GAZA, O LABORATÓRIO DA INDÚSTRIA DA MORTE

2018-11-01
Gabriel Schivone, The Electronic Intifada/O Lado Oculto
Depois de termos explorado o imenso dispositivo de vigilância ao longo da fronteira entre os Estados Unidos e o México e de termos encontrado sistemas israelitas instalados a cada passo, o escritor Todd Miller e eu próprio decidimos investigar Israel como país responsável pela maior indústria de segurança interna do mundo. A indústria israelita de armamento é duas vezes mais importante que a sua equivalente norte-americana em volume de exportações por habitante e emprega uma percentagem de mão de obra nacional duas vezes mais importante que a dos Estados Unidos ou de França, dois dos maiores exportadores mundiais de armas.
Durante uma viagem a Israel concentrámos a nossa atenção sobre alguns dos industriais mais empreendedores de Israel, que nos explicaram como procedem para controlar uma região com a dimensão do Estado norte-americano de Nova Jersey.
No primeiro dia, durante uma conferência anual sobre drones, conhecemos Guy Keren, carismático presidente de uma empresa de segurança interna israelita designada iHLS, que organizara a reunião.
Alguns dias depois encontrámos Keren na novíssima sede social da iHLS, situada na cidade costeira mediterrânica de Raanana, conhecida por albergar um parque industrial de alta tecnologia que pode acolher até 150 startups.
Keren explicou-nos então até que ponto a Faixa de Gaza proporciona a Israel – e à iHLS – uma vantagem concorrencial em relação aos outros países, devido às possibilidades de testar novos produtos em tempo real e durante todo o ano. Israel é conhecida como “a nação startup” entre as elites mundiais de negócios.
Um “cadinho humano”
Perguntámos a Keren a razão pela qual a indústria tecnológica israelita tinha um desenvolvimento tão dinâmico, sobretudo no sector militar.
“Porque apuramos os nossos sistemas em tempo real”, disse. “Estamos sempre em situação guerra. Se não produzimos agora uma coisa, poderemos fazê-lo já no mês que vem”.
“Não se trata apenas de produzir tecnologia e ter de esperar anos antes de testar os sistemas”, acrescentou Keren. O segredo do êxito do sector israelita de armamento está na “utilização da tecnologia em situação real mais rapidamente do que qualquer outro país”.
Keren não é o primeiro a estabelecer esta relação de causa e efeito. Gaza é largamente encarada pelos sectores militar e de alta tecnologia de Israel como um “cadinho” (pequeno recipiente para experimentação em laboratório) humano – para melhorar a capacidade de matar e de cultivar os métodos de “pacificação”.
Quando Roei Elkabetz, um brigadeiro general do exército israelita, se dirigiu a um congresso de especialistas em tecnologia de controlo de fronteiras organizado em El Paso (Texas), clicou numa fotografia do muro construído pela Magal Systems e que isola Gaza do mundo exterior.
“Aprendemos muito com Gaza”, comentou. “É um excelente laboratório”.
Leila Stockmarr, uma universitária dinamarquesa, assistiu ao mesmo tipo de apresentações sobre a segurança israelita que Todd Miller e eu próprio. “A maior parte dos representantes das empresas que entrevistei explicaram que as novas tecnologias estão no centro das capacidades policiais e militares de Israel. São desenvolvidas e ensaiadas numa situação concreta de controlo de uma população, como na Faixa de Gaza”, escreve Stockmarr no seu ensaio de 2016: “Para lá da Tese do Laboratório: Gaza como Correia de Transmissão da Guerra e da Tecnologia de Segurança”.
Afinado em tempo real
Um representante de uma grande empresa de segurança declarou a Leila Stockmarr: “Sempre que o exército israelita nos faz uma encomenda, depois da sua instalação inicial no terreno os serviços técnicos da empresa são frequentemente contactados para fazer correcções e ajustamentos em função da experiência. Deste modo, de cada vez que o exército usa a tecnologia israelita HLS – Homeland Security – está a testá-la automaticamente. As empresas extraem grandes vantagens da situação, e de cada vez que chega uma nova encomenda esta interligação ao campo de batalha é levada em consideração para melhorar o processo de apresentação a concurso e garantir a qualidade e a eficácia”.
Oportunidade excepcional para a indústria de armamento de um país: Israel dispõe de um território que ocupa – Gaza – muito próximo das instalações de produção de armas e da sua tecnologia de vigilância. Como notou Stockmarr em 2016, o envolvimento na Faixa de Gaza ajuda as empresas a gerar e a aperfeiçoar novas ideias e a melhorar as gamas dos seus produtos.
Em Abril de 2018, Saar Koursh, então presidente da Magal Systems – empresa em concurso pelas extensões das infraestruturas de vigilância na fronteira entre os Estados Unidos e o México propostas pelo presidente Donald Trump – descreveu mesmo Gaza como uma “salão de exposições” para as “vedações inteligentes” da empresa, “cujos clientes apreciam o facto de os produtos serem testados em combate”.
Stockmarr sublinha que os palestinianos de Gaza são usados como autênticas cobaias na fase de teste, assumindo um “papel crucial” neste ciclo da indústria e da segurança interna: “para avaliar um determinado produto, a inclusão sistemática das respostas das populações alvejadas pelas novas tecnologias de segurança é crucial para os compradores estrangeiros”.
Muitos clientes através do mundo estão cientes disso, sobretudo se as margens de lucro estiverem em alta. “As acções da Magal nos Estados Unidos dispararam em finais de 2016, quando Trump falou da construção de um muro na fronteira mexicana”, segundo a cadeia Bloomberg.
E durante o primeiro mês do ataque israelita contra Gaza em 2014, o valor das acções da maior empresa de armamento de Israel, a Elbit Systems, aumentou 6,1%. Mais de 2200 palestinianos foram mortos durante esse ataque.
Uma experiência com duração ilimitada
A última série de drones israelitas para controlo de multidões fez a sua estreia em Gaza a partir do início das manifestações da Grande Marcha do Regresso, todas as sextas-feiras desde 30 de Março. Inclui o drone Sea of Tears (Mar de Lágrimas) – aparelho de fabrico chinês equipado com uma câmara e modificado pela polícia israelita para lançar gases lacrimogéneos sobre a massa humana – e o drone Shocko, que despeja água contaminada e fétida sobre os manifestantes
Durante os últimos seis meses, o Ministério da Saúde em Gaza registou os efeitos provocados em seres humanos pelas chamadas “balas borboleta” israelitas, que explodem ao contacto com a vítima. Estão entra as balas mais mortíferas jamais utilizadas por Israel.
Membros da organização Médicos Sem Fronteiras trataram ferimentos provocados por estas balas em 50% dos mais de 500 pacientes que socorreram durante as manifestações.
Os manifestantes que não foram mortos imediatamente ficaram gravemente feridos, o que proporciona às “balas borboleta” um novo lugar na longa história da prática de tiro com balas reais pelo exército israelita. Jasbir K. Puar fornece pormenores na sua obra “The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability” (O direito de mutilar: debilidade, capacidade, deficiência).
Até 1 de Outubro, pelo menos 150 palestinianos foram mortos na Grande Marcha do Regresso, entre os quais 30 crianças. Mais de dez mil pessoas foram feridas, metade em consequência de tiros com balas reais.
De regresso ao parque industrial de Raanana, Keren e os seus colaboradores da iHLS, trabalhado em gabinetes climatizados, aplicam-se a desenvolver os próximos actores da indústria de armamento em Israel, a actualizar os sistemas e a aumentar as suas margens de lucro.
*Professor convidado da Universidade do Arizona e autor do livro a publicar: “Making the New ‘Illegal’:How Decades of US Involvment in Cantral America Triggered the Modern Wave of Immigration” (Criando a nova “ilegalidade”: como décadas de envolvimento dos Estados Unidos na América Central provocaram a actual vaga de imigração), Prometheus Books