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ARGENTINA ACORDA DO PESADELO NEOLIBERAL

A esperança renasceu entre os argentinos: FMI sofreu pesada derrota

2019-10-29

O pesadelo representado por Mauricio Macri na Argentina está prestes a acabar. À cabeça da ampla coligação Frente de Todos, os peronistas Alberto Fernández (presidente) e Cristina Kirchner (vice-presidente) venceram as eleições sob a promessa de combater a ditadura económica e social imposta pelos Estados Unidos e o seu braço imperial, o FMI. Nos dias em que o neoliberalismo sofre derrotas como na Bolívia e contestação nas ruas do Chile, Equador, Peru e Honduras, os resultados na Argentina desanuviam um pouco mais os horizontes na América Latina e contribuem para isolar aberrações como as do Brasil e Paraguai. Além de devolverem a esperança aos tão martirizados argentinos, vítimas de uma quebra de 10% do PIB em dez anos e das múltiplas tragédias humanas e sociais que isso representa.

Leonardo Wexell Severo, Buenos Aires; America Latina en Movimiento/O Lado Oculto

O candidato da Frente de Todos, Alberto Fernández, foi eleito presidente da Argentina no domingo, dia 27, derrotando o actual titular do cargo e candidato do Fundo Monetário Internacional (FMI) à reeleição, Mauricio Macri, por 48,03% contra 40,45%. 

Na Argentina, para vencer as eleições na primeira volta é necessário obter 45% dos votos ou 40%, neste caso com pelo menos dez pontos percentuais de vantagem sobre o segundo colocado.

Alberto Fernández tem como companheira de candidatura Cristina Kirchner, senadora, ex-presidente (2007-2015) e viúva do também ex-presidente Néstor Kirchner, falecido em 2010 e que é um ícone do patriotismo.

Bastante emocionado, Fernández, que foi chefe de governo de Néstor Kirchner (2003-2007), agradeceu da seguinte maneira quando os resultados já não deixavam dúvidas quanto à vitória: “Obrigado Néstor, onde quer que estejas; foste tu quem semeou o momento que estamos a viver”. A homenagem não pairava solta no ar: estava presente em t-shirts com a sua imagem, de braços abertos, e em dizeres como “Insuportavelmente vivo” escritos em banners, fotografias e outros suportes visuais.

Saudando a multidão que tomou o bunker da Frente de Todos em Buenos Aires e encheu por completo as ruas em redor, o presidente eleito frisou que “hoje marcamos o fim de um ciclo que só fez enriquecer uns poucos e martirizar o nosso povo”. Mas no dia 10 de Dezembro, assinalou, quando tomarmos posse, “começaremos a reconstruir o país porque não somos a Frente de nós mesmos, mas a Frente de Todos”. Acrescentou: “devemos convocar todos que querem construir os mesmos horizontes que queremos alcançar. Não vai ser fácil a tarefa. Mas cumpri-la-emos juntos, todos e todas”, realçou.

Agravamento da miséria

A crise económica na Argentina continua a agravar-se a olhos vistos, vitaminada por um “pacotazo” de 57 mil milhões de dólares assinado no ano passado com o FMI e que já impôs uma série de medidas que aumentaram em mais de 1000% (mil por cento!) as tarifas de água e energia. É visível, através das ruas de Buenos Aires, a multiplicação da pobreza, o agravamento da miséria e da delinquência.

Um ponto-chave do futuro governo, explicou Alberto Fernández a propósito do sequestro da democracia pelas oligarquias financeiras, será a defesa do interesse nacional e produtivo tirando terreno aos especuladores, como fez Néstor Kirchner. “Quando Néstor liquidou contas com o Fundo Monetário Internacional e nos libertou da política do FMI, não foi Néstor quem o fez. Foi o povo argentino. Estou convencido de que, comigo e Cristina, construiremos a Argentina que merecemos”, frisou sob aplausos.

Para Cristina Kirchner, “o que está a passar-se no Chile e o que se passou recentemente no Equador tem de abrir as nossas cabeças. Não só a nós, políticos, mas aos dirigentes sociais e dirigentes empresariais sobre o modelo que queremos para as nossas sociedades”. O que acontece hoje na Argentina e em toda a região, alertou a vice-presidente eleita, “é a demonstração clara de que precisamos de mais democracia e que a economia também seja democratizada”.

Como resultado do agravamento da crise, responsável pelo encerramento de 45 empresas diariamente, pelo crescimento da inflação, a quebra dos salários e o aumento do desemprego, o macrismo foi derrotado até na província de Buenos Aires, onde o novo governador será Axel Kicillof. Ex-ministro da Economia do segundo governo de Cristina Kirchner, Axel conquistou mais de 50% do eleitorado graças à sua trajectória de compromisso com o desenvolvimento.

“A Argentina deixada por Macri é terra arrasada”, assinalou Axel Kicillof, frisando que “qualquer leitura dos números mostra que em quatro anos houve uma queda brutal no Produto Interno Bruto (PIB)”. “É um retrocesso de quase 10% em apenas quatro anos. A taxa de desemprego foi duplicada. Não são números vazios”, acrescentou.

Actuando já abertamente pela sabotagem do futuro governo, os grandes conglomerados privados de comunicação social começaram a advertir Fernández e Cristina de que não devem mexer nos “acordos com o FMI”, uma vez que as “mudanças na política económica” - como uma renegociação soberana da dívida – poderiam vir a abalar os “mercados”, “trazer problemas” e “incertezas” para a Casa Rosada, o palácio presidencial.

Pátria ou dólar

No seu livro “Pátria ou dólar – Banco Central, corporações e especulação financeira”, o economista argentino Alejandro Vanoli avalia os governos peronistas de Néstor e de Cristina Kirchner dando numerosos exemplos de recuperação da soberania e da dignidade a partir do “enfrentamento do poder corporativo nacional e multinacional”.

Ex-presidente dos dois principais organismos para a regulação monetária e financeira da Argentina, o Banco Central e a Comissão Nacional de Valores (CNV), Vanoli aborda casos emblemáticos. Entre outras medidas, durante sua gestão na CNV, ocorreu a reestatização/nacionalização das Jazidas Petrolíferas Fiscais (YPF) – equivalente à Petrobrás do Brasil – empresa que fora “vendida” por Carlos Menem à espanhola Repsol.

Há dois anos já Vanoli defendia que diante do “aprofundamento neoliberal” feito pelo governo Macri, era “preciso ajudar a pensar, debater e actuar para desmontar a máquina de mentiras, desinformação, ocultamento e confusão de tantos cidadãos, e assim podermos reverter o mais rápido possível o retrocesso sofrido desde o final de 2015”.

Por aquilo a que se assistiu na noite da vitória, ao som do rufar dos tambores da militância peronista e sob olhares e aplausos esperançosos das famílias que se somaram à festa, Alberto Fernández e Cristina Kirchner chegam com o compromisso de virar a página de traição e submissão.


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