O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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MALSONARO, OU A REINVENÇÃO DO FASCISMO NO BRASIL

Sem palavras

2018-10-25

Alexandre Welfort, especial para O Lado Oculto

As imagens de violência utilizadas pelo candidato do Partido Social Liberal (PSL), Jair Bolsonaro, à presidência do Brasil encontram-se amplamente reproduzidas nas imagens publicadas pelos média. Na imagem 1 que reproduzimos (1) – duas meninas de classe média vestindo camisetas estampadas com a face de Bolsonaro, enquadrada por armas de fogo (numa composição ambígua que sugere tanto a cruz de Cristo como a águia militar imperial romana) –  convida-nos a reflectir sobre a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo.

Imaginários da ultra direita brasileira

Muitas são as correlações entre o posicionamento do actual líder da ultra-direita brasileira e o que há de mais negativo na história do século XX, nomeadamente quando relembramos o execrando ideólogo do nazismo alemão Joseph Goebbels.
Uma dessas correlações reside no uso de novas tecnologias para a propaganda política: Bolsonaro usa o WhatsApp como ferramenta de marketing digital; Goebbels utilizou o cinema, arte que dava os seus primeiros passos, como ferramenta de propaganda ideológica. E, tal como fez Goebbels, Bolsonaro recorre a imagens (e os seus apoiantes por elas estimulados a ações violentas), por via da diabolização dos seus adversários, com frequente recurso a "fake news": atribui-se a Goebbels a frase "uma mentira, dita mil vezes, transforma-se em verdade" (2). Mas as correlações estendem-se a temáticas mais frequentes.
As armas – a liberalização do seu uso – assim como a homofobia, entre outros temas considerados sensíveis para o público religioso, foram explorados em profundidade na campanha de Bolsonaro. A imagem da "ordem e progresso" sustentados pela força violenta combinam-se no discurso (palavras, imagens e gestos) da direita brasileira. O poder exercido sem diálogo, de forma intolerante, afirma-se como escolha privilegiada nesse quadrante ideológico.

Cores evangélicas na cena política brasileira

Todas as religiões assumem uma certa forma de relação com a sua comunidade, de orientação espiritual e prática, em matérias relacionadas com o dia-a-dia. A função social da igreja (e tal é válido para as igrejas cristãs nas suas várias tendências e para as outras crenças – judaica, islâmica, budista, etc.) realiza-se por via dessa acção construtiva e constitui parte incontornável das próprias relações sociais, apontando tanto num sentido de dominação como de libertação (3).
O momento político brasileiro está pejado de tensões e contradições, provocando a polarização do combate político, que se vinha exacerbando desde o processo de impeachment, do golpe de 2016 e da entrega da presidência do governo federal a Michel Temer (hoje novamente indiciado por corrupção, como acontece com outros políticos do seu círculo mais próximo: Rodrigo Rocha Loures, Henrique Eduardo Alves, Geddel Vieira Lima, sem esquecer o inefável Eduardo Cunha).
A história recente do Brasil mostra-nos o cruzamento entre religião, tecnologia e política, produzindo resultados para muitos surpreendentes. O ex-deputado Eduardo Cunha liderou o Congresso brasileiro, tendo assumido um papel determinante no golpe de 2016. A sua actuação, vista pelo prisma político-partidário, colocou-nos perante a fractura do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), então dominado por Sarney e Jucá (num mini-golpe interno em que decidiram a saída do governo, vencendo a facção progressista desse partido, liderada por Roberto Requião).
Não nos interessa aqui o papel político-partidário de Eduardo Cunha (nem o seu envolvimento em processos de corrupção), mas a sua actuação enquanto político religioso, ou seja, do Eduardo Cunha pentecostal (Foto 2) e a sua actuação no âmbito da chamada "bancada evangélica", por vezes qualificada como bancada supra-partidária, mas que pode actuar como um verdadeiro "partido multi-legenda" quando os interesses defendidos pelos seus integrantes se definem em função dos valores religiosos ou dos interesses das suas congregações.

Não há, no comportamento dos integrantes da bancada evangélica, uma distinção clara entre o âmbito político e o religioso. A igreja é o seu palanque político; no Congresso, defendem os interesses sectários das suas igrejas. E o cargo político para o qual foram eleitos irá subordinar-se aos valores que formam a sua identidade primária (que é de âmbito religioso).

Desenvolvimentos contraditórios

A realidade manifesta-se nas suas contradições. A legislação eleitoral brasileira foi modificada de forma a limitar a fragmentação do espectro partidário, criando cláusulas de desempenho; enquanto a nível das campanhas eleitorais se impôs uma redução dos montantes e regras de financiamento mais apertadas, além da exigência de maior equidade nos recursos de marketing, por exemplo, em relação aos outdoors.
A reforma eleitoral promovida por Eduardo Cunha colocou em risco os partidos com pouca expressão parlamentar. As cláusulas de barreira favoreceriam o chamado "centrão". Mas o processo iniciado por Cunha (o impeachment de Dilma) havia mostrado como a direita mobilizada nas ruas também desprezava aqueles partidos tradicionais.
A forte polarização resultou em desastre para o Partido da Social Democracia Brasileira (PSBD, que sustentou Temer) e para muitos políticos do centro. Favoreceu a extrema-direita e o PSL, partido que estaria em risco na lógica anterior mas que, sendo "alugado" por Bolsonaro para a sua ambição presidencial, cresceu vertiginosamente, passando da condição de "nanico" à de segunda força (em número de deputados o PT mantém o primeiro lugar).
Para o crescimento da extrema-direita concorrem, por um lado, os ganhos de imagem resultantes do envolvimento de algumas figuras na campanha do impeachment e, por outro, da aparente carência de recursos de propaganda imposta pela nova legislação. Mas, na realidade, a direita beneficiou de dois factores: por um lado, pela média etária dos candidatos e seu estrato sócio-económico, possuindo um domínio mais confortável das novas tecnologias de informação – derivado do uso assíduo das redes sociais, nomeadamente das plataformas Instagram e WhatsApp – garantindo melhor desempenho nas redes de comunicação; e, por outro lado, beneficiou da relação da extrema-direita com as principais lideranças da bancada evangélica, potenciando o fenómeno da comunicação virtual e o seu papel no terreno político.

Rupturas tecnológicas no processo de comunicação

A história da religião mostra-nos como o movimento protestante recorreu à publicação em pequeno formato dos textos da Bíblia. Os princípios de sola fide (justificação pela fé) e sola scriptura (somente aceitando a autoridade da Bíblia), juntamente com o sacerdócio de todos os crentes (ou sacerdócio universal, colocando à responsabilidade de todos os crentes a preservação e propagação dos Evangelhos) marcam, no essencial, a diferença da prática protestante face à prática católica. Daí que a possibilidade de se editar o Novo Testamento em formato de bolso (que os Gideões Internacionais iniciaram em 1899 no Wisconsin, Estados Unidos) pode considerar-se um momento de ruptura tecnológica equivalente à actual publicação da Bíblia em formato digital, acessível nos aparelhos de comunicação portátil, tablets e smartphones.
O uso de aplicações digitais pelas igrejas evangélicas tem como figura determinante o pastor Billy Graham, que promove, em finais da década de 1990, o surgimento da IEC (Internet Evangelism Coalition), movimento de evangelização on-line. Vemos como as igrejas pentecostais, nascidas no bojo do movimento evangelista norte-americano, agilmente se adaptam às novas tecnologias e protagonizam uma nova prática de ruptura, desta feita aproveitando duas potencialidades dos meios de comunicação pessoal multimedia na rede virtual.

As redes de contactos do movimento evangélico

O smartphone possibilita a apresentação de clipes de imagem e som, juntamente com mensagens em texto, emitidas ponto a ponto (isto é, são formas de comunicação pessoal, como o antigo telefone); mas os meios informáticos utilizados pelas igrejas evangélicas (como a plataforma inChurch) permitem a articulação daquela forma de mensagem pessoal com um sistema de gestão de contactos, podendo atingir assim um largo público (milhares de igrejas locais de uma determinada obediência).
Tal sistema não se enquadrará directamente no conceito de marketing cibernético, visto constituir uma operação interna à estrutura religiosa, mas poderá constituir uma poderosa ferramenta de marketing político se as igrejas (como acontece no Brasil) se constituírem em força política organizada. E, sendo os seus candidatos vinculados a partidos ou a listas partidárias, deveria o uso das suas bases de dados considerar-se vedado para efeitos de propaganda eleitoral. A hipótese de tal não ter acontecido é forte.
Ao promover a evangelização pela internet, a Billy Graham Evagelistic Association solicita os dados pessoais a quem responda aos seus inquéritos, dizendo (Imagem 3):

Recolhemos as informações que nos forneces, incluindo dados de opinião ou filiação religiosa, para te oferecer acompanhamento no âmbito deste ministério. Mantemos esses dados em servidores localizados em Portugal e nos EUA, e podemos partilhá-los com os nossos parceiros de ministério no teu país para te proporcionar acompanhamento de proximidade. Ao enviares as tuas informações, concordas com estes termos (4).

Os condimentos estão à vista: recolha, uso e partilha de informações pessoais a nível internacional, com a concordância expressa do utilizador. Mas não se trata apenas de emitir mensagens políticas. Trata-se de utilizar, para essas mensagens, o mesmo canal de comunicação que serve à doutrinação sistemática. A associação passa para o plano subliminar. A voz, as imagens e o veículo utilizado são os mesmos que fazem o quotidiano dos crentes. E, surgindo a mensagem de apologia a um determinado candidato (assumido pela igreja evangélica na forma do ditado: "irmão apoia irmão"), o condicionamento operado a nível da prática religiosa desencadeará o comportamento previsto, concretizado através do voto.
A mesma pessoa que incute em cada crente os princípios atrás referidos (de sola fide e sola scriptura) reclama a obediência a uma mensagem política, por via do mesmo suporte físico em que são agora apresentados os Evangelhos: o pequeno ecrã do smartphone. Não se trata de um mero condicionamento psicológico. Trata-se do uso político da lógica da doutrinação: a palavra fixada no ecrã que apresenta o Evangelho é tomada como verdade, sendo reforçada pelo estatuto de veracidade fornecido pelas imagens, muitas delas, todavia, manipuladas – as célebres fake news.
Em outras, surgem os comportamentos simbólicos mais obtusos, como o gesto de marca de Bolsonaro, imitando uma pistola com os dedos, que vemos reproduzido por apoiantes de qualquer idade, em qualquer lugar (na imagem 4, em plena arquidiocese do Rio de Janeiro). O júbilo manifestado pelos apoiantes de Bolsonaro, imitando o gesto da arma (1), surge em total contradição com o simbolismo do lugar.

As redes de comunicação evangélicas não são, é certo, as únicas que poderão ter sido engajadas nestes processos de manipulação. O segmento empresarial que apoia Bolsonaro (5) e que recorre habitualmente ao marketing on-line, assim como apoiantes políticos que, desde o processo de impeachment, se articulam nestes mecanismos de condicionamento da opinião pública - alguns viram recentemente as suas actividades nas redes sociais (como o Facebook) suspensas por prática de spam político (6) - surgem nas notícias e, em face disso, tornam-se alvo da atenção das autoridades competentes.

A ameaça fascista explicitada

E será, por fim, em antecipação às possíveis consequências dos abusos praticados que se revelará à evidência a face fascista do discurso de Bolsonaro, desta feita em discurso proferido não pelo candidato Jair mas pelo seu filho, Eduardo Bolsonaro, quem se achou no momento de proferir ameaças ao Supremo Tribunal Federal, ameaças estas consideradas sérias a ponto de motivar uma reacção do STF, qualificando o deputado Federal como "inconsequente e golpista" (7).
Tais ameaças, que são lidas no quadro de uma presença significativa de militares no processo político, como o candidato a vice de Bolsonaro, o General Hamiltom Mourão, que, diga-se, também criticou o filho do candidato (8), provocaram amplo repúdio na sociedade brasileira (retirando do silêncio até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - FHC).
O fascismo vai, assim, sendo reinventado pela ultra-direita no Brasil. Mas, acompanhando a denúncia desta realidade, surgem novos protagonistas no campo progressista. No próprio movimento evangélico organizam-se reacções contra Bolsonaro (9).
"Assim, reagindo ao "ethos fascista", como justamente assinala o governador do Maranhão, Flávio Dino (10), na recta final desta luta pela democracia, pastores evangélicos progressistas brasileiros manifestam-se corajosamente contra o fascismo e asseguram o seu apoio a Haddad na segunda volta das eleições presidenciais, já neste próximo domingo".

Referências:

(1)De https://www1.folha.uol.com.br/amp/poder/2018/10/so-15-de-eleitores-de-haddad-e-12-de-bolsonaro-votam-pensando-em-proposta.shtml.
(2) David Duke, ex-lider da Ku Klux Kan diga sobre Bolsonaro: "Ele soa como nós". Ver https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45874344. O candidato, entretanto, recusou o apoio do grupo supremacista norte-americano. Todavia, as várias alucoções de Bolsonaro e seus filhos, em tom racista e homofóbico, remetem essa recusa para o âmbito do pudor eleitoral.
(3) Sobre esta temática, ver o texto publicado em 2016, ainda no decurso do Golpe contra Dilma Rousseff: http://www.grabois.com.br/portal/artigos/152759/2016-05-13/politica-e-religiao-desencontros-e-encontros-na-acao, de onde se extraiu a imagem (Foto 2) de Eduardo Cunha participando de culto evangélico num dos auditórios do Parlamento.
(4) Em https://pazcomdeus.net/mobile/mas-tenho-uma-pergunta/?profession=lp+será+que+deus+me+ama
(5) https://www.conjur.com.br/2018-out-18/empresas-pagam-milhoes-divulgar-mensagens-anti-pt-jornal.
(6) https://www.conjur.com.br/2018-out-22/facebook-retira-ar-paginas-promoviam-spam-politico.
(7) http://www.vermelho.org.br/noticia/316253-1.
(8) https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/agencia-estado/2018/10/22/mourao-critica-fala-de-filho-de-bolsonaro-sobre-fechar-stf-e-cita-petista.htm.
(9) https://www.brasildefato.com.br/2018/10/22/evangelicos-criam-movimentos-contra-bolsonaro-por-todo-o-pais/.
(10)  http://www.vermelho.org.br/noticia/316369-1

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