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ISRAEL: O NÓ CEGO QUE AMARRA O SIONISMO

Tropa sionista reprimindo judeus anti-sionistas

2020-03-09

Daniel Lazare, Strategic Culture/O Lado Oculto

Supõe-se que as eleições se realizam para resolver problemas, reordenar o governo, adoptar novas políticas, mudar as pessoas que dirigem as instituições. Mas quantas eleições terá Israel de realizar ainda antes de perceber que não conseguirá fazer nada disso porque é um país amarrado por um laço constitucional inamovível?

Nas eleições de há uma semana, as terceiras em menos de um ano, Benjamin Netanyahu colocou-se à frente de Benny Gantz, o seu adversário igualmente de direita, porém considerado um pouco mais moderado. Apesar disso, não alcançou ainda nada do que pretende, uma vez que a coligação existente em seu redor o deixou com 58 lugares no Knesset (Parlamento), menos três que a maioria necessária para formar governo. Foi um ligeiro avanço em relação à última consulta, em que obteve menos seis lugares, mas um passo atrás em comparação com as eleições de Abril do ano passado, nas quais conseguiu reunir uma maioria de 61 lugares mas que, de qualquer maneira, se desfez em poucas semanas. 

Pelo que Benjamin Netanyahu começa tudo de novo. Não interessa o número de vezes que os eleitores israelitas vão às urnas: no fim acabam por descobrir que uma maioria estável dominante continuará fora de alcance.

Núcleo duro a encolher

Por que razão? O problema é basicamente político e demográfico. Uma parte crescente da população é anti-sionista, não-sionista ou indiferente a qualquer conceito. Os partidos sionistas lutam, portanto, pelo controlo de um núcleo duro que está a encolher enquanto procuram uma maioria para governar. Quanto mais os números se voltam contra eles mais difícil é a tarefa; por isso, a paralisia e a incoerência são cada vez mais a norma.

O caso torna-se tanto mais especial quanto mais os políticos discutem o significado do sionismo. Avigdor Lieberman, o irascível ex-ministro da Defesa de Netanyahu, exemplifica como o problema se tornou preocupante para o núcleo duro. O seu partido Yisrael Beiteinu (Israel é a nossa casa) diminuiu a representação de oito para sete lugares na recente consulta. Porém, como também se situa no espectro da extrema-direita, isso seria ainda suficiente para dar maioria a Netanyahu – se concordasse em juntar-se à coligação.

Mas isso não vai acontecer. A razão é que Yisrael Beiteinu representa um milhão de ex-soviéticos que imigraram a seguir a 1989 para logo a seguir se tornarem vítimas de uma curiosa contradição na lei religiosa de Israel. Para questões de imigração, Israel usa a antiga definição nazi de judeu, isto é, qualquer pessoa que tenha um ou mais avós judeus. Por mais estranho que isso possa parecer, os fundadores de Israel consideraram que qualquer pessoa nesta condição sob opressão nazi era suficientemente judia para encontrar refúgio no Estado hebraico - e assim o padrão nazi tornou-se lei. Porém, para fins de direito de família e outros assuntos domésticos o Estado de Israel adoptou uma definição diferente, a das autoridades religiosas ortodoxas e segundo a qual os únicos judeus são os que nascem de mãe judia ou se convertem sob supervisão ortodoxa.

A ortodoxia e a tropa

Cerca de 40% dos seguidores de Lieberman não respeitam o padrão rabínico, o que significa que estão efectivamente reduzidos a uma cidadania de segunda classe em termos de casamento, emprego e ainda uma série de outras questões. Mas o que torna o assunto especialmente explosivo é o recrutamento militar, que abrange os ex-soviéticos mas não os ortodoxos que se dedicam a tempo inteiro aos estudos religiosos. David Ben-Gurion, o primeiro chefe de governo de Israel, estabeleceu esse acordo com as autoridades religiosas em 1949, quando apenas algumas centenas de estudantes das yeshiva (escolas talmúdicas) de Jerusalém eram abrangidos. Desde então, contudo, o sector ortodoxo expandiu-se para 12% da população, mais de um milhão de pessoas no total. Os imigrantes ex-soviéticos e os seus descendentes têm, deste modo de arriscar as suas vidas para proteger israelitas ortodoxos que nem os consideram judeus.

Lieberman deixou claro que não participará em nenhuma maioria de governo que permita a continuação destas excepções. Trata-se de uma exigência a que Netanyahu, porém, não pode ceder, uma vez que a sua coligação depende do apoio dos partidos religiosos. Um impasse sem fim à vista.

Mas o que torna a situação ainda mais desconcertante é que, embora os apoiantes semi-judeus de Lieberman sejam pró-sionistas, os judeus ortodoxos não são. Pelo contrário, acreditam que Deus exilou os judeus para puni-los pela sua desobediência. Portanto, Deus não quer que regressem à Terra Santa antes de mostrar que lhes perdoou através do envio do Messias que os levará de regresso. Na perspectiva ortodoxa, ao tentar “apressar o Messias” o sionismo é, portanto, um movimento profundamente herético que promove a reunião dos judeus numa violação das ordens directas de Deus. Desta maneira, os judeus sionistas opõem-se aos judeus anti-sionistas de origem palestiniana num território ocupado em nome dos judeus anti-sionistas de Jerusalém.

Ou sionista ou democrático

Adicionando os 12% de ortodoxos aos 23% da sociedade israelita que não é judia, a parcela ani-sionista da população sobe para 35%. Somando-lhe alguns milhares de simpatizantes do Partido Meretz, de esquerda, que estão cansados de toda a parafernália sionista o valor sobre para 36 ou 37%. Finalmente, se incluirmos os 4,4 milhões de palestinianos que vivem em Gaza e na Cisjordânia então a componente anti-sionista do chamado (pelo sionismo) “Grande Israel” – isto é, todo o território do rio Jordão ao Mediterrâneo – atinge os 76%, realmente um valor muito elevado para qualquer coisa que se pareça com uma estabilidade sionista dita “democrática”.

Ou seja, a única coisa que as três eleições israelitas consecutivas em menos de um ano provam é que o país está numa encruzilhada. Pode continuar a ser democrático ou sionista, mas não ambas as coisas. Netanyahu, sem dúvida, tentará amedrontar uma população cada vez mais perplexa enviando colonos fanáticos judeus para a Cisjordânia derrubar oliveiras, partir janelas, disparar sobre palestinianos, comportando-se como tropas de assalto nazis. Se alguns palestinianos responderem, Netanyahu ainda tentará retirar vantagem porque aproveitará a situação para estender o seu poder por alguns meses mais. No entanto, quanto mais isolado ficar o sionismo mais difícil será a sua tarefa.

Netanyahu até pode parecer um político forte e inteligente, mas está encostado à parede. Pode pensar que consegue ignorar a realidade, mas a realidade acabará por se vingar.



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