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SACRIFICAR A ANTÁRTIDA NO ALTAR DO CAPITALISMO

O glaciar Thwaites em fusão, na Antártida (foto Stuart Rankin, NASA/James Yungel)

2019-07-29

Silvia Ribeiro, America Latina en Movimiento/O Lado Oculto

A Antártida, a calote polar do Hemisfério Sul, está a derreter-se. Cada vez mais depressa devido ao caos climático provocado pelo capitalismo industrial. Esta situação está na origem da subida global do nível do mar, que poderá atingir três metros durante um século, fazendo desaparecer países insulares e inundando cidades costeiras.

Esta e outras catástrofes em curso deveriam fazer com que os governos, especialmente os do Norte global, que são os principais responsáveis, tomassem medidas claras e vigorosas para conter as causas das mudanças climáticas. Em vez disso continuam a surgir, como projectos científicos sérios, as mais descabidas propostas de geoengenharia: manipular os sistemas da Terra em grande escala para apenas aliviar os sintomas das alterações climáticas.

Bombardear glaciares

Para supostamente salvar cidades como Nova York, Xangai ou Calcutá, uma equipa de cientistas do Instituto de Potsdam de investigação sobre os impactos climáticos, financiado pelo governo alemão, propôs em 18 de Julho um novo megaprojecto de geoengenharia. Milhares de canhões disparariam, a partir do mar, 74 mil milhões de toneladas de neve artificial contra os glaciares Isla Pine e Thwaites, na Antártida Ocidental, para atrasar a sua fusão. Trata-se de um território que não é reclamado por qualquer país segundo o Tratado Antárctico, vizinho da Antártida chilena e argentina.

Estes glaciares situam-se na zona crítica de fusão do gelo, que na Antártida se deve principalmente ao aquecimento do mar - que derrete a sua base submarina. Não é um processo linear, uma vez que, a partir de certa altura, o derretimento desencadeia maior vulnerabilidade e torna-se mais rápido, o que já está a verificar-se.

Para tentar conter este fenómeno, a proposta deste grupo de cientistas é a criação de dezenas de milhares de milhões de toneladas de neve artificial e o seu lançamento por canhões capazes de superar 640 metros, a altura dos glaciares, e depositá-la a um ritmo de 10 metros anuais de neve sobre uma área de 52 mil quilómetros quadrados (um pouco mais de metade de Portugal) durante pelo menos 10 anos – ou mais, se as alterações climáticas continuarem.

Efeitos dramáticos nos ecossistemas

A neve seria criada com água extraída do oceano, que primeiro teria de ser dessalinizada; depois seria necessário mantê-la como neve ou gelo até integrar-se nos glaciares. O processo exigiria quantidades imensas de energia, parte da qual, segundo a proposta, seria criada por geradores eólicos no mar – mas os cientistas reconhecem que seria suficiente apenas para fabricar neve artificial e lançá-la. Não inclui a construção de instalações nem as exigências energéticas para dessalinizar, uma acção que é essencial uma vez que, se o projecto fosse executado com água salgada “teria graves efeitos negativos nos fluxos dinâmicos na camada de gelo”; a parte de energia eólica não cobre ainda a energia necessária para outros processos integrados no projecto, a desenvolver em condições extremamente duras.

A instalação das infraestruturas de energia e de canhões teria efeitos devastadores na fauna. Os cientistas que fazem a proposta reconhecem a possibilidade de provocar enormes impactos negativos sobre o ecossistema e as espécies marinhas; admitem, de facto, que se trata de “sacrificar a Antártida” para salvar grandes cidades.

Além disso, reconhecem grandes incertezas em relação a outros possíveis efeitos. Por exemplo, no estudo não têm em conta o aquecimento adicional da atmosfera se a temperatura continuar a subir; e também não têm em consideração o facto de a remoção de enormes massas de águas oceânicas poder alterar a circulação marinha e facilitar a entrada de água mais quente na base da calote polar, acelerando a sua fusão. Tal como acontece com outras propostas de geoengenharia, os resultados poderiam ser piores que o problema original.

Por isso, é muito preocupante que uma instituição reconhecida como o Instituto de Potsdam se junte ao coro dos proponentes da geoengenharia – que está sob moratória do Convénio da Diversidade Biológica – mesmo reconhecendo que se trata de sacrificar ecossistemas inteiros sob o risco de acontecerem fracassos e impactos colaterais muito graves.

Fundamental: conter as alterações climáticas

Segundo o Instituto de Potsdam, a proposta foi elaborada porque, mesmo que se cumpram as metas do Acordo de Paris de um aumento médio da temperatura inferior a dois graus, a Antártida continuará a derreter-se, pelo que Nova York, Tóquio e outras megacidades desaparecerão em 200 anos. Os cientistas colocam, por isso, o desafio de os governos terem de pensar no que irão sacrificar.

A pergunta crucial, porém, é saber por que perante tamanha gravidade não se fazem propostas igualmente dramáticas para contar as alterações climáticas. Por exemplo, se a faixa dos 10 por cento mais ricos do planeta tivessem um nível de vida como o de um cidadão europeu médio, a emissão global de gases com efeito de estufa baixaria 30%! (Kevin Anderson, Tyndall Centre).

O principal motor das alterações climáticas é o capitalismo industrial baseado em combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão); e os únicos que beneficiam com ele são uma absurda minoria de países, empresas e indivíduos ricos. As propostas de geoengenharia não são feitas para salvar cidades, mas sim para salvar esses interesses. É isso que tem de mudar; é isso que deve ser feito e não sacrificar a Antártida ou qualquer outra região.

*Investigadora do Grupo ETC (www.etcgroup.org)


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