CHILE: NADA VOLTARÁ A SER COMO ANTES

2019-10-28
Leonardo Ogaz Arce, America Latina en Movimiento/O Lado Oculto
Muitas pessoas pensaram que se tratava de mais uma manifestação de estudantes do ensino secundário que, sob a palavra de ordem “evadir, não pagar, outra forma de lutar”, se revoltavam contra novo aumento das tarifas do metropolitano de Santiago do Chile, o quarto em menos de dois anos. A acção dos estudantes foi reprimida brutalmente, como é característica da polícia chilena. Mas o movimento foi retomado pouco depois por milhares e milhares de passageiros que, indignados com a repressão, começaram a atacar e a incendiar várias estações de metro.
É impressionante o que aconteceu a seguir: produziu-se um levantamento e uma revolta popular que se estendeu a todo o país, o que obrigou o governo a decretar o estado de emergência e o recolher obrigatório, medidas infrutíferas que não conseguiram deter o levantamento e a desobediência generalizada existentes hoje no Chile.
A maré foi em crescendo e a cada novo dia as manifestações aumentam em quantidade, intensidade e criatividade. São autênticas multidões que despertaram e tomaram as ruas do Chile. As expressões do movimento são de raiva, ira, carnaval, festa, arte, cultura e democracia a partir de baixo. Hoje o Chile está repleto de assembleias populares nos bairros e freguesias. Reactivam-se os cabildos – órgãos populares tradicionais de resistência ao poder colonial – e está em gestação um poder cidadão alternativo. O movimento é muito variado e diversificado, envolve sectores da classe média, trabalhadores, pessoas pobres; tem características heterogéneas, surgiu espontaneamente e não tem organização nem orientação definidas até hoje. Apresentam-se muitas reivindicações, mas a acção vai-se articulando enquanto passa do protesto à procura de soluções. É um despertar que se parece muito com o amanhecer.
Uma extensão do pinochetismo
Em boa verdade, no Chile não se passou da ditadura para uma transição democrática, mas a uma extensão do pinochetismo que poderemos designar como pós-pinochetismo ou pós-ditadura. As impressionantes manifestações e acções de protesto, a que se juntaram os camionistas exigindo a suspensão do pagamento de portagens, significam o fim do pós-pinochetismo que, em nome da democracia, se dedicou a aperfeiçoar o modelo neoliberal, aumentando o volume de abusos contra as pessoas, criando uma verdadeira estrutura de extorsão contra os trabalhadores e gerando, por outro lado, prebendas e privilégios inacreditáveis para os sectores empresariais. Este processo transformou-se, em definitivo, numa espiral de acumulação que acabou por tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Em ditadura, privou-se a maioria dos chilenos da segurança social, a qual, porém, se manteve para as forças armadas e os carabineiros; a pós-ditadura dedicou-se a manter e aperfeiçoar um sistema de aforro obrigatório administrado pelas famosas Administrações de Fundos de Pensões – AFP’s –, que enriqueceram até mais não poder; deste modo, as poupanças dos trabalhadores converteram-se num mercado de capitais para suportar os processos de acumulação dos banqueiros e dos grandes grupos económicos, ou seja, com as poupanças dos trabalhadores sustentou-se o regime capitalista neoliberal.
Além disso, foram privatizados todos os serviços públicos, incluindo o metro, a água, a electricidade, os telefones e por aí adiante; entregaram-se em mãos privadas o património nacional, a extracção do lítio, parte do cobre, o mar – a lista é muito grande. Estas privatizações significam que, de forma periódica e implacável, são aumentados os preços segundo algoritmos idealizados pelos tecnocratas ao serviço dos empresários, para duplicar ou triplicar os lucros.
E não fica por aqui. As grandes empresas, violando as próprias regras, competem para fazer subir os preços dos medicamentos das doenças crónicas, da carne de aves, do papel higiénico; algumas empresas comerciais reavaliam unilateralmente as dívidas dos seus clientes para fazê-los pagar cinco ou mais vezes o preço dos produtos. Até que as pessoas se fartaram e explodiram; estes despertares costumam ser violentos, porque o que acontece é que se abusou demasiado.
Constituição ilegítima
Na realidade, porém, o que mais acentua o carácter de pós-ditadura deste período é que se mantém até hoje uma Constituição ilegítima, gerada em ditadura e na qual se fizeram uma série de remendos mantendo, contudo, uma institucionalidade que garante a ordem neoliberal e um Estado repressivo e autoritário. Isto manifesta-se com particular crueldade na repressão contra o povo Mapuche. Há que recordar as montagens policiais inventando supostas ligações terroristas internacionais e o criminoso assassínio de Camilo Catrillanca pela polícia.
Os outros efeitos perversos do neoliberalismo são a corrupção generalizada: empresas subornando políticos, os carabineiros e as forças armadas gastando os dinheiros do povo chileno em luxos asiáticos. Além disso, no domínio da cultura impuseram-se as práticas individualistas e egoístas, a falta de solidariedade e o mercantilismo que orientam o conjunto das relações sociais.
Quanto ao papel desempenhado pelos meios de comunicação tradicionais nesta conjuntura, em primeira instância procederam como sempre, pilares da ordem burguesa neoliberal com o discurso amarrado a uma hegemonia em vias de ser quebrada; agora, porém, começaram a sentir uma rejeição massiva por parte de sectores que lançaram uma campanha para que os cidadãos se informem através das redes sociais e apaguem os televisores; sectores que se cansaram das mentiras, das distorções, das orientações enviesadas. Estas atitudes afectaram alguns desses meios, que tiveram de mudar de atitude, ainda que seja formalmente, e começaram a entregar o microfone sem restrições às pessoas; caso contrário ficariam simplesmente sem audiência. Pelo menos no canal público, agora podem ver-se genuínos representantes da cidadania.
O vandalismo
Quanto aos saques e vandalismo que têm existido, podemos distinguir pelo menos quatro componentes: em primeiro lugar, uma resposta furiosa de alguns sectores ao constante e permanente saque praticado pelas empresas, associado às carências e pobreza existentes; depois, tem-se revelado a incapacidade do governo para garantir a segurança, porque privilegia a defesa dos bairros de classe alta abandonando os outros à sua sorte, pelo que muitas pessoas aproveitam a oportunidade; uma terceira componente são as acções do lumpen, organizado e desorganizado, que actua de acordo com as práticas habituais; por último, têm sido divulgados vídeos demonstrando que a própria polícia e os militares saqueiam, ou proporcionam saques, não estando claros os seus sinistros propósitos.
Governo aos tombos
O governo do milionário Sebastián Piñera vai de tombo em tombo no meio da crise. Com toda a pressa, aprovou uma lei para revogar a subida dos preços das viagens de metro; não foi suficiente. Depois apoiou-se nas baionetas; não foi suficiente. Declarou guerra e teve de retroceder, anunciou medidas sociais que, aos olhos da maioria, foram declaradas insuficientes. Suspendeu a prevista subida dos preços da electricidade; e é insuficiente. O que se passa é que este governo tem sérias dificuldades cognitivas para entender o que está a passar-se, o que se deve à composição social do seu gabinete e assessores, que são decadentes políticos de direita, empresários que não conseguem sair do horizonte do custo-benefício, gestores que não conseguem distinguir entre a gestão pública e privada; enfim, não compreendem e não poderão compreender o que está a acontecer no país.
No fundo, o que as pessoas estão a pedir é a mudança de regime político, estão a pedir o fim do regime económico neoliberal, estão a pedir mudanças estruturais profundas; em definitivo, estão a pedir a renúncia de Piñera. Existe uma única via democrática para alcançar estes objectivos: uma Assembleia Constituinte. É difícil ver Sebastián Piñera convocando uma Assembleia Constituinte. Este caminho já não é ideia de um qualquer analista atento, mas sim a exigência de vários colectivos que participam nas mobilizações e consta da plataforma que a Unidade Social apresentou na perspectiva da greve geral de 48 horas e que culminou com a apoteótica manifestação na Alameda, avenida emblemática da capital do Chile, na passada quinta-feira. No dia seguinte, 25 de Outubro, houve outra manifestação que superou a anterior, com uma afluência que a comunicação social avaliou em um milhão e 200 mil pessoas – de facto as imagens aéreas são impressionantes. Por isso, a renúncia do presidente Piñera passa a ser parte da solução do problema, pelo que já não se encara como improvável, segundo a lógica dos acontecimentos, a convocação de uma Assembleia Constituinte. Não será uma coisa que se alcance facilmente, mas o grau, a envergadura, a extensão e a profundidade do levantamento popular tornam-na possível; e, por esta razão, nada do que aconteça de agora em diante voltará a ser como na pós-ditadura.
Cenários possíveis
Em conclusão, a situação está mais ou menos assim: os de cima não conseguem governar e os de baixo não querem ser governados pelos de cima. Neste contexto surgem vários cenários mais ou menos possíveis para o futuro próximo:
1. O presidente Piñera faz algumas mudanças cosméticas, como alterar o gabinete, e insiste na sua reduzida “agenda social” sem fazer qualquer alteração de fundo. Questão que pode ser muito perigosa porque é susceptível de exacerbar as mobilizações.
2. O presidente Piñera dá uma volta radical na sua posição actual e decide mudar o gabinete, fazendo concessões importantes como levantar o estado de emergência, abrir o caminho para a aprovação da lei das 40 horas semanais, subir consideravelmente o salário mínimo e outras medidas deste tipo que lhe proporcionem, no mínimo, dividir a gigantesca oposição de massas – uma situação que lhe permitiria manter-se no governo, embora num plano de profunda debilidade.
3. Existe a possibilidade de um golpe ou um autogolpe de Estado de direita, através do qual se aplique a violência máxima como resultado de uma ditadura semelhante à de Pinochet.
4. Há uma alternativa que continua a ser pouco provável mas não deve descartar-se: o presidente Piñera convoca uma Assembleia Constituinte e a direita procura constituir-se numa força de contenção dos “excessos democráticos” dentro da câmara.
5. O presidente Piñera, perante o repúdio generalizado e o escasso apoio político de que dispõe, renuncia e abre caminho a uma sucessão constitucional, cabendo ao presidente do Senado formar um governo provisório.
A este governo provisório deve exigir-se, como único mandato, a preparação material e jurídica da Assembleia Constituinte num prazo de oito meses.
Mas insistimos: seja como for, nada voltará a ser como antes no Chile.