O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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EPISÓDIOS NÃO RECOMENDÁVEIS DE UM MEDICAMENTO “RECOMENDADO”

2020-07-24

Nestes tempos de pandemia o mundo fervilha de exemplos de como pessoas, entidades, empresas e instituições sem escrúpulos, movendo-se na onda do capitalismo neoliberal, por definição sem limites, tiram proveito da situação. O sector da grande indústria farmacêutica, o Big-Pharma, é um dos mais dinâmicos nessa matéria desumana, impondo leis do máximo lucro contra populações com um máximo de necessidades e um mínimo de meios. Os casos são ainda mais flagrantes nos Estados Unidos, ou não fossem a Meca do capitalismo desenfreado. A história resumida que se segue centra-se nos fabricantes de um medicamento de que muito se fala contra a COVID-19, talvez sem razão para tanto alarido.

Lee Camp, MintPress/O Lado Oculto

O sistema de saúde dos Estados Unidos, baseado no lucro, afecta a população de muito mais maneiras para lá da gigantesca conta com que cada um é presenteado no final de uma visita ao serviço de urgências. Actualmente, um tão idiota como desumano sistema de saúde como o norte-americano está a comportar-se como um obstáculo ao fabrico e aquisição de medicamentos adequados para o combate à COVID-19. 

Um dos medicamentos presentemente anunciados como nosso salvador é o Remdesivir. Apesar de ter ressonâncias de um Hobbit na Terra Média, alguns relatos divulgados pela comunicação social corporativa fazem-nos crer que tal medicamento nos vai conduzir de regresso a um mundo de felicidade com restaurantes à cunha, parques aquáticos, maquilhagem plena e sem barreiras, saídas com parceiros desconhecidos. Um mundo que não seja, finalmente, aquele em que quando alguém espirra nos faz mergulhar para debaixo da mesa amarrando o guardanapo ao rosto como máscara improvisada.

Porém, existe um problema; há sempre um problema. A grande empresa farmacêutica que produz o Remdesivir, a norte-americana Gilead, já deixou bem claro que tem planos para lucrar muito com esta pandemia. Como têm afirmado jornais dos Estados Unidos, a farmacêutica Gilead diz que nos faz um favor ao estabelecer os preços para combate à COVID-19 em mais de dois mil dólares por pessoa para agências governamentais e mais de três mil dólares para as seguradoras privadas. 

Como é que o presidente executivo (CEO) da Gilead, Daniel O’Day, justifica este preço criminoso? Alega mesmo que a empresa está a comercializar o medicamento abaixo do preço. Disse: “Em circunstâncias normais definiríamos o preço deste medicamento de acordo com o valor que ele proporciona (…) Segundo a tabela que fixámos para este caso os preços hospitalares registarão uma economia de 12 mil dólares por paciente” em relação” aos valores que seriam definidos pelo critério convencional.

O valor que o medicamento proporciona? Então se um cardiologista salvar a vida de alguém com uma cirurgia delicadíssima será que o paciente ficará em dívida ao médico até ao fim da vida? Milhões de dólares. Ou talvez passe a trabalhar como mordomo ou enfermeira às ordens do cirurgião.

Dizer que um medicamento deve custar um preço estabelecido arbitrariamente em função do valor que proporciona é um dos argumentos mais estúpidos já brandidos. Assim sendo, quanto é que alguém que tome Viagra fica a dever aos fabricantes do medicamento?

Lucros à custa dos contribuintes

Mas há ainda um outro problema com as malfeitorias da Gilead. Não foram eles que criaram o Remdesivir, mas sim os contribuintes.

O website Public Citizen revelou que a Gilead arrecadou mais de 70 milhões de dólares dos contribuintes. Além disso, foram cientistas federais quem descobriu que o Remdesivir também tem efeitos contra o novo coronavírus. E “os Institutos Nacionais de Saúde realizaram o estudo que conduziu à autorização do uso de emergência do Remdesivir, sendo que existe financiamento público para apoiar os ensaios clínicos que estão actualmente a decorrer em todo o mundo".

Estamos todos a pagar a investigação e a aplicação do Remdesivir à COVID-19. Não existe, portanto, qualquer razão para enchermos os bolsos do CEO insolentemente rico da Gilead e dos membros do seu Conselho de Administração. Talvez a maioria dos países percebam isso. Talvez a maioria dos países não se comportem desta maneira. Talvez a maioria dos países tenham um pouco de respeito pela vida dos seus cidadãos. Talvez… Se existem essas maiorias, os Estados Unidos não fazem parte delas.

Diz-nos o jornal LA Times: “Quase todos os países desenvolvidos limitam os preços que as empresas farmacêuticas podem cobrar pelos medicamentos prescritos (…) Os Estados Unidos não funcionam assim, permitem que as empresas farmacêuticas cobrem o que quiserem”.

Talvez os medicamentos prescritos que custam o mesmo que o desembarque de um homem em Marte sejam a razão pela qual pela qual 42% dos novos pacientes com cancro têm as suas economias de vida destruídas em dois anos. O valor médio extorquido a um paciente é de quase 100 mil dólares; e a totalidade dos custos médicos para pacientes oncológicos por ano nos Estados Unidos ascendem a 80 mil milhões de dólares. Então para quê mudar um sistema que acumula montes de dinheiro nos cofres de quem dirige o show?

Eficácia duvidosa

Aparentemente, talvez a maioria dos outros governos nacionais não queiram arruinar as vidas de todos os que sobrevivem a cancros. A razão por que o fazem apenas pode adivinhar-se.

Esta história, porém, ainda é mais destrambelhada. O Remdesivir não só é muito caro como nem existem certezas de que seja muito eficaz contra a COVID-19. Alguns estudos revelam que os seus efeitos são quase nulos. Enquanto isso, de acordo com o website The Intercept, “outro tratamento contra a pandemia mostrou discretamente que pode ser mais eficaz. É um regime de três medicamentos que proporcionam uma redução maior no tempo de cura de um paciente que no caso da utilização de Remdesivir. Os pacientes que foram tratados com a combinação de Interferon Beta 1B, Lopinavir-Ritonavir e Ribavirina registaram melhoras em sete dias, contra doze dias para aqueles que não seguiram esse regime”.

No entanto, não consta que exista qualquer corrida louca para acumular esses remédios. Porquê? Provavelmente porque os fabricantes desses medicamentos não fazem campanhas de marketing que fariam corar a Coca-Cola. De facto, parece não haver qualquer campanha de marketing para os medicamentos mais eficazes. Para descobrir as razões pelas quais isto acontece basta seguir a pista do dinheiro.

Os três medicamentos que fazem parte da citada combinação são genéricos, não estão sob patente, “o que significa que nenhuma empresa pode lucrar significativamente com a sua utilização”.

O capitalismo em estado avançado de decomposição precisa de ser sempre tão previsível?

Apenas os medicamentos insultuosamente rentáveis valem a pena estes exageros. Só os fabricantes de dinheiro à custa da saúde dos outros dispõem de 80 mil comerciais aconselhando todos os consumidores a exigir irracionalmente esses medicamentos. Os medicamentos baratos que simplesmente salvam vidas são lixo. Qual será o sentido de salvar uma vida se um fabricante de medicamentos não fizer um avultado pacote de dinheiro com isso? Eu sempre disse: “Uma vida salva sem extorquir uma porcaria de dinheiro é uma vida perdida”.

Não sei se a derradeira parte deste artigo precisa de ser escrita mas, ainda assim, vou fazê-lo. Quando uma sociedade funciona segundo um sistema baseado no lucro, dirigido por sociopatas, baseado na manipulação de impulsos de cérebro de lagarto então tudo acabará numa corrida para o abismo. Assim, com o capitalismo sem limites iremos ao encontro das piores drogas aos preços mais elevados e lucros descabidos proporcionados por aqueles que mais precisam delas.

… A menos que falemos de drogas ilegais recreativas. Diz-se que estão mais baratas que nunca.





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