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PENTÁGONO VENDE SUCATA MILITAR DENTRO DA NATO

O Pentágono usa a Roménia e a Bulgária contra a "ameaça russa" e vende-lhes material militar obsoleto

2019-10-17

Phil Butler*, New Eastern Outlook; adaptação de O Lado Oculto

Algures nas margens ocidentais do Mar Negro, comandantes da NATO olham o horizonte através de binóculos. Em Varna, na Bulgária, ou em Constança, na Roménia, os exércitos e as marinhas fiéis às normas atlantistas estão a rearmar-se para derrotar uma iminente invasão russa. Sem que isso seja dado a conhecer aos cidadãos búlgaros e romenos, trata-se de uma invasão que jamais acontecerá. Mas a realidade é que os dois países têm vindo a ser intoxicados nas últimas décadas por ideias sem nexo como esta - e a NATO foi inventada para protegê-los. Agora vamos contar a outra face da história.

A manchete da revista atlantista Defense News informa: “Roménia e Bulgária desenvolvem a compra de meios de defesa com medo da Rússia”. A essência dos conceitos em que se baseia a indústria militar na nova versão de guerra fria apresenta-se de maneira resumida neste excerto do artigo:

“Com os maiores contratos de defesa da história dos dois países em pleno desenvolvimento, Bucareste e Sófia foram postas perante o desafio de aumentar os gastos militares após anos de sub-investimento”.

É nesta fase que as empresas de armamento como a Raytheon e Lockheed Martin entram em cena como a cavalaria salvadora nos filmes de Hollywood. As maiores necessidades dos romenos e dos búlgaros, que vivem nos países mais pobres da União Europeia, não são bons contratos de exportação ou novas indústrias para beneficiar as populações carecidas, mas sim gastar mais de cinco mil milhões de euros em sistemas de armas inúteis.

Os sistemas de artilharia de alta mobilidade (HIMARS) e de lançamento múltiplo guiado (GMLRS) que a norte-americana Lockheed Martin venderá aos dois países custa 1250 milhões de dólares. O problema para a Bulgária e a Roménia é que esses sistemas são considerados obsoletos e seriam absolutamente inúteis no caso de ocorrer uma qualquer mirabolante invasão russa. Desenvolvidos em finais dos anos noventa do século passado, esses antiquados sistemas de armas não servirão para dar combate a qualquer suposto inimigo, muito menos às temíveis hordas russas. São negócios à boa maneira ocidental e nada mais. Bucareste e Sófia estão assombradas por uma nuvem negra de russofobia e isso é uma garantia de altos lucros. E estes lucros são apenas uma parte das incalculáveis somas que os cidadãos da Roménia e da Bulgária perdem com a cultura de guerra em vez de um relacionamento regional pacífico. 

Armas de brinquedo

Para agravar a situação, o Pentágono norte-americano tem funcionários que trabalham como vendedores de armas. Um documento de venda de armas à Polónia assinado pelo tenente-general Charles W. Hooper é um exemplo do que ficou escrito. Trata-se de uma notificação de venda de HIMARS e de outros sistemas militares a este país da NATO dirigida ao então presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Paul Ryan. Por lei, as armas devem ser exportadas sob aprovação das instâncias de decisão norte-americanas, mas parece que ninguém avalia a eficácia militar de tais vendas, pelos vistos nem para países da própria NATO.

 Vejamos o caso de obsolescência desses armamentos.

Segundo a carta do general Hooper ao Congresso, os Estados Unidos estão a enviar lixo militar sem qualquer utilidade para a Polónia e outras nações da NATO. Agora vejamos como a própria NATO tem a noção de que esses tipos de armamento são inúteis, afinal armas de brincar para uma guerra de fantasia: 

“Se um adversário tecnologicamente avançado obtivesse informações sobre os elementos de hardware e software, tais dados poderiam ser utilizados para desenvolver contramedidas ou sistemas equivalentes capazes de reduzir a eficácia do sistema ou de ser usados no desenvolvimento de um sistema com recursos semelhantes ou avançados”.

Acontece que dezenas de nações fora do quadro da NATO já possuem a maioria desses tipos de armas, pelo que é lógico deduzir que qualquer inimigo já está abastecido com as convenientes contramedidas. O que será ainda mais verdadeiro no caso da Rússia. A notificação do general Hooper ao Congresso diz-nos que o sistema HIMARS já está comprometido. Mas façamos agora de conta que a Rússia queria mesmo invadir a Roménia e a Bulgária. O que aconteceria?

Num artigo da autoria do lunático general norte-americano Philip Breedlove, que foi comandante supremo aliado na Europa, admite-se que não existe defesa real contra uma incursão russa. Breedlove e o então secretário-geral adjunto da NATO, Alexander Vershbow, dizem-nos que a aliança está condenada a uma atitude de retirada no caso de a Rússia atacar não importa onde na Europa: 

“Um ataque convencional russo, sobretudo se for detectado com pouca antecedência, pode derrotar as forças da NATO e dos Estados Unidos num período de tempo relativamente curto, antes de os reforços entrarem em acção”, escreveu Breedlove. “Aumentam as preocupações de que rápidas conquistas de terreno pela Rússia possam funcionar para a Aliança como um facto consumado, dividindo-a e paralisando a tomada de decisões antes da chegada de reforços”.

Antes de nos determos um pouco mais sobre as profecias tremebundas do general Breedlove parece importante identificar os verdadeiros inimigos da Roménia e da Bulgária. Nestes tempos em que os seus governos desperdiçam incontáveis milhões de euros em armamentos obsoletos ou desnecessários, os dois países são assolados pela pobreza. Na Roménia, metade das crianças vivem uma existência paupérrima que não tem comparação com situações idênticas que existem nas áreas ocidentais da União Europeia.

A Roménia tem a maior taxa de pobreza da União, de acordo com o think tank globalista norte-americano Brookings Institute. No entanto, existem indicações reveladoras de que a Bulgária, o seu vizinho do sul, é ainda mais pobre. O jornal Irish Times afirma que o rendimento médio de um cidadão búlgaro é de 190 euros por mês. São estes dois países da Europa que estão prestes a desperdiçar milhares de milhões em sucata militar para auxiliar o complexo militar e industrial dos Estados Unidos e algumas das suas maiores corporações.

Atiçar o conflito Leste-Oeste

Voltemos ao general Breedlove e respectiva clique.

Ao que parece, as suas recomendações são completamente adoptadas pelo governo Trump, apesar de o prestígio do ex-comandante supremo aliado já ter conhecido melhores dias. Um artigo da publicação alemã Spiegel revelou o seu papel no fabrico de uma nova divisão Leste-Oeste ao serviço dos impérios de armamento. Mensagens de e-mail enviadas pelo general foram explícitas quanto ao modo como espalhou a discórdia “e exagerou as actividades russas no leste da Ucrânia com o objectivo claro de entregar armas a Kiev”, sublinha a publicação alemã.

No meio dessa situação emergiu um outro agente provocador da animosidade Leste-Oeste, aliás com provas dadas ao longo das décadas mais recentes e conhecido como Fundação Potomac.

Uma das figuras proeminentes dessa organização nos Estados Unidos foi o imigrante húngaro Balint Vazsonyi, director do Centro para a Fundação Americana, o ramo principal da Fundação Potomac. Vazsonyi faleceu em 2003, mas o centro que chefiou teve um papel importante na preparação dos países do Leste europeu para se integrarem na NATO.

A lógica de Vazsonyi, seguida por Breedlove no caso particular da Ucrânia, é afinal a lógica dos tempos seguida por sucessivas administrações norte-americanas: ajudou a criar o inimigo externo de que as democracias ocidentais sempre precisam, justificou a mentira de Bush filho para invadir o Iraque, argumentou que as novas nações da NATO no Leste europeu deveriam funcionar como bases logísticas para o poderio militar norte-americano (Scripps-Howard News Service, 26/11/2002).

Que o Dr. Vazsonyi descanse em paz. Partiu mas deixou operacional uma ligação das suas instituições à empresa Braddock, Dunn & McDonald, conhecida como BDM, afinal um dinossauro da guerra fria que pertence em grande parte a um gigante do armamento, a Northrop Grumman; provando-se assim que os centros de elaborada filosofia política como a Fundação Potomac acabam sempre por aparecer ligados a máquinas do dinheiro e da morte. O Conselho da Fundação Potomac é presidido por Joseph Braddock, fundador da BDM. Qualquer pesquisa de internet que se faça a partir de BDM pode muito bem tropeçar numa ligação ao investimento no comércio de armas.

Rentabilizar e policiar os fiéis aliados

Mas porquê apostar em armas inúteis? Retomemos a notificação do general Hooper ao Congresso norte-americano:

“Esta venda proposta apoiará a política externa e a segurança nacional dos Estados Unidos, reforçando a segurança de aliados da NATO, uma força importante para a estabilidade política e o progresso económico da Europa”.

Ora esta força para a estabilidade política e económica parece ter menos a ver com uma fantasiosa invasão russa do que com a subversão dos mecanismos democráticos e a conversão das nações europeias ao sistema de hegemonia global. A NATO não é uma força policial que existe para fazer frente a uma delirante ameaça russa; é uma força policial dotada com as maiores capacidades militares do mundo contra as violações da ideologia política e económica dominante. A venda de armas obsoletas permite escoar stock, fazer negócio, rentabilizar os aliados – dando como segura a sua fidelidade.

Aqui chegados parece oportuno citar uma passagem da doutrina política da NATO:

“A necessidade de a Aliança Atlântica ter funções de polícia civil com capacidades militares emergiu claramente durante a operação da SFOR na Bósnia e Herzegovina”.

O website com esta versão doutrinária da NATO desapareceu depois de a passagem ter sido citada em artigo anterior; no entanto, o conceito de Policiamento para a Estabilidade (SP), como a aliança designa as suas acções intervencionistas, ainda é o factor de desencorajamento e uma precaução contra mudanças indesejáveis em toda a Europa.

*Cientista político, investigador e analista especialmente de temas relacionados com o Leste da Europa.


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