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RÚSSIA, ÍNDIA E CHINA: FORMATO RIC GANHA FORÇA

Narendra Modi, Vladimir Putin e Xi Jinping no encontro em Buenos Aires à margem do G20

2018-12-14

Louise Nyman, Nova Deli; com Melkulangara Bhadrakumar e Castro Gomez, Moscovo

A cimeira trilateral entre os presidentes da China e da Rússia e o primeiro-ministro da Índia, realizada à margem da reunião do Grupo dos Vinte (G20) em Buenos Aires, revelou-se um acontecimento marcante para a segurança asiática e global. O chamado formato RIC deu um grande passo em frente com esse encontro, concordando Xi Jinping, Narendra Modi e Vladimir Putin em “manter estas reuniões trilaterais sempre que se realizem iniciativas multilaterais”, de acordo com uma nota do Ministério indiano dos Negócios Estrangeiros.

Na ocasião, os três dirigentes concordaram em fortalecer a coordenação, construir consensos e aumentar a cooperação entre os seus países para promover juntos a paz, a estabilidade e o desenvolvimento do mundo.
O que tem um interesse relevante é que a iniciativa partiu do presidente russo e tanto Narendra Modi como Xi Jinping aceitaram a ideia de maneira expressiva; os três dirigentes tinham a consciência plena da repercussão do encontro proporcionada pelo pano de fundo em que decorreu.
Durante os trabalhos foram frequentemente destacados objectivos comuns às três nações, como o de enfrentar os desafios à segurança e o desenvolvimento, promover o multilateralismo, a democratização da ordem internacional, a paz e a estabilidade mundiais.
Narendra Modi encarou a reunião como “uma oportunidade de discutir livremente e abertamente alguns assuntos-chave que provocam preocupações ao nível global”. O primeiro-ministro da Índia considerou que “o mundo está a passar por um período de sérias mudanças, instabilidade e crescentes tensões geopolíticas”, sendo que “as relações multilaterais e a ordem mundial baseada em regras comuns estão a ser cada vez mais rejeitadas”. Modi deu como exemplos negativos o facto “de sanções internacionais estarem a ser impostas fora de mandatos da ONU” e a circunstância de “as políticas protecionistas estarem a ganhar força”.

Não há justiça climática

“A Agenda de Desenvolvimento de Doha, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, fracassou”, disse Narendra Modi. “Desde o Acordo de Paris não registámos o nível desejado de comprometimento financeiro dos países desenvolvidos em favor dos países em vias de desenvolvimento; portanto, quando se trata de clima a justiça está em risco e continuamos ainda muito longe de alcançar os objectivos de desenvolvimento sustentável”, acrescentou o primeiro-ministro da Índia.
As críticas veladas de Modi às políticas dos Estados Unidos foram particularmente notadas. Os três representantes salientaram que a Rússia, a Índia e a China têm um importante papel de liderança e reconheceram a necessidade de fortalecer o RIC como mecanismo de cooperação trilateral.

Um formato de transformação mundial

O presidente chinês, Xi Jinping disse que nos últimos 10 anos os três países conduziram activamente o diálogo e a cooperação trilaterais com espírito de abertura, unidade, entendimento mútuo e confiança, e fizeram importantes progressos.
O desenvolvimento comum e a cooperação estreita entre a China, a Rússia e a Índia, nas actuais circunstâncias, tornaram-se uma força cada dia mais importante para a estabilidade e a certeza na transformação do panorama mundial, disse Xi Jinping.
A China, a Rússia e a Índia, sugeriu o presidente chinês, devem avançar na liberalização e facilitação do comércio e dos investimentos, promover uma economia mundial aberta, tomar uma posição clara contra o proteccionismo e o unilateralismo, e defender juntos o sistema de comércio multilateral, assim como os interesses comuns das economias emergentes e dos países em desenvolvimento.
Xi Jinping propôs também que os três países fortaleçam a coordenação e a cooperação em importantes mecanismos multilaterais, como o Grupo dos 20, o Brics e a Organização de Cooperação de Xangai.

Ásia - Pacífico

A cimeira trilateral de Buenos Aires pode ser encarada como a evolução lógica das mudanças geopolíticas ocorridas recentemente na região da Ásia-Pacífico. Apesar dos insistentes esforços norte-americanos, os países da região têm evitado identificar-se com a dinâmica agressiva do governo Trump contra a China, não querendo envolver-se em políticas erráticas e imprevisíveis.
Por outro lado, a supremacia militar dos Estados Unidos sobre a China tem vindo a diminuir progressivamente; Pequim está a aumentar a sua influência no Sudeste Asiático e no Pacífico Ocidental, regiões tradicionalmente na “esfera de influência” exclusiva norte-americana.

O papel da Rússia

O primeiro-ministro indiano acolheu com particular entusiasmo o facto de a iniciativa da cimeira ter partido do presidente russo, tomando-a como uma confirmação da existência de um novo clima nas relações entre os dois países, após dez anos de inércia.
O facto de a Índia ter encomendado sistemas defensivos S-400 à Rússia em Outubro passado, apesar das pressões e ameaças norte-americanas, evidencia a vontade do governo indiano em encontrar políticas externas independentes. De facto, a cimeira trilateral ocorreu no contexto do cancelamento à última hora da reunião de Donald Trump com Vladimir Putin.
Por outro lado, Modi está empenhado em desenvolver os consensos que estabeleceu com o presidente chinês na cimeira informal realizada em Abril passado em Wuhan. O “espírito de Wuhan” produziu resultados positivos, uma vez que as tensões fronteiriças entre os dois países diminuíram e o objectivo agora é o de criar confiança que torne possível resolver as divergências existentes nessa matéria. O embaixador chinês na Índia declarou recentemente que as relações bilaterais atravessam um dos melhores períodos na história.
Vladimir Putin aproveitou esta cimeira para ligar as pontas das relações com os dois parceiros, tendo em atenção o vector oriental na política externa de Moscovo – que dá prioridade às relações com os países asiáticos.
A Rússia encara o mecanismo de relações proporcionado pelo RIC como um elemento indispensável da sua diplomacia multilateral e que poderá evoluir para um triângulo estratégico.
No sistema RIC subsistem ainda assimetrias internas, uma vez que a Rússia tem relações militares e políticas estreitas com a China e a Índia, o que não acontece, ao mesmo nível, entre estes dois países. A Índia e a China têm interesse em fortes alianças económicas com o Ocidente e não procuram uma “aliança anti-Ocidental”. No entanto, o formato RIC é suficientemente flexível para proporcionar espaço de discussão de uma gama ampla de problemas mundiais.
Na fase pós-Wuhan, provavelmente a Índia e a China encaram o RIC como uma via para normalizar e estreitar as relações entre os dois países. A Rússia pode desempenhar um papel único no fomento da cooperação estratégica, contribuindo para equilibrar o triângulo. Admite-se que Pequim e Moscovo estejam interessados na autonomia estratégica da Índia, procurada por Nova Deli.
Com a passagem do tempo, o formato RIC parece destinado a constituir-se como um importante modelo de segurança regional e internacional. Existe um alto nível de relações pessoais entre os três dirigentes e, além disso, na cimeira de Buenos Aires tornou-se particularmente notada a convergência estratégica das posições russa, indiana e chinesa.



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