O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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A GUERRA DÁ-SE BEM COM A PANDEMIA

2020-05-16

Alan Macleod, MintPress/O Lado Oculto 

A economia desmoronou-se. Uma pandemia que através dos Estados Unidos matou até agora (oficialmente) mais de 87 mil pessoas também já provocou cerca de 36 milhões de pedidos de seguro de desemprego e faz milhões de pessoas recorrer aos bancos alimentares pela primeira vez. Apesar disso, os negócios estão a prosperar num sector improvável: os fabricantes de armas estão mais ocupados do que nunca e multiplicam anúncios procurando dezenas de milhares de trabalhadores. 

A Northrop Grumman, que fabrica, por exemplo, sistemas avançados de mísseis tácticos teleguiados, anunciou que projecta contratar até dez mil trabalhadores este ano. As companhias aéreas atravessam uma fase extremamente difícil devido aos condicionalismos decorrentes da pandemia, que colocam em queda livre o número dos passageiros dos aviões. A Raytheon, que fornece peças para fabricantes de aviões civis, perdeu muitos negócios. No entanto, acaba de anunciar a contratação de mais duas mil pessoas no seu sector militar. A Boeing, que atravessou um catastrófico ano de 2019 devido aos vários acidentes graves com o seu aparelho 738 MAX-8, está a preparar-se para despedir dez por cento do pessoal, uma vez que as companhias aéreas prevêem uma queda prolongada e sustentada nas viagens. No entanto, o grupo está a preparar a admissão de centenas de novos funcionários nos seus departamentos de defesa, inteligência e segurança cibernética.

Enquanto isso, a Lockheed Martin anunciou no dia 8 de Maio que “está a recrutar activamente mais de 4600 pessoas”, a juntar aos 2365 novos contratados desde o início do lockdown (confinamento). Este grupo, que é o maior produtor e vendedor de armamento à escala mundial, descreve a situação actual como propícia “ao envolvimento em investigação, design, desenvolvimento, fabrico, integração e manutenção de sistemas, produtos e serviços de tecnologia avançada”, uma explicação na qual evita inserir as palavras “armas”, “guerra” ou “bombas”, os pontos fortes das suas actividades.

A guerra é “essencial”

Como é que o complexo militar-industrial dos Estados Unidos continua a crescer apesar de o país sofrer os efeitos de uma pandemia? Na realidade, Washington definiu como prioritário reforçar a atenção sobre as Forças Armadas designando os fabricantes de armas como serviços “essenciais” durante a crise sanitária, de maneira a que a actividade do sector não seja afectada com o surto.

Em Fevereiro, o Pentágono apresentou a sua proposta de orçamento para 2021 na ordem dos 705 mil milhões de dólares e na qual revelou a necessidade de se preparar para guerras com a China e a Rússia num futuro próximo. Segundo os próprios termos do Departamento da Defesa, haverá “um foco diferente em relação às guerras no Iraque e no Afeganistão e um ênfase maior nos tipos de armas que poderão ser usadas para enfrentar gigantes nucleares como a China e a Rússia”. É ainda intenção do Pentágono “adquirir sistemas de armas de ponta mais avançados, com maior capacidade, poder letal aperfeiçoado e autonomia, para utilizar contra ameaças próximas num ambiente cada vez mais tenso”. Em Abril, a Força Aérea dos Estados Unidos encomendou à Raytheon o desenvolvimento e a construção de um novo míssil de cruzeiro com capacidade nuclear.

Enquanto isso, em termos diplomáticos os Estados Unidos estão a agravar perigosamente os riscos de confronto nuclear ao retirar-se de vários tratados internacionais destinados a limitar as hipóteses de um conflito total e arrasador. O presidente Donald Trump manifestou a intenção de retirar os Estados Unidos no novo tratado START (mísseis estratégicos de longo alcance), o acordo remanescente dos tratados assinados com a União Soviética e a Rússia – uma iniciativa que até um ex-vice-secretário-geral da NATO identificou como “um passo assustador e revelador de como o mundo está a tornar-se perigoso”. Além disso, os Estados Unidos estão a agravar as tensões com a China e intensificam as sanções e as operações de mudança de regime contra o Irão e a Venezuela.

Armas a todo o vapor

Os Estados Unidos gastam quase tanto em guerra como o resto do mundo em conjunto. São também o país que regista até ao momento, a grande distância, o maior número de mortes provocadas pelo COVID-19. A relação entre os dois factos não é coincidência. Enquanto aumentou o orçamento militar, Trump cortou, por outro lado, o financiamento do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) e a dotação para a Organização Mundial de Saúde, talvez o único organismo internacional capaz de limitar a propagação do vírus. Em contraste com outros países que já ultrapassaram a fase mais aguda da pandemia, a Casa Branca montou uma estratégia de inspiração militar em vez de um esforço colectivo capaz de envolver toda a sociedade. Em vez de mobilizar a obtenção e distribuição de equipamentos individuais de protecção e de apostar no desenvolvimento de kits de testes, como fizeram outras nações, o governo dos Estados Unidos está a ordenar a produção de material de guerra.

A pandemia lançou na sociedade norte-americana o debate sobre se o orçamento militar torna o país realmente mais seguro ou se, pelo contrário, os fundos públicos não seriam gastos de melhor maneira em saúde, educação e noutros programas que permitiriam combater a pandemia em termos muito mais eficazes. O debate, porém, não consegue passar para o interior da Casa Branca, de onde saem as ordens para produzir armamento a todo o vapor.


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