A MILITARIZAÇÃO DOS ESPÍRITOS JOVENS

2019-05-06
Manlio Dinucci, Il Manifesto/O Lado Oculto
O sentido de sacrifício comove. A guerra pode tornar-se admirável. Receita: (1) descobrir um herói jovem e simpático (2) louvar a sua dedicação e a sua morte altruísta (3) assegurar que se trata de defender os bons contra os maus (4) silenciar os horrores cometidos. A estratégia continua a funcionar, agora e sempre.
Cerca de cinco mil crianças e adolescentes de 212 turmas participaram recentemente em Pisa, Itália, na “Jornada de Solidariedade” em memória do major Nicola Ciardelli do Regimento de Paraquedistas, morto em 27 de Abril de 2006 num “terrível atentado” em Nassirya, Iraque, durante a “missão de paz” Antica Babilonia. A Jornada, organizada anualmente pela Associação Nicola Ciardelli Onlus, criada pela família, tornou-se o laboratório de uma grande operação – na qual participa um largo arco de organismos e associações – para “sensibilizar os jovens estudantes para a importância do empenhamento de cada um na construção de um futuro de Paz e de Solidariedade”. A operação tornou-se possível com o apoio do Município (primeiro dirigido pelo Partido Democrático e hoje pela Liga).
O exemplo a seguir é o “é o compromisso assumido por Nicola em favor das populações dilaceradas pelos conflitos que ele encontrou em numerosas missões nas quais participou” e durante as quais “apontou o dedo à devastação das guerras e ao sofrimento de quantos são obrigados a vivê-lo, em primeiro lugar as crianças”.
O que não se conta aos jovens…
Porém, ninguém contou aos cinco mil jovens e adolescentes a verdadeira história da guerra devastadora desencadeada em 2003 pelos Estados Unidos contra o Iraque, país já anteriormente submetido a um embargo que provocou, em dez anos, um milhão e meio de mortos, entre os quais meio milhão de crianças.
Ninguém lhes explicou também que, para justificar a guerra acusando o Iraque de possuir armas de destruição massiva, foram fabricadas “provas” que depois se vieram a revelar falsas.
Ninguém lhes disse que, para eliminar a resistência, o Iraque foi submetido a fogo e sangue por todos os meios: desde bombas de fósforo contra a população de Fallujah à tortura na prisão de Abu Ghraib.
Nesta guerra – definida hoje pelo Ministério italiano da Defesa como “a Operação Liberdade para o Iraque conduzida pelos Estados Unidos para eliminação do regime de Saddam Hussein, no quadro da luta internacional contra o terrorismo” – participou o contingente italiano Antica Babilonia. A conselheira política dos seus comandantes, entre 2005 e 2006, foi a actual ministra da Defesa, Elisabetta Trenta (Movimento Cinco Estrelas). Desse contingente fez parte o 185º Regimento de Paraquedistas Folgore, de reconhecimento e identificação de objectivos, unidade de forças especiais na qual estava integrado o oficial Nicola Ciardelli.
O Regimento – segundo documenta o Ministério da Defesa – “opera infiltrando-se em destacamentos operacionais para lá das linhas inimigas em acções directas que prevêem a identificação de objectivos à distância, recorrendo para isso a armamento de todas as plataformas de fogo, terrestres, aéreas e navais”. Por outras palavras, uma vez identificado o “alvo” humano, é directamente eliminado por atiradores escolhidos ou, indirectamente, por um apontador laser que guia uma bomba lançada por um avião de caça.
Escola-quartel
Nada disto foi narrado aos cinco mil jovens e adolescentes que, no momento culminante da Jornada, aplaudiram os paraquedistas do La Folgore que desceram do céu sobre a Ponte do Meio (ponte sobre o Arno no centro histórico de Pisa), surgindo aos seus olhos como heróis de Banda Desenhada que defendem os bons contra os maus.
O caso de Pisa não é único. Os militares norte-americanos da base de Sigonella (Sicília) – relata Antonio Mazzeo – estão cada vez mais presentes nas escolas sicilianas, onde dão aulas de inglês, ginástica e outras actividades. Foi à base de Sigonella que um padre de uma paróquia enviou as crianças em “visita de instrução”; e nas bases da Apúlia decorrem estágios “de alternância escola-trabalho” para estudantes dos liceus. Casos análogos registam-se em outras regiões.
O que está em curso é uma verdadeira operação de conquista militar dos espíritos das gerações mais jovens (e não apenas dessas). Haverá professores, estudantes e pais disponíveis para a contrariar, organizando-se para fazer avançar uma cultura de paz contra a cultura da guerra?