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PALESTINIANOS REFÉNS DO HAMAS E DE RAMALLAH

Todas as sextas-feiras os habitantes de Gaza lembram a Israel e ao mundo que existem

2018-10-18

José Goulão; com Christopher Wadi, Cairo

O chamado “Acordo do Século” para a questão israelo-palestiniana, elaborado pela Administração Trump e o governo de Israel, ainda não foi divulgado oficialmente mas já começou a ser aplicado. As primeiras vítimas são os habitantes de Gaza, alvos de uma turbulência de decisões onde avulta a ameaça de Benjamin Netanyahu segundo a qual está a “preparar-se para uma campanha militar” contra o território.

O documento que Washington e Telavive pretendem impôr tem como um dos objectivos centrais a separação das questões de Gaza e da Cisjordânia, invalidando-se assim a chamada “solução de dois Estados” defendida internacionalmente, que prevê a instauração do Estado Palestiniano nos dois territórios e ainda em Jerusalém Leste.
Depois de Trump validar a anexação de Jerusalém Leste por Israel, o “Acordo do Século” dá como resolvida a questão deste território, que seria a capital da Palestina segundo as consequências práticas da aplicação das resoluções das Nações Unidas sobre o problema palestiniano. Decisões essas que Israel nunca aceitou - rejeição a que se junta agora a administração norte-americana.
O tratamento isolado de Gaza começa a ganhar forma com a insólita colaboração das próprias partes palestinianas, incapazes de dar corpo a um governo de unidade nacional que associe a gestão dos dois territórios. Mais grave ainda, as administrações de Gaza e Ramallah entraram abertamente em choque.
Um confronto que pode abrir caminho a uma nova intervenção militar de Israel contra Gaza, para forçar o Hamas a negociar directamente com o governo sionista a “autonomia” que este e os Estados Unidos pretendem para o território, e na qual está prevista a participação do Egipto.

Catástrofe humanitária

Em Gaza, uma população de quase dois milhões de pessoas vive há muito uma catástrofe humanitária decorrente do encerramento do território imposto por Israel, com a colaboração do Egipto durante a maior parte do tempo. As carências de bens essenciais como alimentos, medicamentos, água potável e energia eléctrica são gritantes, agravadas pelas consequências das sucessivas agressões militares israelitas.
Há meses que a população, em desespero, se manifesta todas as sextas-feiras junto à zona fronteiriça, enfrentando a repressão militar israelita, cada vez mais feroz de semana para semana. Dezenas de mortos, entre os quais muitas crianças, e centenas de feridos registaram-se já desde que o movimento regular de protestos se iniciou.
Tentar liquidar este levantamento é um dos objectivos invocados pelo primeiro- ministro israelita para “preparar uma campanha militar” contra o território, uma vez que existe a possibilidade “de as condições humanitárias causarem descontrolo durante os confrontos fronteiriços”. Condições humanitárias essas que resultam exactamente do cerco imposto por Israel.
O ministro israelita da Defesa, o ultra-direitista Avigdor Lieberman, reforçou as palavras do chefe do governo dizendo que “é apenas uma questão de tempo o lançamento de nova ofensiva contra a Faixa de Gaza”.
O dramatismo da situação, porém, não tem servido de incentivo para que o Hamas e a Autoridade Palestiniana de Ramallah ponham de lado as suas divergências para se unirem num governo capaz de potenciar a resistência popular.
Pelo contrário. Sabe-se que o Hamas tem estado a negociar directamente com Israel, sob mediação discreta do Qatar, um cessar-fogo permanente em Gaza, o que acontece à revelia do governo da Autoridade Palestiniana. O Qatar acolhe actualmente as principais estruturas orgânicas do Hamas.
Dirigentes do Hamas têm justificado a sua atitude afirmando que é preferível “negociar directamente com Israel e não com o seu intermediário” – dando voz, deste modo, ao sentimento de descontentamento existente em vastos sectores da sociedade palestiniana, nos territórios e na diáspora, em relação à “colaboração” de Ramallah com o governo israelita.
A Autoridade Palestiniana, entretanto, reagiu com dureza ao facto de o Qatar ter anunciado o aumento do seu auxílio à Faixa de Gaza.
Ramallah viu nesta atitude uma expressão das negociações directas entre o Hamas e Israel, que tornariam possível o encaminhamento de auxílio para Gaza, apesar do cerco, e decidiu cortar a verba de 96 milhões de dólares que faz chegar mensalmente ao território.
Funcionários do Ministério israelita da Defesa declararam-se particularmente satisfeitos com a reacção de Mahmmud Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana, que condenou igualmente o enviado da ONU para o Médio Oriente por ter facilitado a transferência do auxílio do Qatar.
As mesmas fontes admitiram, por outro lado, que a suspensão dos fundos da Autoridade Palestiniana pode agravar o desespero social em Gaza e forçar o Hamas a endurecer posições, outra das razões pelas quais Israel admite nova campanha militar.

A questão egípcia

O cruzamento de conflitos atinge também o Egipto, que Israel e os Estados Unidos consideram um parceiro no “Acordo do Século”, apesar de não ter sido consultado sobre isso, segundo declarações proferidas oficialmente no Cairo.
Nos termos do projecto de Trump e Netanyahu, a futura “autonomia de Gaza”, eventualmente sob controlo do Hamas, implicaria uma extensão territorial à Península do Sinai, transformando-se a região num polo industrial e tecnológico dotado com aeroporto internacional e que teria gestão participada pelo Egipto.
Essa arquitectura esbarra no antagonismo entre o governo do Cairo e o domínio do Hamas em Gaza, sobretudo devido às ligações originais entre este grupo e a Irmandade Muçulmana egípcia.
A conjugação destes assuntos foi um dos temas centrais do recente e tenso telefonema entre o presidente egípcio, Abdel Fatah al-Sisi e Mahmud Abbas.
Sisi terá advertido o presidente da Autoridade Palestiniana de que medidas restritivas contra Gaza, como a suspensão do auxílio financeiro mensal, poderiam repercutir-se negativamente na segurança do Egipto, designadamente na zona do Sinai.
Ao que Mahmmud Abbas terá respondido que “é a criação de um Estado da Irmandade Muçulmana em Gaza que põe em causa a segurança do Egipto e não as minhas políticas”.
No meio da teia de controvérsias, há uma realidade que parece decorrer da situação. As políticas do Hamas e da Autoridade Palestiniana contribuem para afastar cada vez mais os palestinianos da Cisjordânia e Jerusalém Leste dos palestinianos da Faixa de Gaza. Ajudando assim Netanyahu e Trump a pôr em prática o “Acordo do Século”, segundo o qual haverá uma separação estanque entre a Faixa de Gaza “autónoma” e o território de Israel, com efeitos extensivos à Cisjordânia.


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