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SUICÍDIOS POR “TERROR PATRONAL” CHEGAM A TRIBUNAL

2019-07-13

Sylvie Moreira, Paris

Privatizações geram “ondas de suicídios”. O julgamento de sete ex-executivos da empresa France Télécom que tem vindo a decorrer em França e aguarda sentença é um processo que senta no banco dos réus os métodos de “liberalização e flexibilização” do mercado de trabalho, a prática obsessiva de privatizações e o sistema neoliberal de “liberdade de mercado”, máximo lucro e desrespeito pelos direitos humanos.

Os sete ex-executivos da empresa nacional de telecomunicações France Télécom, entretanto privatizada e designada actualmente Orange, estão a ser julgados por “assédio moral”, conceito que abrange as práticas de perseguição e despedimento de trabalhadores que terão levado três dezenas e meia ao suicídio em 2008 e 2009 durante o processo de “reestruturação” da empresa associado à privatização.

É a primeira vez que a Justiça de um país admite aprofundar as queixas de famílias de trabalhadores que escolheram a morte por não conseguirem conviver com práticas de terror patronal que deixaram descritas em cartas de despedida. 

“Acuso os chefes da France Télécom de gerir pelo terror” e “mato-me por causa do meu trabalho” na empresa, escreveu um homem de 51 anos, de Marselha, na carta que deixou antes de se suicidar.

Numa carta de despedida que deixou ao pai, uma mulher de 32 anos explicou que não conseguia continuar sob as ordens do seu chefe directo. Depois lançou-se do quinto andar do edifício da empresa, perante os seus colegas.

A filha de um homem que se imolou pelo fogo no parque de estacionamento da France Télécom em Bordéus, em 2011, acusou: “vocês mataram o meu pai”.

“Saem pela porta ou pela janela”

O Ministério Público francês considera que existem provas suficientes para condenar os ex-executivos da empresa com penas que poderão chegar a um ano de prisão e diversos tipos de multas. Em julgamento estão, designadamente, o ex-presidente-executivo Didier Lombard, o seu vice-presidente Luis-Pierre Wenàs e o director de Recursos Humanos, Olivier Barberot. São acusados pelos procuradores de promover um sistema de “assédio moral institucionalizado” que teria como objectivo fazer com que numerosos funcionários tivessem de pedir a demissão. Foi neste quadro que mais de três dezenas de trabalhadores da France Télécom se suicidaram.

A empresa foi privatizada em 2004 e logo no ano seguinte, como é usual nestas transformações, os novos proprietários decidiram cortar 20% da força de trabalho, o que equivaleria a 22 mil despedimentos em três anos e à reformulação de funções para mais de 10 mil.

Os novos proprietários, porém, depararam como dificuldades para fazer os despedimentos desejados, uma vez que os trabalhadores tinham sido contratados por uma empresa pública e tinham direitos garantidos por lei.

Nessa situação, os executivos decidiram “tornar intolerável a vida dos funcionários”, segundo o Ministério Público, de modo a que pedissem demissão.

Ainda de acordo com a acusação, o presidente Didier Lombard afirmou numa reunião de direcção, em 2006, que “faria com que as pessoas saíssem de qualquer maneira, ou pela porta ou pela janela”. Durante o julgamento desmentiu que tivesse feito a afirmação. Mas “as transformações pelas quais um negócio necessita de passar não são agradáveis, mas é assim que funciona. Não havia mais nada que se pudesse fazer”, sentenciou de uma maneira que pode considerar-se modelar para definir a relação do neoliberalismo com o ser humano.

O julgamento decorreu no quadro de legislação francesa estabelecida em 2002, relacionada com a defesa da “saúde física e mental” dos trabalhadores ao serem vítimas de “assédio moral”.

“Vocês queriam desestabilizá-los”

A procuradora Françoise Benezech declarou no tribunal que não tinha dúvidas de que “ao reestruturar a empresa, através de grandes cortes de empregos e transferências, os gestores sabiam que estavam a desestabilizar os seus funcionários”. Dirigindo-se aos executivos acrescentou: “vocês queriam, de facto, desestabilizá-los”.

A advogada do grupo Orange, nova designação da original France Télécom, argumentou que não existem provas de assédio moral e pediu ao juiz que seja “objectivo”. Durante o julgamento, a Orange divulgou um comunicado segundo o qual “acredita que o progresso económico e o progresso social andam de mãos dadas”.

“Julgamento histórico”

A professora Sarah Waters, especialista em direito laboral da Universidade britânica de Leeds, considera que este “é um julgamento criminal histórico”, porque “abre um precedente internacional ao fazer com os dirigentes da France Télécom sejam pessoalmente responsabilizados criminalmente por pressionarem os empregados de tal maneira que estes sentiram necessidade de acabar com a vida”.

Um estudo da professora Sarah Waters dá conta de “ondas de suícidios” em França nos momentos de reestruturação e privatização de empresas como a France Télecom, a Renault, os serviços de correios, a Peugeot, empresas de energia, bancos, supermercados, polícia e centros de investigação. “No total, mataram-se 294 trabalhadores entre 2005 e 2015”, informa. Por isso, acrescenta no estudo publicado em 2016, o ambiente de trabalho tornou-se “uma preocupação social urgente no cenário internacional.

Outros estudos feitos nos Estados Unidos, Austrália, China, Índia, Coreia do Sul e Taiwan relacionam igualmente o suicídio com fenómenos como a deterioração das condições de trabalho, a instabilidade do emprego e a exaustão. De tal modo que a Organização Mundial de Saúde reconheceu em Maio último o esgotamento por excesso de trabalho como uma condição médica.

Num editorial publicado em 2017, a revista médica The Lancet afirma, por exemplo, que o esgotamento entre médicos atingiu “proporções epidémicas” no Reino Unido; e que, nos Estados Unidos, é responsável por uma taxa de suicídio de 400 médicos por ano, o dobro da média da população norte-americana.

Todos estes dados, considera Sarah Waters, reflectem o modelo neoliberal da economia, onde as empresas recorrem a múltiplos efeitos de pressão para se tornarem cada vez mais competitivas e lucrativas.



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