BRASIL: A RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA CONTRA A BARBÁRIE

2018-09-28
Alexandre Ganan de Brites Figueiredo*, Cooperação Portal Vermelho/O Lado Oculto
Há alguns dias, quando a Avenida Paulista estava tomada pelo festival Lula Livre e pelo desfile com Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores, PT) e Manuela D'Ávila (Partido Comunista do Brasil, PC do B) o candidato da extrema-direita divulgava uma sombria fala desde o leito do hospital em que se encontrava.
Jair Bolsonaro (extrema-direita fascista) procurou antecipar a disputa de uma segunda volta eleitoral contra Haddad, demarcando seu campo para desidratar ainda mais a candidatura de Geraldo Alckmin (direita) no tempo que resta até às eleições de 7 de Outubro. Os tucanos, membros do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), imaginaram que herdariam o país após o golpe de 2016 e agora são engolidos pela extrema-direita. Até aí, são as disputas internas do campo conservador.
A questão está na explícita ameaça à democracia, sem qualquer máscara. Bolsonaro ataca desde já a legitimidade das eleições, diz que as votações serão fraudulentas e que o presidente Lula estaria preso não por conta da flagrante injustiça da sentença de Moro, mas sim de uma estratégia bizarra dele próprio, Lula: uma sandice evidentemente insustentável. Porém, matéria fértil para seus apoiantes. Já se disse que a Segunda Guerra Mundial foi uma luta entre o irracionalismo dos fascistas e os herdeiros do Iluminismo. O fascismo alimenta-se da irracionalidade e cresce graças a ela. Não é diferente hoje.
Sabendo disso, a candidatura da extrema-direita procura deixar a cama feita para atacar, de novo, a democracia. Alguns dias antes, o candidato a vice-presidente na lista de Bolsonaro, o general da reserva Hamilton Mourão, falou contra a Constituição Federal. Disse a uma plateia de empresários em Curitiba que o Brasil precisa de uma Constituição enxuta e elaborada por alguns escolhidos do presidente, sem necessidade de voto popular ou de eleições constituintes.
Não é a primeira das declarações obtusas de Mourão, mas dita num contexto em que pretendia chamar a si o protagonismo após a hospitalização do titular da lista, ganha mais relevância e evidencia que o Brasil tem diante de si um discurso político autoritário, antidemocrático e difusor das fantasias mais esdrúxulas.
Não obstante, isso não impede a tendência dos “liberais” do país para o apoiar. “Herdeiros do Iluminismo” estão dispostos a sacrificar a democracia para impedir a quinta vitória do projeto popular. Nada de novo: fizeram isso em 2016. Mas agora a alternativa de direita deixou cair as suas máscaras, ataca abertamente a institucionalização bem ou mal construída após a última ditadura e não se constrange em assumir os preconceitos mais atávicos da escravocracia difundida desde a elite brasileira.
Estado criado para os ricos
Foi um pacto liberal-conservador que sustentou a escravatura e, depois dela, uma república sem voto popular, com o poder concentrado em alguns oligarcas. Esse é o tamanho do retrocesso pregado por este polo que, até agora, tem conseguido aglutinar a direita. Aliás, um acordo desse tipo foi a tónica em quase toda a América Latina durante a segunda metade do século XIX, no final do processo de consolidação dos estados nacionais.
Lá atrás, esse pacto foi viabilizado por uma fórmula que agradava a ambos os projetos: restrição dos direitos políticos e ampliação dos direitos económicos, ou seja, garantia de acção livre para o capital e portas fechadas à participação popular no poder. Os nossos Estados foram, assim, forjados no interesse dos mais ricos e com um abismo separando o povo de suas instituições.
É a reedição desse acordo que temos diante de nós, no horizonte. As forças que se aglutinam ou que já namoram com a candidatura de Bolsonaro têm raízes históricas que descem ao colonialismo, à escravatura, às castas, a um modelo de Estado excludente. Desde as independências, há dois séculos, são o obstáculo à nossa soberania e à extensão da cidadania a todo o povo. Por isso, devido às suas raízes e ao seu programa histórico, esse acordo entre os liberais e mercantilistas com uma extrema-direita antidemocrática passa, necessariamente, pelo ataque à Constituição de 1988 e a tudo o que ela representa.
Também há alguns dias, o ministro Dias Toffoli tomou posse como presidente do Supremo Tribunal Federal. No seu discurso, defendeu enfaticamente a ordem constitucional. Apresentou a Constituição de 1988 como o topo de um processo de extensão dos direitos individuais, colectivos, sociais, económicos, culturais e das minorias. Recomendou prudência aos juízes e lembrou que o Judiciário só existe em democracia quando actua de forma harmónica com os outros dois poderes. Fez ainda uma defesa do direito de voto e lembrou que durante a maior parte da história brasileira predominou a exclusão.
Neste momento em que se configura uma candidatura abertamente contrária ao que a Constituição de 1988 representa, a declaração do novo presidente do STF vem em boa hora. Até porque sabemos que vivemos um momento delicado para o Judiciário, no qual garantias fundamentais são desrespeitadas, tratados internacionais são desrespeitados e juízes falam fora dos autos. Até o direito aos habeas corpus e as prerrogativas da advocacia são colocados em questão pelas autoridades que têm o dever constitucional de defendê-las.
Uma Constituição não é apenas uma lei fundamental. É um projeto de sociedade e um compromisso com o futuro. A de 1988 foi elaborada tendo em vista o histórico abismo social, a falta de direitos e de meios para garantir esses direitos, bem como a necessidade de superar o arbítrio e consolidar um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Claro, a sua mera existência não garante nem um e nem outro. Mas é a definição dessa meta, desse projeto colcetivo, que deve orientar o Brasil e a actuação das instituições. Por isso, sempre houve desconforto da elite económica do país com a Constituição. O governo de Temer, inclusive, atacou-a diretamente.
Hoje, momento em que esse ataque está cada vez mais descarado, despindo-se da fantasia de legalidade que o golpe de 2016 tentou vestir, o campo popular e democrático deve fazer da sua defesa o ponto inicial do debate. Quando Fernando Haddad disse, ao final de sua “entrevista” ao Jornal Nacional, que era candidato para trazer o Brasil de volta ao período de normalidade democrática, era a essa normalidade democrática que se referia: ampliação dos direitos para o povo e superação das desigualdades. Esse é o programa da candidatura de Haddad e Manuela e é o programa da nossa Constituição. Não é à toa que os inimigos de uma se apresentam cada vez mais como inimigos da outra.
O campo popular e comprometido com a democracia está hoje aglutinado em torno do legado de sua última grande vitória: o ciclo de mudanças aberto com a eleição do presidente Lula. Fernando Haddad e Manuela D’Ávila são tanto os indicados por ele para garantir um novo ciclo de direitos e democracia, como são, desde já, a própria resistência democrática contra a barbárie. A disputa está aberta entre os herdeiros de 1988 e o obscurantismo. É hora de tomar posição!
*Advogado, bacharel em História e doutor em Integração da América Latina pelo PROLAM (Program de pós-graduação em Integração da América Latina) da Universidade de São Paulo (USP).