O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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BOLÍVIA, ONDE O FASCISMO NÃO PASSOU

2020-10-20

O fascismo latino-americano e os seus tutores norte-americanos acabam de sofrer uma contundente derrota na Bolívia, onde o povo teve a força suficiente para vergar o golpe de Estado e construir uma vantagem nas urnas suficiente para frustrar todas as tentativas e manobras internas e externas para minar as eleições e tentar institucionalizar a ditadura. Os pouco mais de dez pontos de vantagem alcançados por Evo Morales na vitória que lhe foi retirada em 2019 transformaram-se agora em 20 pontos e no apoio de mais de metade dos eleitores a Luís Arce, representante do Movimento para o Socialismo (MAS) e ex-ministro da economia. Uma vitória que não deixa margem para dúvidas e torna ainda mais vergonhosos os apoios activos ou silenciosos que foram dados ao golpe fascista por instâncias internacionais, entre elas a União Europeia e os seus governos.

Pablo Jofre Leal*, Hispán.TV/adaptação de O Lado Oculto

Apesar das intervenções sem vergonha da Organização dos Estados Americanos (OEA), do Departamento de Estado dos Estados Unidos, de uma extrema-direita submetida a ordens de forças externas, o Movimento para o Socialismo (MAS) da Bolívia, com um binómio formado por Luis Arce Cataroa como presidente e David Choquehuanca como vice-presidente, alcançou uma vitória esmagadora e indiscutível nas eleições para as quais foram convocados 7,3 milhões de bolivianos.

A votação de 53% alcançada pelos candidatos do MAS, uma vantagem de 20 pontos percentuais sobre Carlos Mesa Gisbert (31,2%) e de 40 pontos sobre Luis Fernando Camacho (14,1%), representa números extraordinários, que contribuem com ar fresco para a luta popular. Estes resultados confirmam, como muito se argumentou e explicou com provas inquestionáveis, que houve uma operação destinada a impedir o triunfo do MAS, montada pela direita nas eleições de 2019, apoiada pelos governos de direita latino-americano e perante o silêncio cúmplice das organizações internacionais, incluindo a União Europeia e os governos dos Estados que a constituem. Nessas eleições, o destituído presidente Evo Morales alcançou 46%, mais de dez pontos de vantagem sobre Mesa. Arce conseguiu uma prestação ainda bem acima de Morales. 

Em 2019 houve um golpe de Estado orquestrado por Washington e seus aliados incondicionais; o triunfo deste 18 de Outubro permite ao povo boliviano voltar ao Palácio Quemado (presidencial) e também controlar as duas câmaras do Parlamento. Uma vitória que trará consigo um tremendo impacto regional e internacional, que dá novos ares ao progressismo na América Latina e que recupera a democracia para a Bolívia e o seu povo, que sabiamente voltou a confiar em quem a dignificou, que diz não ao racismo, ao roubo, à submissão a Washington e não à corrupção.

A Bolívia como exemplo de dignidade

Quanto mais a direita golpista adiava a convocação das eleições, o que se revelou uma estratégia política errada do governo de facto encabeçado pela fascista Jeanine Añez, mais enfraquecia as suas opções. Sobretudo devido à prática de uma política supremacista, racista, fascista, de insulto aos povos indígenas, seus símbolos e cultura. Nesse contexto, a sociedade boliviana, a mais humilde, teve ainda mais tempo para comparar os resultados do golpe com o que fora um processo revolucionário que durante 14 anos mudou a cara e todo o organismo desta Bolívia. Uma revolução que nacionalizou os recursos naturais, que levou os indígenas a ocupar o Palácio Quemado e a dizer ao mundo que a Bolívia existia, que tinha uma dignidade ansiosa por emergir após centenas de anos de subjugação e abusos. A cada dia que passava, o povo estava cada vez mais apto apto a avaliar o peso dos golpistas e do MAS na balança do futuro.

O chanceler do governo da ditadura, o empresário Arturo Murillo, passou longas horas na noite do dia 18 pressionando os media, o Tribunal Superior Eleitoral e os responsáveis pelas urnas para que não divulgassem o que já era sabido às 20 horas e acabou por levar quatro horas a ser conhecido: a vitória do MAS foi inquestionável, triunfando por uma maioria esmagadora. Uma manobra que começou a cozinhar-se com a visita de Murillo à sede da OEA no final de Setembro e ao Departamento de Estado de Mike Pompeo, que deu as ordens e o apoio necessário para impedir o MAS de voltar a presidir ao governo. Um plano que fracassou em absoluto, uma derrota para o império e os governos de direita latino-americanos coordenados por Almagro, o secretário-geral da OEA.

O resultado da contagem foi claro e planeadamente postergado. O próprio ex-presidente Evo Morales, em conferência de imprensa realizada na Argentina, afirmou: “As empresas de sondagens recusam-se a publicar os resultados à boca das urnas. Suspeita-se que estão a esconder algo ”. Por sua vez, Sebastián Michel, porta-voz do MAS, sublinhou que existia uma estratégia governamental de facto para garantir que a informação não fosse fornecida e, assim, gerar um clima de violência com o objetivo final de anular as eleições. A enorme diferença de votações entre Arce e Mesa impossibilitou a realização do que o Departamento de Estado dos Estados Unidos, juntamente com a OEA, tinha planeado em conjunto com o chanceler do governo de extrema-direita, Arturo Murillo.

Como recuperar dos efeitos do fascismo?

O mais difícil agora vai ser recuperar uma vida perturbada por uma ditadura que violou os direitos humanos em todas as áreas em que podiam ser violados: saúde, integridade física, acesso ao trabalho, educação, direitos cívicos e políticos. Agora procura-se a justiça para os mortos, para os humilhados, para sarar as feridas causadas por um governo que violou os direitos de milhões de bolivianos.

Numa interessante análise de Mario Rodríguez, jornalista boliviano e educador popular especializado em interculturalidade, o resultado destas eleições de 18 de Outubro “foi uma vitória em território inimigo, num campo conservador onde se encontravam os mais fascistas que podem existir na política. Um campo gerido pelos sectores mais retrógrados que um país pode ter. Um triunfo sobre o dinheiro, o poder dos media corporativos, os poderes hegemónicos”. 

Este quadro permite mostrar que, em primeiro lugar, é evidente que se trata de uma vitória do povo boliviano, que supera a configuração partidária e mergulha a sociedade na busca do seu futuro.

Em segundo lugar, para a análise interna do que tem sido um ponto forte no “masismo” avulta o carácter plurinacional boliviano, com um amplo leque de possibilidades que devem ser fortalecidas. Um triunfo que se dá contra tudo e todos, que nos permite pensar em transformações profundas. 

Um terceiro elemento é a necessidade de uma profunda reflexão e crítica sobre o que foram os governos do MAS, para reconstruir elementos que foram erodidos e que precisam de ser reconstituídos na capacidade de participação popular. 

E em quarto, este triunfo é um tremendo impulso para as lutas populares na América Latina, da grande pátria.

Claramente, estes são louros obtidos pelo MAS, uma conquista enorme que representa a justeza do período de governo transformador na Bolívia, que se enraizou profundamente e que na hora da comparação ganhou por centenas de milhares de votos a uma direita recalcitrante. Uma derrota do fascismo que irá ferir a direita, o Grupo de Lima, Luis Almagro, que terá que responder por esta derrota perante os seus senhores norte-americanos que gastaram centenas de milhões de dólares para tentar consolidar um governo de facto e dar possibilidades à direita boliviana de tentar retomar os seus nefastos governos. Falharam desastradamente nesta missão, mostrando na realidade o que são: oportunistas, racistas, arrogantes e carentes de visão, incapazes de penetrar plenamente no pensamento e nos anseios de um povo que aprendeu a defender a sua dignidade.

Para o vencedor dessas eleições de 18 de Outubro, Luis Arce Catacora, ex-ministro da Economia de Morales, o desafio é claro: “Recuperámos a democracia e a esperança, assim como estamos a recuperar a certeza para beneficiar pequenas, médias, grandes empresas, sector público e famílias bolivianas. Governarei para todos os bolivianos e trabalharei para redireccionar, acima de tudo, a estabilidade económica do país”. Luis Arce agradeceu ao povo boliviano, aos militantes do MAS, à comunidade internacional e aos observadores que vieram acompanhar as eleições.

O MAS obteve uma vitória inapelável, apesar da COVID 19, das ameaças do governo de facto e das tentativas para impedir uma votação. O MAS arrasou nas grandes cidades e no mundo rural. Não houve lugar na Bolívia onde o mundo “masista” não tenha conseguido fazer comer o pó da derrota a Carlos Mesa, Luis Fernando Camacho “El Macho” e sua família. O MAS triunfou apesar do trabalho de desestabilização da OEA e do desacreditado Luis Almagro, secretário-geral desta organização definida como Ministério das Colónias dos Estados Unidos. O MAS triunfou apesar de poderosas forças contrárias, porque a marcha justa não tem travão possível.

O MAS triunfou porque os sábios bolivianos compreenderam que, apesar de todas as críticas que se podiam fazer à sua acção, realizou um trabalho que teve como centro os mais abandonados da Bolívia. Um trabalho pela defesa dos seus direitos e pela construção dos ainda negados. Voltou a surgir um horizonte de esperança para aqueles que durante centenas de anos foram humilhados, denegridos e que com o MAS começaram a caminhar com passos de gigante. Não se pode parar um povo quando defende o que é seu.

*Jornalista e escritor chileno. Analista internacional, Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Complutense de Madrid.


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