A DEMOCRACIA ATRAIÇOADA NO BRASIL
2018-11-01
Alexandre Weffort, especial para O Lado Oculto
Depois de um verão excepcionalmente quente e prolongado, Lisboa amanheceu subitamente fria, com alguns aguaceiros mas instalando-se o Sol pelo meio da manhã. Foi nesse clima ambíguo que milhares de brasileiros se apresentaram à votação, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Haddad ou Bolsonaro, Esquerda ou Direita, Democracia ou Fascismo. E a escolha deste último venceu, pelo voto. Como é referido nos media brasileiros, os generais voltam ao poder no Brasil, pela mão de um capitão reformado e o voto de mais de 57 milhões de pessoas.
Nas condições em que se realizaram as eleições, a possibilidade de vitória da esquerda ombreava com a de derrota. O risco de uma curva ainda mais à direita, de um Brasil nas mãos de Bolsonaro&Cia., foi sendo contrariado pela notável campanha de Fernando Haddad e Manuela d'Ávila. Mas, mesmo assim, a vitória eleitoral coube à ultra-direita (com uma margem confortável, de cerca de 10 milhões de votos).
A tensão que se adivinha no futuro será intensa e extravasará as fronteiras do Brasil e da América Latina. Terá impacto a nível global. Isso foi sentido e entendido por milhões de brasileiros no Brasil e mundo, e, também, por milhares de pessoas de outras nacionalidades, que solidariamente se envolveram na denúncia do fascismo em ascensão (1), processo que tem uma dimensão global, intimamente relacionado com a geopolítica em que povos e nações se confrontam com o Imperialismo (seja este entendido na sua expressão geográfica - onde os EUA surgem como polo determinante - seja na sua expressão económica, da fase história do capitalismo em que nos encontramos mergulhados).
As "razões que a razão desconhece" e as que se conhecem bem
Alguns célebres políticos "democratas" optaram por ficar sentados "em cima do muro", por "razões que a razão desconhece", como diria Pascal. Outros, como Ciro Gomes, fugiram à definição do campo político que escolhem por razões ditas "práticas" (ou seja, por aquele pragmatismo que frequentemente nos faz questionar a moral do político comum), mas que são explicáveis por razões mais profundas, razões de classe (da sua origem de classe; da sua participação na dominação de uma classe sobre as demais), razões que se podem até elucidar por via de uma análise teórica, tanto da teoria política como da psicologia.
Importa enfatizar a responsabilidade que cabe a estes actores políticos sentados em "cima do muro" neste desenlace final do golpe contra a democracia dado em 2016. Desde essa altura, a um nível pré-institucional, o fascismo estava instalado no Brasil. Um fascismo pós-moderno, fragmentário, representado no Brasil pelo governo Temer, imposto com a derrota da democracia traçada no terreno judiciário. Foi aquele processo que abriu o caminho aos apologistas do fascismo clássico, do fascismo de caserna.
Nessa ascensão do populismo fascista partilham sérias responsabilidades, tanto o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) de Fernando Henrique Cardoso, como o PMDB (agora MDB, Movimento Democrático Brasileiro) de Michel Temer, ao promoverem o impeachment de Dilma Rousseff, que festejaram naquele momento deplorável da história brasileira (desde os "panelaços" que fazem recordar os momentos que antecederam o golpe militar de Pinochet no Chile, à alegria histérica do "tchau Dilma"). Só que, nesse movimento de ascensão da ultra-direita, foram também levados na enxurrada os políticos do chamado "centrão" (a área de charneira em que se aglomeravam os representantes da social democracia de várias tendências). Foi, assim, à esquerda a quem coube a tarefa de resistir e desenhar um caminho alternativo.
O populismo em cada lado do muro
Ao procurar acompanhar nestes dias as notícias nos media brasileiros, vemos já os sinais dos tempos que se avizinham. Por um lado, pelas escolhas do presidente eleito Jair Bolsonaro para alguns postos-chave da governação e, por outro, pelas voltas sinuosas que alguns dos protagonistas políticos "em cima do muro" vão dando, procurando onde melhor por o pé para descer, ou subir, como no caso de Ciro Gomes.
As escolhas de Jair Bolsonaro incidem sobre alguns dos seus colaboradores mais próximos, a começar pelos militares, encabeçados pelo vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, seguidos do economista ultraliberal Paulo Guedes (recém indiciado pelo MPF)
Os media brasileiros já sinalizaram a intenção de o presidente eleito atribuir um lugar ministeriável ao cantor e pastor evangélico Magno Malta, que acabou por perder a hipótese da reeleição para o Senado, aparecendo ao lado de Jair Bolsonaro na oração que fez anteceder a sua primeira comunicação após a vitória eleitoral (2). Para a área da Justiça foi escolhido o juiz Sérgio Moro, tornado célebre pela função desempenhada no período do impeachment a Dilma, de perseguição a Lula da Silva - o mais relevante preso político da actualidade, segundo Noam Chomsky (3).
Segundo os media brasileiros, Ciro Gomes, um dos políticos "empoleirados" no muro, havia declarado que "se Bolsonaro fosse eleito choraria e abandonaria a política" (4). Depois de ser afastado da corrida presidencial na primeira volta, ficando colocado em terceiro lugar, viajou para a Europa com a família, "para descansar". No regresso, na véspera da votação, diria que, por razão "prática", não apoiava Haddad. Agora, desdizendo a declaração feita meses antes, de que abandonaria a política, aparece como pretendente ao cargo de Presidente da República em 2022. Diz que irá percorrer o Brasil nestes quatro anos, um pouco à imagem de D. Quixote, faltando-nos conhecer quem levará como vice, no papel de Sancho Pança. Para o papel de Rocinante, apresta-se o PDT (Partido Democrático Trabalhista, o sétimo partido político de Ciro Gomes em 38 anos de carreira).
Sublinha-se a diferença entre as posturas de Fernando Haddad e Ciro Gomes perante a hecatombe eleitoral: enquanto Ciro Gomes aposta numa imagem individualista, do político oligarca, mesmo que de pendor democrático, apontando somente ao cargo presidencial como objectivo final, Haddad aposta na imagem do político que busca uma identificação com as massas populares, sem negar a sua origem partidária (mas sem perder de vista a necessidade de se construir uma ampla unidade das forças progressistas para a fase de resistência em defesa da democracia que agora se inicia).
O mote "anti-petista" e da corrupção
Observa-se, da parte de Ciro Gomes, uma estratégia que é mais de sobrevivência como actor político do que de afirmação de um projecto político específico, ou mesmo de um ideal de sociedade. E a sua razão "prática" acaba por se reduzir à intenção de ocupar o espaço do PT (Partido dos Trabalhadores) enquanto oposição. O "anti-petismo" surge no discurso de Ciro Gomes (5) da mesma forma que no de Bolsonaro: é um mote destinado à mobilização cega de multidões intoxicadas com a campanha encetada desde 2013 até ao impeachment.
O fenómeno da corrupção existiu antes dos governos de Lula e Dilma, existiu nas duas décadas passadas, continuou no de Temer e, veremos mais adiante, também existirá no de Bolsonaro. As críticas feitas ao PT nessa matéria são inseridas numa lógica de "terra queimada". Não buscam esclarecer nem superar as deficiências concretas. Ciro Gomes coloca ao seu serviço o PDT, da mesma forma que Bolsonaro colocou o PSL (Partido Social Liberal). É o mesmo modelo de actuação populista, a nível partidário, apenas mudando o pendor.
É contra esta forma populista de fazer a política que se posicionam os movimentos sociais e os partidos de esquerda como PT e PCdoB (Partido Comunista do Brasil), nomeadamente na forma como actuaram na segunda volta da campanha eleitoral, com uma forte aproximação às bases, no levantamento da capacidade crítica da consciência social.
As eleições brasileiras mostraram, na sequência de outras experiências realizadas a nível internacional (presidenciais dos EUA, Brexit), como a democracia representativa resulta frágil perante as novas formas de comunicação virtual, através das redes sociais na internet. Nesse novo habitat tecnológico, a conjugação de interesses de grupo, de ordem económica, religiosa e política coloca em desvantagem os movimentos populares progressistas. Aproveitando essa desvantagem, a democracia brasileira foi atraiçoada por uns e violentada por outros. Defendida por muitos, mas que, desta vez, ficaram em minoria.
Referências:
1.Manifesto, promovido a nível internacional e encabeçado por Adolfo Pérez Esquivel, Angela Davis, Bernie Sanders, Costa-Gavras, Cristina Kirchner, ultrapassou, à data de redacção deste texto, as 30 mil assinaturas (em https://www.change.org/p/international-declaration-against-fascism-in-brazil-manifesto-internacional-contra-o-fascismo-no-brasil.
2.https://www.revistaforum.com.br/cria-um-pouco-de-preocupacao-diz-miriam-leitao-sobre-oracao-de-bolsonaro/.
3.http://www.vermelho.org.br/noticia/315623-1.
4.https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/09/12/interna_politica,705465/ciro-diz-que-sai-da-politica-se-bolsonaro-vencer.shtml.
5.https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/age...iro-vai-rivalizar-com-pt-pelo-posto-de-anti-bolsonaro.amp.htm.