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WASHINGTON SAI DO INF: NOVO PASSO PARA A GUERRA NUCLEAR

Em Hiroxima foi assim há 74 anos

2019-02-03

Andre Damon, World Socialist Website/O Lado Oculto

No auge da crise dos mísseis em Cuba, quando o mundo esteve à beira de uma tragédia nuclear, o presidente norte-americano John F. Kennedy disse ao seu irmão Robert:

“Se este planeta for devastado por uma guerra nuclear, se 300 milhões de norte-americanos, russos e europeus forem exterminados por um confronto nuclear de 60 minutos, se os sobreviventes dessa aniquilação conseguirem suportar o fogo, o veneno, o caos e a catástrofe, não quero que um desses sobreviventes pergunte a outro: ‘Como é que tudo isto aconteceu?’ e receba a inacreditável resposta ‘Ah, se alguém soubesse!’”

O presidente Kennedy estava a tentar evitar uma guerra nuclear. Mas não era do seu conhecimento, ou dos membros do seu staff em geral, muitos dos quais desejavam iniciar uma, que esse conflito teria aniquilado não 300 milhões de pessoas mas toda a humanidade. A Teoria do Inverno Nuclear, exposta em meados dos anos oitenta e posteriormente aceite de maneira consensual pela comunidade científica, conclui que uma guerra nuclear em grande escala, como a planeada pelos militares dos Estados Unidos, tornaria o planeta inteiro inabitável durante um século.
Mas é precisamente para esse apocalipse nuclear que os Estados Unidos se preparam efectivamente, pois não estão apenas a tropeçar nele. Como um artigo recente da revista Foreign Affairs advertia os seus leitores: “Preparem-se para a Guerra Nuclear”.
Na sexta-feira, 1 de Fevereiro, o secretário de Estado norte-americano, Michael Pompeo, declarou que os Estados Unidos suspenderão o Tratado de Mísseis de Médio Alcance (INF na sigla anglo-saxónica), um acordo estabelecido em 1987 com a União Soviética (consequentemente com a Rússia) e que proíbe a instalação em terra de engenhos com alcance entre 500 e 5500 quilómetros.
A decisão torna quase inevitável a retirada dos Estados Unidos do outro acordo de armamento, o novo tratado START (mísseis estratégicos ou de longo alcance) estabelecido em 2011 entre os Estados Unidos e a Rússia e que o presidente Donald Trump qualificou como “um dos vários maus acordos negociados pelo governo Obama.”

A razão imediata é a China

Pouco há a dizer sobre as alegações oficiais da Casa Branca para abandonar o tratado: que a Rússia viola as suas cláusulas – apesar dos repetidos convites de Moscovo para que não apenas os Estados Unidos, mas as instâncias internacionais e a comunicação social inspecionem os seus mísseis. Os pretextos da Casa Branca são ecoados por pessoas que não acreditam neles e que também não são questionadas por um aparelho mediático que actua como porta-voz dos militares.
Num artigo em que apoia totalmente as acusações da Casa Branca contra a Rússia, David Sanger, do New York Times – um canal do Pentágono – explica com absoluta lucidez as verdadeiras razões pelas quais os Estados Unidos estão a abandonar o Tratado INF:
“Constrangidos pelas disposições do tratado, os Estados unidos estão impedidos de instalar novas armas para conter os esforços da China no sentido de consolidar uma posição dominante no Pacífico Ocidental e manter os porta-aviões norte-americanos à distância. A China era ainda um pequeno e pouco sofisticado poder militar quando Ronald Reagan e Mikhail Gorbatchov, o último líder de uma União Soviética que enfraquecia rapidamente, negociaram o tratado INF”.
As palavras do próprio Sanger deixam bem clara a razão pela qual os Estados Unidos querem deixar o tratado, e que nada tem a ver com as alegadas violações russas. Washington está a tentar equipar a cadeia de ilhas em redor do continente chinês com uma cobertura de mísseis nucleares.
A saída dos Estados Unidos do Tratado INF não resulta do carinho peculiar que Trump tem pelas armas nucleares. Pelo contrário, é consequência de uma reorientação das forças armadas dos Estados Unidos em direcção ao grande conflito “pelo poder” com a Rússia e a China.

Tecnologia e guerra

Nos últimos dois anos, o sistema militar norte-americano tem ficado cada vez mais alarmado com a rapidez do desenvolvimento tecnológico da China, que os Estados Unidos consideram uma ameaça não apenas aos lucros das suas corporações mas também ao domínio das suas forças armadas.
Há apenas duas décadas, no auge da bolha das “dotcom”, a China pouco mais era do que uma plataforma de mão-de-obra barata, montando electrónica de consumo que impulsionava uma revolução nas comunicações, enquanto as empresas norte-americanas embolsavam a maior parte dos lucros. Hoje, porém, a relação de forças económica está a mudar.
Empresas chinesas como Huawei, Xiaomi e Oppo estão a capturar uma parte cada vez maior do mercado global de smartphones, ao mesmo tempo que as suas rivais Samsung e Apple vêm as fatias de mercado diminuir. A DJI, sediada em Shenzhen, é a líder global incontestada do mercado de drones de consumo. Enquanto isso, a Huawei está mais de um ano à frente da concorrência nas infraestruturas móveis de próxima geração, associadas não só ao desenvolvimento de veículos sem motorista e dispositivos “inteligentes, mas também das armas “autónomas” do futuro. Na mais recente edição da “Avaliação de Ameaças Mundiais dos Estados Unidos” pode ler-se: “Depois de 2019, as inovações que impulsionam a competitividade militar e económica serão cada vez mais produzidas fora dos Estados Unidos, à medida que a liderança norte-americana em ciências e tecnologia diminui”; e as diferenças no domínio comercial e das tecnologias militares evaporam-se”.

Declínio, desespero, fuga para a afrente

É o declínio económico dos Estados Unidos em relação aos seus rivais globais que impulsiona a intensificação dos planos de guerra nuclear do país. Daí que pretenda tirar proveito do seu sector militar para conter a ascensão económica da China e reforçar o predomínio norte-americano no cenário mundial.
Vai surgindo, porém, um consenso no interior das forças armadas dos Estados Unidos segundo o qual Washington não pode apenas usar contra os seus rivais a ameaça de os eliminar totalmente, com base no seu enorme arsenal de mísseis estratégicos. Devido às frotas russa e chinesa de submarinos equipados com mísseis balísticos dotados de armas nucleares, essa opção, mesmo ignorando o efeito do inverno nuclear, teria como consequência a destruição das maiores cidades dos Estados Unidos.
Em alternativa, os Estados Unidos estão a trabalhar na construção de um arsenal nuclear tático “utilizável”, de poder mais reduzido, incluindo a produção de um novo míssil de cruzeiro com capacidade nuclear. Há poucos dias entrou em produção uma nova ogiva nuclear norte-americana dita de baixo rendimento, com uma potência entre metade e um terço da bomba “Little Boy” que destruiu a cidade japonesa de Hiroxima e centenas de vezes menor do que a dos outros sistemas de armas nucleares norte-americanas.
A revisão da política nuclear efectuada pela administração Trump no ano passado prevê o uso de armas desse tipo para alterar as características dos conflitos que se iniciem com armas convencionais, sob o pretexto (no qual o Pentágono pode ou não acreditar) de que não haverá respostas.

Os trabalhadores têm a palavra

Há quase 75 anos, depois de terem “queimado, cozido e assado”, nas palavras do general Curtis Lemay, centenas de milhares de pessoas com um “bombardeamento estratégico” sobre o Japão, os Estados Unidos assassinaram mais centenas de milhares de civis através do lançamento de duas armas nucleares: uma acção que teve como objectivo principal ameaçar a União Soviética.
Em última análise, porém, foi a existência da União Soviética que serviu como um factor de contenção dos impulsos genocidas do imperialismo norte-americano.
Apesar das alegações triunfalistas segundo as quais a dissolução da União Soviética traria uma nova época de paz, democracia e o “fim da história”, ela trouxe um quarto de século de guerras neocoloniais.
Mas as guerras no Iraque, no Afeganistão, na Líbia e na Síria não atingiram os objectivos pretendidos. Depois de gastar biliões de dólares e de matar milhões de pessoas, a posição global do imperialismo norte-americano não é melhor do que quando lançou a “guerra contra o terrorismo”, em 2001.
Os Estados Unidos fazem subir agora a sua aposta, pondo o “conflito entre as grandes potências” na ordem do dia. Devido à sua luta pela hegemonia global, o imperialismo dos Estados Unidos está falido, disposto a recorrer aos meios mais aventureiros e desesperados, até – e incluindo – o lançamento de uma guerra nuclear.
Não existe um caminho capitalista pacífico para gerir esta crise global que explodiu com tanto vigor e violência. Se a humanidade quiser sobreviver no séc. XXI, será necessária a intervenção da classe trabalhadora, a única força social capaz de se opor aos objectivos de guerra das elites capitalistas, através da luta para reorganizar a sociedade numa base socialista.




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