BOLSONARO E A VAGA DE TERROR NO CEARÁ
2019-01-11
Alexandre Weffort, especial para O Lado Oculto
Nos primeiros dias deste ano, o Estado do Ceará, situado no norte da região nordeste brasileira, estado com nove milhões de habitantes e uma área superior à da Inglaterra, foi assolado por uma vaga de ataques produzidos por facções criminais contra os bens públicos (numa estratégia de terror sobre as populações de Fortaleza - a capital do Estado - e de outras 27 localidades). Num momento marcado pela ascensão da direita ao poder no Brasil, na sequência de uma campanha eleitoral onde a apologia da autoridade do Estado acompanhou sempre os discursos da direita vitoriosa, a violência eclode num estado onde o PT (Partido dos Trabalhadores) obteve a sua mais expressiva vitória.
A questão da violência nas entrelinhas dos eventos recentes no Ceará
Segundo o general Guilherme Theophilo, recém empossado secretário nacional da Segurança Pública no Ministério da Justiça, liderado por Sérgio Moro, “o Governo Federal já esperava ações de facções criminosas em represália à posse de Jair Bolsonaro (PSL)”. Segundo ele, tropas federais foram previamente preparadas. “Havia realmente a indicação de que os presídios e as facções vão querer tumultuar o governo do presidente, que nunca escondeu que vai combater severamente as facções criminosas” (1).
Numa conferência de imprensa dada no dia seguinte à decisão do governo federal brasileiro em proceder ao envio de tropas para o Estado do Ceará, o gen. Theophilo indicava haver um trabalho de inteligência militar em curso, desde Fevereiro de 2018. A inteligência militar seria, segundo o gen. Augusto Heleno, responsável máximo por essa área no actual governo de Bolsonaro, uma área deficitária na governação de Dilma Rousseff).
Nas eleições de Novembro passado o gen. Guilherme Theophilo (PSDB) perdeu na disputa do cargo de governador para Camilo Santana (que recebeu praticamente 80% dos votos). Na campanha eleitoral, o candidato do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) teceu reiteradas críticas à política de segurança seguida pelo governo estadual, conduzido pelo PT (Partido dos Trabalhadores).
O discurso de 'linha-dura' foi a tónica da campanha de Bolsonaro (dos gestos à representação gráfica, da linguagem às propostas relativas à liberalização do porte de armas).
Na posse dos secretários estaduais no Ceará, a 'linha-dura' manifestou-se na indumentária e no discurso do novo responsável pela gestão do sistema prisional daquele Estado brasileiro, noticiando uma alteração à política, até então seguida, de separação dos detidos em função das facções criminais em que se filiavam. Uma fotografia, publicada nas redes sociais pelo secretário estadual da Segurança Pública no Ceará após o eclodir dos ataques, sinaliza essa mesma perspectiva.
Enquanto o presidente do Conselho Prisional do Ceará considerava o discurso de posse do novo secretário estadual "imprudente", nas referências feitas às facções criminais, o gen. Theophilo pronuncia-se em defesa daquele, minimizando a possibilidade de o discurso de 'linha-dura' estar relacionada com o eclodir dos ataques.
O actual secretário de Segurança Pública (que já se encontrava em funções no mandato anterior do governador Camilo Santana (PT), afirmava publicamente haver uma diminuição da criminalidade no Ceará. Por seu lado, o gen. Theophilo, crítico da gestão do governador, dizia 'faltar autoridade' no Estado, e acrescenta: “Nós temos que impor ao crime organizado a aplicação severa da lei. O que está acontecendo é que a população está acuada dentro de sua residência e o crime organizado transitando em liberdade pelo nosso Estado” (2).
Agora, perante os eventos deste início de ano, o ex-candidato a governador aparece a defender o desempenho do secretário de Segurança Pública do governo estadual PT (que antes havia criticado), que é colocado no comando da força federal enviada pelo governo de Bolsonaro.
Surgem sinais de aproveitamento político por parte do poder em ascensão. O presidente brasileiro Jair Bolsonaro irá enfatizar a diferença política em relação ao governador do Estado do Ceará, no elogio da rapidez com que o ministro federal da Justiça (Sérgio Moro), "atendeu ao pedido de um Estado cujo governador eleito tem uma posição radical [sic] a nós". Já o vice-presidente, gen. Hamiltom Mourão, procurará mesmo responsabilizar o governador Camilo Santana pela crise de segurança no Ceará (3).
A contradição principal revela-se: o Estado do Ceará, onde o PT alcançou a sua mais expressiva vitória, reelegendo o governador com praticamente 80% dos votos (na mesma eleição em que Bolsonaro foi eleito para presidente do Brasil), será aquele Estado em que as facções criminosas iniciarão uma onda de ataques às instituições públicas, incendiando autocarros, serviços e habitações (dinamitando até o pilar de um viaduto), tendo como motivo aparente a afirmação pública de uma mudança de orientação na política de segurança pública, mudança em que o Estado do Ceará acabará por alinhar o discurso com o que vinha sendo feito por Bolsonaro ao longo da campanha que o conduziu à presidência do Brasil.
Em síntese, podemos citar um parágrafo de matéria publicada nos media cearenses (O Povo on-line). No entanto, embora servindo para retratar os eventos de 2019, trata-se de matéria publicada em abril de 2017. A história repetiu-se linearmente.
“Intervenções em presídios foram a causa dos ataques que provocaram colapso urbano entre a tarde e a noite de ontem na Grande Fortaleza, segundo informações dos bastidores do Governo do Estado. Publicamente, o titular da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), André Costa, deixa hipóteses em aberto. Internamente, entretanto, todos os elementos considerados apontam para acções ordenadas por presidiários. Fontes do Governo atribuem a série de crimes a uma reacção a medidas que buscam impor maior controle sobre as penitenciárias (4).
A disputa de territórios pelas facções criminosas e do monopólio da violência pelo Estado
A causa imediata que se atribui para o desencadear do surto de violência no Estado do Ceará centra-se na disputa de territórios entre facções criminosas, por um lado nos territórios e circuitos de tráfico (nomeadamente, de droga); e, por outro, pelos territórios que se demarcam através da separação das diversas facções em estabelecimentos prisionais específicos.
Em concreto, no Ceará como a nível nacional no Brasil, são duas as facções principais: o PCC (Primeiro Comando da Capital, de São Paulo) e o CV (Comando Vermelho, do Rio de Janeiro), existindo uma série de outras, autónomas ou coligadas, em constante disputa de territórios dentro e fora das prisões. Uma matéria publicada em 2016 (El País on-line) sinalizava o modo como o conflito de território se expandia para norte:
“Os Estados do Norte e Nordeste encontram-se na linha de frente da disputa que se estabeleceu entre o PCC e o CV. Apesar das facções criminosas serem originárias de São Paulo e Rio de Janeiro, onde mantêm seus grandes redutos e de onde comandam o crime de dentro das cadeias, não foram registados episódios de violência nos presídios do Sudeste. A região Norte é fundamental para o tráfico internacional: as principais rotas de droga passam pelas suas fronteiras, uma vez que estes Estados fazem fronteira com grandes países produtores de cocaína, como Peru, Bolívia e Colômbia.” (5)
O CV foi formado em 1979 (com a designação 'Falange Vermelha'), numa prisão do Rio de Janeiro. Já o PCC (inicialmente, 'Partido do Crime'), surgido em 1993, tornou-se progressivamente mais forte. As duas organizações possuem relacionamentos com outras, suas aliadas. No caso do CV, sobressai a aliada FDN ('Família do Norte'), enquanto o PCC (que havia mantido uma relação pacífica com o CV até inícios da década de 2010) mantém um pacto com o GDE ('Guardiões do Estado', organização criminosa local, no Ceará que, em 2017, realizou vários ataques semelhantes aos deste início de 2019).
O PCC buscou primeiro realizar uma expansão geográfica para o Rio de Janeiro, dominando os circuitos de tráfico de drogas e armas na Favela da Rocinha (a mais importante em termos económicos). A guerra de facções recrudesce, levando a uma sucessão de massacres em prisões em 2016 e 2017 (nos estados de Roraima, depois no de Amazonas, com 56 mortos, novamente em Roraima, com 33 mortos, seguindo o de Rio Grande do Norte, com 26 mortes, e em Goiânia, com 9 mortos. As prisões do Estado de Amazonas são geridas pela empresa privada de gestão prisional 'Umanizzare', liderada por um empresário cearense).
Todavia, o conflito mais mortífero ocorreu em 1992, numa prisão de São Paulo. O 'massacre de Carandirú' saldou-se por 111 detidos mortos, após uma rebelião a que se sucedeu a invasão do espaço prisional pela PM (Polícia Militar). Este evento esteve na origem de reacções tanto a nível da sociedade civil como do Estado brasileiro, tendo 23 dos militares envolvidos na acção sido condenados a 156 anos cada pela sua participação no massacre.
O coronel que liderou a intervenção em 1992, tendo sido inicialmente condenado e depois absolvido, acabou sendo assassinado em frente à sua casa. O massacre teve também repercussões no interior das prisões, correlacionando-se com o surgimento do PCC.
Aquela organização criminosa irá alimentar-se ideologicamente da injustiça objectiva que representa o tratamento inumano dado aos presos e assumirá um discurso que se irá confundir com os discursos dos movimentos progressistas (na sociedade civil), situação que, pela continuada impunidade dada aos militares envolvidos, se perpetua. Uma matéria publicada no portal 'Vermelho', do PCdoB (Partido Comunista do Brasil), sob o título 'Massacre do Carandirú: 25 anos de impunidade', sublinha a actualidade do problema:
“Entre 2013 e 2014 o Tribunal do Júri de São Paulo condenou 73 PMs e policiais civis pelas mortes. Embora tenham sido sentenciados a penas que variavam de 48 a 624 anos de prisão (e somam mais de 21.000 anos de tranca), os policiais nunca foram presos e aguardam o desfecho do caso em liberdade. Até que em setembro de 2016 três desembargadores do Tribunal de Justiça anularam os julgamentos. Ivan Sartori, o relator do caso, afirmou que "não houve massacre. Houve obediência hierárquica. Houve legítima defesa. Houve estrito cumprimento do deve legal”. (...) A decisão dos magistrados foi criticada por associações de juízes, promotores e por Cécile Pouilly, porta-voz do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos.” (6)
A força das armas como estratégia de penetração política
Os ataques no Ceará que, à data em que é redigido este texto, registam o seu 6º dia consecutivo, são sintoma de problemas estruturais profundos do sistema prisional brasileiro – país que detém a 3ª maior população prisional do mundo. São também parte de uma estratégia, cujos fios se observam tanto a nível do conflito entre facções criminosas rivais como no conflito que as definem na sua relação com a sociedade civil e o Estado. Como revelam matérias publicadas:
“O líder do PCC responsável pela expansão no Rio deixa claro que os paulistas não pretendem participar da rivalidade que domina os morros cariocas e que o inimigo é muito maior: o Estado. ‘Essa guerra que o CV tem com o Terceiro Comando e com o ADA, não é nossa [...] Quem tem guerra é o CV. Até mesmo, se o crime do Rio de Janeiro fosse unido, se eles não ficassem um se digladiando contra o outro, querendo matar um ao outro, vocês podem ter certeza que o sistema carcerário do Rio de Janeiro não ia estar esse massacre que vocês vêm passando, não. Mas eles preferem ficar se matando, no lugar de se unirem e lutar contra o Governo. Que nossa guerra é contra o Governo, entendeu?!’” (7)
É neste cenário e contexto que ganham relevância as manifestações de autoritarismo propaladas por Bolsonaro na sua campanha eleitoral e agora reverberada até ao nível do governo estadual do Ceará.
A questão ultrapassa, todavia, os limites estritos do sistema prisional, adquirindo uma dimensão social de plena relevância. O Brasil possui um número de detidos próximo dos 725 mil presos, ficando apenas atrás da China (1,6 milhões) e dos EUA (2,1 milhões), segundo relatório da Pastoral Carcerária – estrutura da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros) – que denuncia:
“Mais de 725 mil pessoas presas, crescimento de 460% em 22 anos, 3ª maior população carcerária do mundo, a maioria é jovem e negra, a população feminina, ainda bastante menor, cresce em ritmo maior do que a masculina, as vagas para actividades educacionais e produtivas são ínfimas, a superlotação é crónica, as denúncias de maus-tratos e tortura recorrentes, as condições de indignidade psíquica e material são determinantes à redução da expectativa de vida e sentenciam milhares à morte anualmente. (...) [Tendo como premissa que as] estatísticas carcerárias são produtos de decisões políticas e de que os projetos de reforma, em si, são parte do mecanismo de reprodução (e muitas vezes de expansão) do dispositivo carcerário. (...) [A CNBB, por meio da sua Pastoral Carcerária, visa] colocar em movimento uma real oposição ao que se convencionou classificar de “encarceramento em massa”. (8)
Nos antípodas deste posicionamento, a mensagem autoritarismo e violência propalada pela direita brasileira conduz ao acirrar da conflitualidade social em que a criminalidade organizada faz seu esteio e território privilegiado, ignorando que
"nas grandes cidades brasileiras está em adiantado processo de consolidação, no âmbito das rotinas cotidianas, uma ordem social cujo princípio de organização é o recurso universal à força. (...) A desconcentração da violência física (o uso generalizado de violência pelos criminosos indica que o Estado perde seu monopólio de facto, embora mantendo-o formalmente) por processos estritamente internos à própria ordem estatal, considerada como padrão universal de sociabilidade.” (9)
Ao aderir a uma ideologia da força, seja ela concretizada através da violência jurídica ou policial, e ao fazer desta lógica de confronto social o núcleo do discurso político, o Estado (e, no caso brasileiro, no discurso de direita dos actuais detentores do poder), acaba por legitimar aquela disputa pelo monopólio da violência por parte das organizações criminosas. Por outro lado, ao acompanhar aquele discurso, mesmo um governo de matiz progressista – como é o do Estado Ceará – acaba por se tornar refém da ideologia autoritária representada por Bolsonaro.
Entende-se, assim, o sentido de oportunidade que acompanha o eclodir desta crise de violência, num momento de transição de poder (em virtude das eleições de Novembro último), num Estado (o Ceará) situado na zona de disputa de territórios das facções criminais dominantes e (como 'freudianamente' deixou escapar Bolsonaro) num Estado legitimamente governado por quem se opõe ao rumo de direita em que o Brasil mergulha.
Parece plausível considerar a possibilidade de este conjunto de oportunidades se poderem correlacionar com o facto de a direita (brasileira e não só, reunida na Cúpula Conservadora das Américas) aventar o Ceará como destino da sua 2ª reunião, apontando o Nordeste brasileiro como alvo da sua próxima campanha ideológica.
Referências
(1) https://mobile.opovo.com.br/noticias/politica/2019/01/nao-vamos-abaixar-a-cabeca-nem-negociar-com-criminosos.html
(2) Idem.
(3) https://www.poder360.com.br/governo/mourao-responsabiliza-camilo-santana-por-crise-na-seguranca-do-ceara/
(4) https://mobile.opovo.com.br/jornal/cotidiano/2017/04/colapso-comecou-em-presidios-e-mudou-rotina-da-cidade.html
(5) https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/21/politica/1477070073_785760.html?rel=mas
(6) http://www.vermelho.org.br/noticia/302600-1
(7) https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/22/politica/1482434757_533449.html?rel=mas
(8) http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2018/09/relatorio_luta_antiprisional.pdf
(9) Ver: Luiz Antonio Machado da Silva, SOCIABILIDADE VIOLENTA: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Em "Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, jan./jun. 2004".