O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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O MARTÍRIO DE JULIAN ASSANGE NAS MÃOS DO BIG BROTHER

Sem palavras

2019-03-18

John Pilger* ; edição O Lado Oculto

Sempre que visito Julian Assange encontramo-nos numa sala que ele conhece excessivamente bem. Há uma mesa nua e fotos do Equador nas paredes. Há uma estante onde os livros nunca mudam. As cortinas estão sempre cerradas e não há luz natural. O ar é abafado e fétido.

Esta é a Sala 101.
Antes de entrar na Sala 101 tenho de entregar o e telemóvel. Examinam-me os bolsos e os objectos que transporto. O alimento que trago é inspeccionado.
O homem que guarda a Sala 101 senta-se no que parece ser uma cabine telefónica fora de moda. Está em frente a um écran, a observar Julian. Há outros agentes do Estado, que não conseguimos ver, a observar e a ouvir.
As câmaras estão por toda a parte na Sala 101. Para evitá-las, Julian leva-me para um canto, lado a lado, encostados contra a parede. É assim nós trocamos notícias: murmurando e escrevendo um ao outro num bloco de notas, que ele esconde das câmaras. Por vezes rimos.
Tenho o tempo limitado. Quando expira, a porta da Sala 101 abre-se de repente e o guarda diz: “Acabou o tempo!” Na véspera do Ano Novo foi-me permitido um período extra de 30 minutos e o homem da cabine telefónica desejou-me um feliz ano novo, mas não a Julian.
A Sala 101 pode ser o cenário do romance profético de George Orwell, 1984, onde a polícia do pensamento observava e atormentava os seus prisioneiros, e ainda pior, até que desistissem da sua humanidade, dos seus princípios, e obedecessem ao Big Brother.
Julian Assange nunca obedecerá ao Big Brother. A sua resistência, a sua coragem são espantosas, muito embora a sua saúde física pague por isso.
Julian é um australiano eminente, que mudou o modo como muitas pessoas olham agora o comportamento de governos dúplices. Por isso é um refugiado político, sujeito ao que as Nações Unidas qualificam como “detenção arbitrária”.
A ONU afirma que Julian tem acesso à liberdade, mas isso é-lhe negado. Que tem o direito a tratamento médico sem correr o risco de ser preso, mas isso é-lhe negado. Que tem direito a ser indemnizado, mas isso é-lhe negado.

Apenas porque fundou o WikiLeaks

Como fundador e editor do website WikiLeaks, o seu crime tem sido o de dar sentido a estes tempos negros. O WikiLeaks tem um registo impecável de precisão e autenticidade que nenhum jornal, nenhum canal de TV, nenhuma estação de rádio, nem o New York Times, nem o Washington Post, nem o Guardian podem igualar. Na verdade, isto envergonha-os.
Isto explica porque Julian está a ser punido.
Por exemplo:
Na semana passada, o Tribunal Internacional de Justiça determinou que o governo britânico não tem poderes legais sobre os habitantes das Ilhas Chagos, os quais nas décadas de sessenta e setenta foram expulsos em segredo de suas habitações em Diego Garcia, no Oceano Índico, e enviados para o exílio e a pobreza. Morreram numerosas crianças, muitas delas de tristeza. Tratou-se de um crime grave, que poucas pessoas conhecem.
Durante quase 50 anos os britânicos negaram aos ilhéus o direito de regressarem aos seus lares, que entretanto entregaram aos norte-americanos par construírem a uma importante base militar.
Em 2009, o Foreign Office, Ministério britânico dos Negócios Estrangeiros, fabricou uma “reserva marítima” em torno do arquipélago Chagos.
Esta tocante preocupação com o ambiente foi denunciada como uma fraude quando o WikiLeaks publicou um telegrama secreto do governo britânico a tranquilizar os norte-americanos, dizendo que “os antigos habitantes descobririam que é difícil, se não impossível, continuarem com a sua reivindicação de se restabelecerem nas ilhas se todo o Arquipélago Chagos passar a ser uma reserva marítima”.
A verdade sobre esta conspiração influenciou claramente a decisão capital do Tribunal Internacional de Justiça.
O WikiLeaks também revelou como os Estados Unidos espiam os seus aliados; como a CIA pode observá-lo através dos seus iPhones; como a candidata presidencial Hillary Clinton recebeu grandes de dinheiro de Wall Street para fazer declarações secretas reconfortando banqueiros, ao afirmar que se fosse eleita seria amiga deles.
Em 2016, o WikiLeaks desvendou uma conexão directa entre Clinton e o jihadismo organizado no Médio Oriente: terroristas, por outras palavras. Um e-mail revelou que quando Clinton era secretária de Estado norte-americana tinha conhecimento de que a Arábia Saudita e o Qatar estavam a financiar o Estado Islâmico, mas aceitou que ambos os governo contribuíssem com enormes donativos para a sua fundação.
A seguir, Hillary Clinton aprovou a maior venda de armas já realizada no mundo, com destino aos seus benfeitores sauditas: armas que actualmente estão a ser utilizadas contra o povo agredido do Iémen.
Isto explica porque Julian Assange ele está a ser punido.
O WikiLeaks também publicou mais de 800 mil ficheiros secretos da Rússia, incluindo do Kremlin, contando-nos mais acerca das maquinações de poder naquele país do que a enganosa pantomima histérica do Russiagate em Washington.
Isto é jornalismo real – jornalismo de uma espécie agora considerada exótica: a antítese do jornalismo de Vichy, que serve os inimigos do povo e cuja designação deriva do governo de Vichy, que dirigia a França em nome dos nazis alemães.

A conivência da Austrália

O jornalismo de Vichy é a censura por omissão, tal como o escândalo não contado da conivência entre os governos australiano e dos Estados Unidos para negar a Julian Assange os seus direitos como cidadão australiano e para silenciá-lo.
Em 2010, a primeira-ministra australiana, Julia Gillard, chegou a ordenar à Polícia Federal australiana para investigar Assange e o WikiLeaks, com a esperança de processá-lo – até que foi informada de que nenhum crime foi cometido.
Muito recentemente, o jornal Sydney Morning Herald publicou um luxuoso suplemento promovendo uma celebração do “Eu também” (“Me Too”) na Ópera de Sydney. Entre os principais participantes esteve a recentemente reformada ministra australiana dos Negócios Estrangeiros, Julie Bishop.
Bishop tem aparecido ultimamente nos media locais, louvada como uma perda para a política: um “ícone” a ser admirado, como alguém lhe chamou.
A elevação a celebridade feminista de alguém tão politicamente primitivo como Bishop diz-nos como a chamada política de género subverteu o essencial: a verdade objectiva. O que importa, acima de tudo, não é o género mas a classe que se serve.
Antes de ter entrado na política, Julie Bishop era uma advogada que servia o grande empresário mineiro de amianto James Hardi, o qual rejeitava as reivindicações dos trabalhadores e suas famílias, que estavam a morrer horrivelmente de asbestose pulmonar.
O advogado Peter Gordon recorda-se de Bishop a “perguntar retoricamente ao juiz por que razão os trabalhadores deveriam ter tratamento prioritário nas filas do tribunal só porque estavam a morrer”.
 E Bishop diz que “actuou com instruções… profissionalmente e eticamente”.
Por isso, talvez estivesse meramente a “actuar com instruções” quando voou para Londres e Washington no ano passado, com a sua chefe de gabinete ministerial, a qual anunciou que a ministra australiana dos Negócios Estrangeiros levantaria o caso Julian Assange e, com esperança, iniciaria o processo diplomático para trazê-lo de volta ao seu país.
O pai de Julian escreveu uma comovente carta ao então primeiro-ministro, Malcolm Turnbull, pedindo-lhe que o governo interviesse diplomaticamente para libertar o seu filho. Disse a Turnbull recear que Julian pudesse não sair vivo da embaixada do Equador em Londres, onde se encontra refugiado desde 19 de Junho de 2012.
Julie Bishop teve toda a oportunidade no Reino Unido e nos Estados Unidos para apresentar uma solução diplomática que traria Julian de volta a casa. Mas isso exigia a coragem de alguém orgulhoso por representar uma nação soberana, um Estado independente, não de um vassalo.
Ao invés, a ministra não fez qualquer tentativa para contradizer o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Jeremy Hunt, quando este afirmou, de modo ultrajante, que Julian “enfrentava graves acusações”. Que acusações? Não havia acusações.
A ministra australiana dos Negócios Estrangeiros abandonou o seu dever de falar alto em defesa de um cidadão australiano, perseguido por nada, acusado de nada, culpado de nada.
Será que merece adulação este falso “ícone” que actuou em conivência com forças estrangeiras para punir um jornalista australiano, o único cujo trabalho revelou como o militarismo predatório esmagou as vidas de milhões de mulheres comuns em muitos países? Só no Iraque, os Estados Unidos dirigiram uma invasão do país, na qual a Austrália participou, que deixou 700 mil viúvas.
Então o que pode ser feito? Um governo australiano pronto a corresponder a uma campanha pública para resgatar o jogador de futebol, Hakeem al-Araibi, da tortura e perseguição no Bahrein, certamente seria capaz de trazer Julian Assange de volta a casa.
Mas a recusa do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Camberra em honrar a declaração das Nações Unidas de que Julian é vítima de “detenção arbitrária” e tem um direito fundamental à sua liberdade é uma ruptura vergonhosa do espírito do direito internacional.
Por que o governo australiano não fez nenhuma tentativa séria para libertar Assange? Por que Julie Bishop se inclinou perante os desejos de duas potências estrangeiras? Por que esta democracia se distingue pelos seus relacionamentos servis e alinha com uma potência estrangeira fora da lei?
A perseguição a Julian Assange tem a ver com todos nós: com a nossa independência, o nosso auto-respeito, a nossa dignidade intelectual, a nossa solidariedade, a nossa política, a nossa cultura.
Deixemo-nos de rodeios. Sejamos corajosos. Desafiemos a polícia do pensamento.
Guerra não é paz, liberdade não é escravidão, ignorância não é força. Se Julian Assange pode enfrentar o Big Brother, então também cada um de nós pode: todos podemos.

*Discurso num comício de solidariedade com Julian Assange em 4 de Março de 2019, organizado pelo Partido da Igualdade Socialista em Sydney, Austrália.




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