O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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O VÍRUS COMO INSTRUMENTO DO BIG BROTHER GLOBAL

2020-04-29

Aram Aharonian*, Estratégia.la/O Lado Oculto

A pandemia de COVID-19 é mais que um “cisne negro” (um facto inesperado, pouco frequente). A pandemia certamente passará, mas a crise ficará – a social, a económica, a política – significando um mundo diferente que nem os mais ousados cientistas sociais e politólogos podem imaginar, com uma estimativa de mais de três mil milhões de desempregados.

A necessidade de “ficar em casa” obrigou trabalhadoras e trabalhadores a continuarem a produzir a partir dos seus lares na modalidade de “teletrabalho”; professores e estudantes continuam com parte das matérias dadas de maneira virtual; e também os grupos de risco, entre os quais se encontram os pensionistas, são obrigados a todas as reservas de actividade.

Em que mundo irão viver as novas gerações? No mundo feliz (Admirável Mundo Novo, 1932) do britânico Aldous Huxley as pessoas vivem drogadas com o imaginário “soma” e felizes, manipuladas por um plano superior em que a ciência de ponta serve apenas uma estrutura de dominação.

Não temos “soma”, mas na verdade temos Netflix e um número infinito de aplicações e serviços grátis elaborados especificamente para nos convertermos em adictos felizes e nos verdadeiros recursos que geram a acumulação de riqueza no novo capitalismo – o capitalismo de vigilância – que formata o mundo. Nunca nos sentimos tão livres apesar de sermos observados ininterruptamente.

O ser humano converteu-se num terminal de fluxos de dados. Hoje sabemos que com este conhecimento se podem influenciar, controlar e dominar totalmente as pessoas, através dos algoritmos e da inteligência artificial. A pandemia suscitou a voracidade dos vendedores de dispositivos de vigilância e de tecnologia de rastreio de pessoas, pressupondo-se assim que a ciência dos dados será essencial para derrotar o inimigo invisível.

Entusiasmados com o êxito da China e da Coreia do Sul (entre outros países asiáticos) no combate ao COVID-19, dirigentes políticos de democracias liberais, de direita e ditos de esquerda revelam-se encantados com a capacidade de controlo dos dispositivos digitais e do modelo estatístico dos algoritmos que apuram padrões e fazem previsões.

Câmaras, software, sensores, smartphones, aplicações, detectores são apresentados agora como as armas mais sofisticadas para combater o vírus… e para domesticar populações.

Extrair dados, vender previsões

A indústria de telecomunicações e informática – que juntamente com a farmacêutica serão as ganhadoras desta crise – prospera graças a um princípio básico que é o de obter dados pessoais e vender previsões sobre os comportamentos dos utilizadores aos anunciantes. Até agora conseguiam-se prognósticos que facilitavam a previsão de factos, acontecimentos (e a sua manipulação, claro), mas não de certezas.

As empresas (e os governos) perceberam que para aumentarem os lucros (financeiros mas, sobretudo, de manipulação) seria necessário conseguir modificar os comportamentos humanos em grande escala.

A mão de obra deixou de estar configurada por empregados que recebem um salário em troca de trabalho, mas sim por utilizadores de aplicações e serviços gratuitos, satisfeitos por adquiri-los em troca de cederem, sem consentimento, um registo das suas experiências de vida a múltiplas empresas.

No novo capitalismo, os dados pessoais acumulam-se para produzir os bens que serão postos à venda no mercado: previsões sobre nós próprios. Os proprietários dos meios de produção não são mais do que os possuidores do monopólio do negócio digital: Google, Facebook, Apple e Amazon, sublinha Patricia Serrano na publicação espanhola El Economista. 

As medidas de excepção adoptadas, a chamada flexibilização de direitos, os cortes de salários, a falta de respeito pelos princípios básicos da cidadania, as violações de privacidade com o objectivo declarado de enfrentar o vírus e a crise poderão deixar de ser ocasionais para se tornarem permanentes. E até ampliar-se. O vírus não destruirá o capitalismo. Tudo indica que a vigilância (policial, cibernética) conseguirá consolidar-se.

“Acima das pessoas”

O capitalismo industrial, com todas as suas crueldades, era um capitalismo para as pessoas. No capitalismo de vigilância, pelo contrário, as pessoas são, acima de tudo, fontes de informação. “Não é um capitalismo para as pessoas mas que está acima das pessoas”, afirmou Shoshana Zuboff, professora emérita da Harvard Business School numa entrevista à BBC.

A tua smartTV observa-te. Mas também o teu telefone, o teu automóvel, o teu robot de limpeza, o teu assistente de Google e até essa pequena pulseira que conta o número de passos que dás. Uma pista: todos os produtos identificados com a palavra smart ou que incluem a referência de “personalizado” comportam-se como fiéis soldados ao serviço do capitalismo de vigilância – resume Shoshana Zuboff.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, professor da Universidade das Artes de Berlim e autor de uma dezena de livros, aprofunda esta ideia: “O ser humano é um terminal de fluxos de dados, o resultado de uma operação algorítmica. Com esse conhecimento podem influenciar-se, controlar e dominar totalmente as pessoas”.

“Na prisão há uma torre de vigilância. Os presos não podem ver nada mas podem ser vistos. Actualmente estabelece-se uma vigilância na qual os indivíduos são vistos mas não têm a sensação de vigilância, mas sim de liberdade”, explica Byung-Chul Han na sua obra “A expulsão do diferente”, que analisa o impacto da hipercomunicação e da hiperconexão na sociedade.

“Liberdade enganadora”

Para Han, a sensação de liberdade que brota dos indivíduos é enganadora: “As pessoas sentem-se livres e despojam-se voluntariamente. A liberdade não é restringida, mas sim explorada. Acrescenta que “a grande diferença entre a internet e a sociedade disciplinadora é que nesta a repressão sente-se. Hoje, pelo contrário, sem que estejamos conscientes somos dirigidos e controlados”.

Paloma Llaneza, advogada, especialista em cibersegurança e autora de Datanomics, sublinha que o consentimento na realidade não existe quando escrevemos os nossos dados pessoais para fazer o download ainda mais rápido de uma aplicação grátis ou receber uma newsletter semanal. “O consentimento é uma das grandes mentiras da internet”, diz.

O problema começa quando os nossos são usados para outras finalidades e cedidos a terceiras empresas que pretendem conhecer-nos melhor e extrair um perfil de como somos. “Sem sabê-lo, o utilizador pode estar a ser scaneado em redes sociais e daí extrai-se o perfil de quem é. Só com as fotos no Instagram podem deduzir-se aspectos comportamentais”, explica Llaneza.

Enquanto alguns dirigentes políticos apelavam à “unidade” na guerra contra o inimigo invisível e os negacionistas arrastavam a sua gente para o genocídio apareceram algumas linhas de fractura. Através das redes sociais (e dos protestos batendo caçarolas) obrigavam-se os governos a adoptar medidas drásticas para proteger as populações, a saúde comum.

O coronavírus afecta toda a indústria de manufacturação de elevada componente tecnológica (incluindo a indústria automóvel, aeronáutica e de telecomunicações) basicamente porque a sua produção implica aglomeração de pessoas, não é considerada essencial e, em definitivo, ajusta-se às projecções da procura, nada alentadoras hoje em dia.

Nesta análise apenas escapam alguns sectores, principalmente de serviços, entre os quais temos o caso das OTT (over the top), as empresas de telecomunicações que oferecem serviços de streaming. Ou seja, usam a internet para chegar aos utilizadores com vídeo (Netflix), áudio (Spotify) ou mensagens (Whatsapp, do Facebook) e/ou aplicações de teleconferências (como Skype ou Zoom).

Com o isolamento social, as plataformas que recolhem dados pessoais e os vendem no mercado caminham para converter-se não só em grandes intermediárias do entretenimento mas também da educação, o que não pode aceitar-se como algo natural e muito menos como solução excepcional”, considera Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal de ABC, Brasil.

O COVID-19 passará certamente. O neoliberalismo é uma pantomima que durante quatro décadas infectou até forças ditas de esquerda, que deveriam tê-lo combatido. Enfrentamos duas pandemias…

*Jornalista e especialista de comunicação do Uruguai. Master em integração. Fundador da Telesur. Preside à Fundação para a Integração Latino-americana (FILA) e dirige o Centro Latino-americano de Análise Estratégica (CLAE)


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