O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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A “COMUNA DE SEATTLE” OU UMA REVOLUÇÃO COLORIDA NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO

2020-06-19

Combater o racismo e a brutalidade policial dentro dos horizontes estreitos das questões rácicas e da desmilitarização da polícia carece das perspectivas estratégicas que permitiriam transformar a luta num verdadeiro abalo para a sociedade capitalista. Já no rescaldo dos acontecimentos que se sucederam ao assassínio de George Floyd, emerge a “Comuna de Seattle”, prova provada de que o Partido Democrata, através dos seus braços como o movimento Black Lives Matter”, e das suas artimanhas, como a das “revoluções coloridas”, transformou o descontentamento popular genuíno num ajuste de contas entre elites imperiais em vésperas de eleições.

Pepe Escobar, Strategic Culture/O Lado Oculto

O casamento do pós-Lockdown com os protestos contra a morte de George Floyd gerou um monstro que ainda está imune a qualquer tipo de debate civilizado nos Estados Unidos: a Comuna de Seattle.

O que vem a ser então a Zona Autónoma de Capital Hill + República Popular? 

Serão os comunalistas meros idiotas úteis? Tratar-se-á de um aperfeiçoamento da experiência Occupy Wall Street? Será, em termos logísticos, capaz de sobreviver e de ser replicado na cidade de Nova York, em Los Angeles e no Distrito de Colúmbia?

Um presidente Trump indignado descreveu a Comuna como um complot da autoria de "terroristas domésticos", numa cidade "administrada por democratas radicais de esquerda". E reclamou "LEI E ORDEM" (em caixa alta, segundo sua tweetologia particular).  

Réplicas da Síria são claramente discerníveis em Seattle. Neste cenário, a Comuna é uma remistura de Idlib lutando contra "postos avançados da contra-insurgência do regime" (em terminologia comunalista). 

Para a maioria das facções da direita norte-americana, os Antifa equivalem ao ISIS. George Floyd é visto não apenas como um "mártir comunista antifa", como me disse um agente da área de inteligência, mas também como um reles "criminoso e traficante de drogas". 

Então, quando é que as "forças do regime" irão atacar - neste caso sem a cobertura da força aérea russa? Afinal, como proclamou o secretário da Defesa Esper, cabe ao Pentágono "dominar o campo de batalha".

Mas há um problema. A Zona Autónoma de Capital Hill (CHAZ, em inglês) é apoiada pela cidade de Seattle – governada por um democrata, que, por sua vez, tem o apoio do governador do Estado de Washington, também um democrata.

Não há a mínima possibilidade de o Estado de Washington vir a usar a Guarda Nacional para esmagar a CHAZ. E Trump não pode assumir o controlo da Guarda Nacional do Estado de Washington sem a aprovação do governador, apesar de ter tweetado "Retome a sua cidade AGORA. Se não a retomar serei eu a fazê-lo. Isto não é uma brincadeira". 

É instrutivo observar que a "contra-insurgência" pode ser usada, por exemplo: no Afeganistão e nas áreas tribais; para ocupar o Iraque; para proteger a pilhagem de petróleo e gás no Leste da Síria. Mas não em casa. Mesmo que 58% dos norte-americanos, de facto, apoiem a utilização desse recurso: para muitos deles a Comuna talvez seja tão má, ou mesmo pior, que os saques.

E então há aqueles que se opõem firmemente ao uso da “contra-insurgência” nesta situação. Entre eles: o "Açougueiro de Fallujah", o general James “Mad Dog” Mattis; os praticantes das revoluções coloridas do National Endowment for Democracy, NED, (o “Fundo Nacional para a Democracia”), associado à CIA; a Nike; o JP Morgan; todo o establishment do Partido Democrata; e, virtualmente, todo o establishment do Exército dos Estados Unidos.

Bem-vindos ao movimento Ocupem Apenas os Outros.

Mas a pergunta permanece: por quanto tempo o "Idlib" de Seattle conseguirá desafiar o "regime"? Isto é quanto basta para dar muitas noites de insónia ao destacado praticante de bullying William Barr, o procurador-geral.

O Verdadeiro Poder Negro 

Trump e Barr já ameaçaram criminalizar os Antifa como uma "organização terrorista" – quando, simultaneamente, o movimento Black Lives Matter (BLM) apontava uma adaga amarela no asfalto da Rua 16 do Distrito de Colúmbia em direcção à Casa Branca.

Isto conduz-nos à legitimidade ampla e inquestionada de que desfruta o Black Lives Matter. Como é isso possível? Eis um ponto adequado para começar.

O Black Lives Matter, fundado em 2013 por um trio de mulheres negras, lésbicas e de classe média, todas elas muito articuladas contra o "heteropatriarcado", é um produto daquilo que Peter Dauvergne, da University of British Columbia, define como a "corporativização do activismo".

Ao longo dos anos, o Black Lives Matter evoluiu como uma marca comercial, como a Nike (uma apoiante incondicional). Os protestos generalizados contra o assassínio de George Floyd elevaram o movimento ao status de uma nova religião. No entanto, é possível afirmar que o Black Lives Matter tem zero de conteúdo verdadeiramente revolucionário. Não se trata aqui do "Say It Loud, I’m Black and I’m Proud" (Diz bem alto, tenho orgulho em ser negro), de James Brown. E não chega sequer perto do Black Power (Poder Negro) e do "Power to the People" (O Povo ao Poder) dos Black Panthers (Panteras Negras).

O padrão-ouro dos direitos civis, o Dr. Martin Luther King, em 1968, resumiu de forma concisa o cerne estrutural da questão:

"A revolução negra é muito mais do que a luta pelos direitos dos negros. Ela força a América a encarar as suas falhas interrelacionadas - racismo, pobreza, militarismo e materialismo. Ela expõe males profundamente enraizados na totalidade da estrutura da nossa sociedade. Ela revela falhas sistémicas, mais que superficiais, e sugere que uma reconstrução radical da própria sociedade é a verdadeira questão que temos pela frente". 

Os Black Panthers, intelectuais jovens e extremamente articulados, que misturavam Marx, Lenine, Mao, W.E.B. Du Bois, Malcolm X e Frantz "Os Condenados da Terra" Fanon, levaram o diagnóstico de Luther King a um nível muito mais avançado.  

Tal como resumiu Eldridge Cleaver, responsável de informação dos Black Panthers: "Acreditamos na necessidade de um movimento revolucionário unificado... fundamentado nos princípios revolucionários do socialismo científico". Esta frase sintetizava o pensamento de MLK, que propunha, fundamentalmente, a ultrapassagem das questões meramente raciais. 

Fred Hampton, vítima de um assassínio cometido pelo Estado em Dezembro de 1969, sublinhou sempre que a luta transcendia a raça: 

"Temos de encarar alguns factos. Que as massas são pobres, que as massas pertencem ao que se chama a classe baixa; e quando falo das massas, falo das massas brancas, falo das massas negras, das massas pardas e das massas amarelas também. Temos de encarar o facto de algumas pessoas dizerem que é melhor combater o fogo com o fogo e nós acharmos que a melhor maneira de apagar o fogo é com água. Nós dizemos que não se luta contra o racismo com racismo. Vamos combater o racismo com solidariedade. Dizemos que não se luta contra o capitalismo com a ausência de capitalismo negro; luta-se contra o capitalismo com o socialismo". 

Portanto, não se trata apenas de raça. Não se trata apenas de classe. Trata-se, isso sim, de Poder para o Povo que luta por justiça social, política e económica num sistema intrinsecamente desigual. Essa abordagem expande a exaustiva análise de Gerald Horne em The Dawning of the Apocalypse (A Alvorada do Apocalipse), que disseca em profundidade o século XVI, incluindo-se aí o "mito da criação" dos Estados Unidos. 

Horne mostra que uma invasão sanguinária das Américas provocou uma forte resistência por parte dos africanos e das populações indígenas suas aliadas, enfraquecendo a Espanha imperial e, por fim, habilitando Londres a despachar colonos para a Virgínia, em 1607.

Compare-se essa profundidade de análise com o slogan "Black Lives Matter", tão manso e humilde, quase implorando misericórdia. O que nos traz novamente à memória a acutilância de Malcolm X: "Tínhamos a melhor organização que os homens negros já tiveram - e os niggers (os “pretos”) deitaram tudo a perder!" 

Para desvendar a questão do Black Lives Matter temos mais uma vez de seguir a pista do dinheiro.

O movimento Black Lives Matter recebeu, em 2016, a gigantesca dotação de 100 milhões de dólares da Fundação Ford e de outros baluartes do capitalismo “filantrópico”, como o JPMorgan Chase e a Fundação Kellogg.

A Fundação Ford está muito ligada ao Deep State (Estado profundo) dos Estados Unidos. O seu Conselho de Direcção está a abarrotar de CEO’s empresariais e chefões de Wall Street. Resumindo: o Black Lives Matter, como movimento, está hoje totalmente higienizado, em grande medida integrado na máquina do Partido Democrata, e é adorado pelos media convencionais, não representando portanto qualquer ameaça aos 0,001% dos mais ricos.

As chefias do Black Lives Matter, é claro, argumentam que desta vez "é diferente". Elaine Brown, a extraordinária ex-presidente dos Black Panthers, não faz a coisa por menos: O Black Lives Matter tem uma "mentalidade de sanzala".

Tentem atear fogo na noite

Set the Night on Fire  (Ateiem Fogo na Noite) é um livro extraordinariamente absorvente, co-escrito por Jon Wiener e pelo inestimável Mike Davis de City of Quartz e Planet of Slums.

Descrevendo com riqueza exaustiva de pormenores a Los Angeles da década de sessenta, o livro mergulha-nos nos motins de Watts, em 1965; no movimento anti-guerra unindo-se aos Black Panthers para formar um singularíssimo Partido Paz e Liberdade californiano; na evolução da unidade dos movimentos de base formando o ethos do Black Power; no clube Che-Lumumba do Partido Comunista dos Estados Unidos – que se converteria na base política da lendária Angela Davis; e na ofensiva massiva do FBI e do Departamento de Polícia de Los Angeles para destruir os Black Panthers.

Tom Wolfe, de maneira destacada e maldosamente, caracterizou os habitantes de Los Angeles apoiantes dos Black Panthers como "radical chic". Elaine Brown, mais uma vez, traz a versão correcta: "Estávamos a morrer e todos eles, dos mais sólidos aos mais frívolos, ajudavam-nos a sobreviver sempre durante mais um dia". 

Uma das partes mais angustiantes do livro conta em pormenor como o FBI perseguiu os simpatizantes dos Panthers, inclusivamente a sublime actriz Jean Seberg, estrela de Santa Joana, de Otto Preminger’s (1957) e À Bout de Souffle (Acossado, em português), de Godard (1960).

Jean Seberg contribuía anonimamente para os Panthers sob o pseudónimo de "Aretha" (sim, como Franklin). O COINTELPRO do FBI não teve dó nem piedade na perseguição a Seberg, convocando a ajuda da CIA, dos serviços de inteligência militar e do Serviço Secreto. Foi qualificada como "actriz branca com perversões sexuais" que teria tido casos com radicais negros. A sua carreira em Hollywood foi destruída. Então entrou em depressão profunda, teve um parto de um nado-morto (o bebé não era negro), emigrou e o corpo - em decomposição - foi encontrado no seu carro, em Paris, em 1979.

Num contraste nítido, ouvem-se agora na Academia de Hollywood rumores que identificam um mar de convertidos à religião do Black Lives Matter como, principalmente, produtos do casamento da "consciencialização" (wokeness) e da interseccionalidade - o conjunto de traços interligados que, desde o nascimento, privilegia os homens brancos heterossexuais, que hoje tentam expiar a sua culpa.

A geração Z (nascida entre a segunda metade dos anos noventa e 2010), que os campus universitários norte-americanos despejam em massa no mercado de trabalho, é prisioneira desse fenómeno: na verdade, é escrava da política identitária politicamente correta. E, mais uma vez, com zero potencial revolucionário.

Compare-se isso, novamente, com os imensos sacrifícios políticos dos Black Panthers. E também com os de Angela Davis que, já então um ícone pop, se tornou a mais famosa prisioneira política da história norte-americana. Aretha Franklin, ao oferecer-se para pagar a fiança de Davis, pronunciou uma frase que ficou famosa: "Fui encarcerada por perturbar a paz, e sei que temos de perturbar a paz quando não temos paz".

Elaine Brown: "Eu sei o que era o BPP (o Partido Black Panthers). Sei das vidas que perdemos, da luta que travámos, dos esforços que fizemos, dos ataques que sofremos da polícia e do governo - sei tudo isso. Mas não sei o que é o Black Lives Matter".

Se o Black Lives Matter é intrinsecamente racista, ou mesmo inerentemente violento, é uma questão aberta a debate. 

Pode discutir-se também se a genuflexão, agora um ritual praticado rotineiramente por políticos (ataviados com echarpes kente, do Gana), agentes da polícia e corporações, ameaça realmente as fundações do Império. 

Noam Chomsky já se aventurou a dizer que a onda de protestos, até agora, tem zero de articulação política - e precisa urgentemente de um direccionamento estratégico que vá muito além da óbvia revolta contra a brutalidade da polícia. 

Os protestos estão a arrefecer exactamente no momento em que a Comuna desponta. 

Dependendo da maneira como os acontecimentos irão evoluir, poderá representar um sério problema para a dupla Trump/Barr. O presidente simplesmente não pode permitir que uma revolução colorida se desenvolva activamente na área central de uma das maiores cidades dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo é impotente, como autoridade federal, para dissolver a Comuna. 

O que a Casa Branca pode fazer é convocar suas próprias unidades de contra-insurgência, na forma de milícias de supremacistas brancos armados até aos dentes, partir para a ofensiva e esmagar as já frágeis linhas de abastecimento das tropas da consciencialização + interseccionalidade. 

O movimento Occupy, afinal, dominou áreas de importância-chave em mais de 60 cidades norte-americanas durante meses, para então se dissolver no éter.

Além disso, o Deep State, nos seus jogos de guerra, já testou inúmeros cenários para lidar com situações de cerco muito mais complexas que a Comuna de Seattle.  

Aconteça o que acontecer a seguir, um vector de importância crucial não irá alterar-se. Um estado de insurreição permanente só beneficia a plutocracia dos 0,00001%, refastelada nos seus confortáveis esconderijos enquanto a populaça ateia fogo na noite.


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