mundial e das oligarquias nacionais-corporativas. Com esse fim, é essencial o lançamento em conjunto de uma luta pela saúde mundial — pela segurança pública e universal da água, já que é o principal bem público, comum e global essencial à vida. Daí nasce a proposta de criar um Conselho de Segurança da Água para os Cidadãos, que está a ser abordada em Itália, Bélgica, França, Brasil e Argentina. A primeira reunião sem fronteiras para debater a ideia está marcada, se as circunstâncias o permitirem, para 18 e 19 de Junho em Belgrado.