O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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CENÁRIOS DA RELAÇÃO ENTRE OS ESTADOS UNIDOS E O NARCOTRÁFICO

Tropas norte-americanas na Colômbia: e o tráfico de cocaína em "máximos históricos", diz a ONU

2020-04-27

A Colômbia produz pelo menos 70% da cocaína que circula no mercado mundial; o Afeganistão é responsável por mais de 90% do ópio que está na base da heroína comercializada. As produções estão “nos máximos históricos”, segundo o relatório da ONU em 2018. Os Estados Unidos, através de presenças militares, controlam política e economicamente os dois países – e pelos números envolvidos no negócio mundial de estupefacientes é muito provável que não seja coincidência, tanto mais que, como está provado, dinheiro da droga tem servido para financiar operações encobertas da CIA. Entretanto, Washington projecta acções armadas contra a Venezuela, alegadamente pelo envolvimento deste país no tráfico de droga. Um pretexto falso em busca de dividendos políticos e económicos enquanto o narcotráfico prossegue sem transtornos de maior.

Sergio Rodríguez Gelfenstein, America Latina en Movimiento/O Lado Oculto

Talvez não haja uma “actividade comercial” na qual a lei matricial do capitalismo, a da oferta e da procura, se manifeste com tanta precisão como o narcotráfico. A procura e a oferta de drogas relacionaram-se de maneira óptima para conceber a eficiência infinita que esta actividade mostrou através dos tempos, crescendo sem cessar desde os anos oitenta do século passado, tornando-se tão lucrativa que ainda não houve maneira de interrompê-la.

Como salienta Alain Labrousse no seu interessante livro “Geopolítica da Droga”, o final da guerra fria trouxe a “democratização” dos estupefacientes, que começaram a ser utilizados como instrumentos na maioria dos conflitos.

Na relação droga-conflito, porém, o papel fundamental é desempenhado pelo factor dos lucros, em especial no que diz respeito à cocaína e ao ópio. Os Estados Unidos estacionaram o seu exército nos dois países que podem assegurar um tráfico ordenado e controlado. Deste modo, desde a invasão do Afeganistão, em 2001, e o início do Plano Colômbia, em finais do século passado, a produção, transporte e distribuição do ópio resultante da papoila e da cocaína proveniente da coca cresceram exponencialmente a partir destes dois países, respectivamente os maiores produtores destas duas substâncias.

Segundo Labrousse, citando fontes das Nações Unidas, o aumento dos lucros depende dos obstáculos a vencer para transferir a droga do país produtor para o consumidor. Dito de outra maneira, o controlo dos intermediários aumenta os custos da seguinte maneira: por exemplo, para produzir um quilo de cocaína colombiana em 2005 eram necessários 200 quilos de folha de coca, o que significava 400 dólares para o camponês. A partir daí inicia-se o ciclo: um quilo de pasta base custava 800 dólares; um quilo de cloridrato de cocaína à saída do laboratório custava 500 dólares; um quilo de cloridrato pago ao exportador colombiano custava cinco mil dólares; um quilo pago ao importador grossista em Miami custava 10 mil dólares; preço por grosso em Nova York, 15 mil dólares; a venda ao consumidor gerava receitas entre 150 mil a 500 mil dólares pelo mesmo quilo de cocaína.

Para o camponês ficam entre 0,00027 e 0,00080 dos ganhos totais e, por sua vez, o exportador colombiano (agora mexicano) obtém entre 0,01 e 0,03% do valor final do produto. Quer isto dizer que mais de 99% das receitas geradas por este tráfico de cocaína ficam nos Estados Unidos. Valerá a pena perguntar onde está esse dinheiro?

Estados Unidos: o centro do negócio

Na única vez na história em que o governo dos Estados Unidos tentou fazer uma investigação séria sobre os fluxos de dinheiro do narcotráfico para o seu sistema financeiro foi em 1979 quando, perante o aumento da entrada de capitais na banca de Miami, planeou a “Operação Greenback”; esta tinha como objectivo fiscalizar os bancos norte-americanos que operavam com dinheiro da droga. A operação foi cancelada sem explicações em 1982 pelo czar antidroga do governo de Ronald Reagan, George H.W. Bush. Uma investigação a fundo teria, obviamente, tornado pública a ligação entre os proprietários da grande banca do país e o narcotráfico. Nunca mais voltou a falar-se deste assunto.

Numa ampla investigação realizada pelo jornalista mexicano J. Jesús Esquivel, concretizada no seu livro “Os narcos gringos”, explica-se porque nunca se fala dos cartéis norte-americanos da droga, simplesmente porque não existe uma estrutura piramidal nem capos, como na Colômbia ou no México. Isso não significa que não existam estruturas criminosas operando para distribuir a droga; claro que existem, mas nos Estados Unidos chamam-se brokers (intermediários).

O broker é a pessoa que actua de maneira independente como intermediário entre o produtor e o distribuidor ou vendedor, em troca de uma parcela do produto. A particularidade do broker do narcotráfico é que não tem lealdades específicas, trabalha com quem mais lhe pague.

Esquivel entrevistou Oscar Hagelsieb, agente especial do Serviço de Imigração e Controlo de Alfândegas dos Estados Unidos. Este explicou que em território norte-americano o negócio não é tão estruturado como no México porque ao não existirem cartéis a rede é mais complexa uma vez que se encarrega do transporte, distribuição e venda da droga no interior do país. O broker actua sempre no interior das fronteiras, por isso quando é capturado um carregamento em transição fronteiriça nunca há cidadãos norte-americanos envolvidos. Segundo Hagelsieb, os cartéis deixam a droga quase sempre em “casas de zonas urbanas da classe média alta dos Estados da fronteira sul: Califórnia, Arizona, Novo México e Texas…”

Este agente queixa-se de que os brokers actuam com facilidade graças aos meios de comunicação, aos livros que se escrevem sobre o narcotráfico e aos filmes e séries de televisão ou telenovelas baseadas nos conteúdos de livros que ensinam aos narcotraficantes as estratégias para actuar e fugir às leis.

Hagelsieb admite sem vacilar que a narco corrupção não é um fenómeno exclusivo da Colômbia ou do México, porque também existe nos Estados Unidos. E afirma, de maneira contundente, que “sem a corrupção do narcotráfico não haveria droga nas ruas norte-americanas, ou pelo menos não nas mesmas quantidades”. Qualifica este fenómeno como “um problema grave” no seu país.

Imprescindível para a economia

Esquivel afirma no seu livro que os traficantes norte-americanos “têm entre os seus membros agentes de alfândegas dos Estados Unidos, das patrulhas fronteiriças, da DEA (agência antidroga) e das polícias locais; se esta realidade não existisse, apenas entrariam no país os narcóticos que passam sem ser detectados nas mais inóspitas regiões fronteiriças…”

O livro permite, deste modo, compreender a existência de uma mistura infernal de narcotraficantes, autoridades corruptas, consumidores e meios de comunicação que, a partir de diferentes cenários, ajudam a manter o negócio. Não há dúvida de que existem polícias honestos que lutaram e até deram a vida a combater o flagelo, mas o principal inimigo com que se defrontam são os altos interesses das corporações financeiras e de outros tipos que necessitam de manter um mercado que é hoje imprescindível para a economia dos Estados Unidos. As quase 80 mil pessoas mortas anualmente pelo consumo são apenas danos colaterais calculados de que, além disso, o país precisa para justificar a manutenção das suas bases militares e do Comando Sul (SouthCom) das forças armadas com o objectivo de sustentar a sua política agressiva e intervencionista na região.

No lado da oferta…

Isto é o que acontece do lado da procura; no outro extremo, no da oferta, a situação não é muito melhor. Precisamente, o consumo e a disponibilidade de cocaína nos Estados Unidos têm continuado a crescer como consequência da expansão da cultura ilícita e da produção de droga na Colômbia. Desde 2013 tem vindo a registar-se um aumento substancial nessas direcções. A produção mundial de cocaína atingiu em 2016 o nível mais elevado de sempre – 1410 toneladas.

Esta circunstância levou o governo dos Estados Unidos a afirmar, em Outubro de 2017, que a cocaína da Colômbia continua a ser uma “ameaça” para os Estados Unidos, onde, segundo a DEA, a disponibilidade e o consumo tinham crescido “significativamente” no último ano, antecipando assim um fortalecimento das mafias colombianas a curto prazo. Segundo a informação, o número de hectares de coca no país aumentou 11% em 2017, para 209 mil, o que constitui um recorde histórico.

O Relatório Mundial sobre Drogas da ONU em 2018, por seu lado, revela que “a produção e o mercado mundial de ópio e cocaína se encontram nos seus máximos históricos”. O documento sublinha que a produção “esteve sobretudo comandada pelo aumento da elaboração de cocaína na Colômbia, que produz cerca de 70% da cocaína mundial”. Durante a década de 2008 a 2017, assegura o relatório, registou-se um aumento de 50% na produção de cocaína.

O relatório “Monitorização dos Territórios Afectados por Culturas Ilícitas” afirma que as áreas destinadas ao cultivo de coca na Colômbia, calculadas em 2016 e 2017, aumentaram 17% passando de 146 hectares para 171 mil. Em 2019 essa área chegou a 212 mil hectares.

William Brownfield, um ex-diplomata norte-americano vinculado ao sector mais extremista do Departamento de Estado, onde chegou a ser secretário adjunto para os Assuntos Internacionais da Droga e sempre esteve associado a este assunto em termos de critérios políticos, deu uma entrevista a Sergio Gómez Maseri, do diário El Tiempo, de Bogotá, em Outubro de 2017. Reconheceu que os Estados Unidos tomaram várias medidas ao longo do tempo para evitar a entrada de droga no seu território mas que foram infrutíferas. “…Tentámos nos anos oitenta vedando a entrada pelas Caraíbas com aviões e a guarda costeira. Reduziu-se bastante, mas os traficantes decidiram mover-se então para a esquerda, para a América Central e o México”. Quando Brownfield disse “à esquerda” estava a assinalar para oeste; afastaram-se assim da Venezuela e quando a DEA os quis fazer voltar chegou Chávez e nunca mais puderam aproximar-se com eficácia. Dizem-no todos os relatórios da ONU e também da DEA.

Brownfield disse também que em 2017 o seu país tinha muito boas relações de trabalho com o México, onde agora se produz a droga que chega aos Estados Unidos. Na mesma entrevista assegurou que nos Estados Unidos “a procura não aumentou de maneira significativa nestes quatro anos. Cresceu 20 a 30% em comparação com 2013, contra um aumento de mais de 200% da produção”. Quer isto dizer que para um alto funcionário do governo dos Estados Unidos é um êxito que o consumo de drogas suba apenas 20 a 30%. Daí dizermos que os mortos por consumo de drogas sejam encarados como um dano colateral necessário.

Venezuela, um falso problema

De qualquer maneira, se a DEA afirma que 90% da cocaína que entra nos Estados Unidos tem origem na Colômbia e Brownfield assegura que a produção aumentou 200% e o consumo apenas 20 a 30%, afinal quem é que está a mentir ou, pelo menos, a falsificar os números? Brownfield e o Departamento de Estado ou a DEA?

Em momento algum desta longa entrevista Brownfield menciona a Venezuela tanto em termos de produção ou mesmo de transporte e distribuição. E, no entanto, Brownfield nutre um ódio irracional em relação ao governo da Venezuela e apela ao derrube do presidente Maduro através de qualquer meio.

Neste sentido, desde 2017 que os alarmes soaram noutras latitudes. Num relatório, o Departamento de Estado identificou a Colômbia como o primeiro produtor mundial de cocaína, responsável por 90% da droga que chega aos Estados unidos. A um determinado passo lê-se: “As culturas de coca na Colômbia aumentaram 39% em 2014 e 42% em 2015. Passaram para 159 mil hectares, um dos máximos conhecidos. Um acréscimo de quase 100% desde 2013 (…) O número de mortes por overdose nos Estados Unidos provocadas por cocaína em 2015 foi o mais elevado desde 2007”.

A procura de drogas foi incrementada de tal maneira que o presidente Donald Trump se viu obrigado a pronunciar-se sobre o assunto. Em primeiro lugar, de maneira surpreendente, manifestou descontentamento com os escassos resultados obtidos pelo seu homólogo colombiano, Iván Duque, na diminuição do tráfico de drogas ilícitas para os Estados Unidos; em segundo lugar, ameaçou o México com a imposição de tarifas alfandegárias sobre automóveis e o encerramento da fronteira se, no prazo de um ano, não acabar o tráfico de droga para o seu país. Em ambos os casos baseou os seus argumentos em números, o que não conseguiu fazer com a Venezuela, a que se refere com uma retórica política intervencionista; é a estratégia do uso do tema da droga e da putrefacção da sociedade norte-americana, que ele mesmo reconhece, como instrumento de ameaça, chantagem e pressão.

No caso da oferta, também corresponde a critérios económicos e do modo de vida das forças armadas colombianas, que recebem avultados recursos sem controlo para a sua luta ineficaz contra o narcotráfico. O veterano jornalista colombiano Francisco Thoumi afirmou num artigo para a revista Semana, em Maio de 2019, que a produção de cocaína na Colômbia durante os últimos 40 anos foi aceite como algo óbvio, partindo da ideia de que enquanto houver procura de cocaína em qualquer lugar do mundo haverá sempre oferta. Por isso, “se alguém vai produzi-la, porque não nós próprios?”.

Nesta questão da relação imprescindível entre a oferta e a procura de droga deve recordar-se a opinião de Gustavo Díaz Ordaz, que foi presidente do México entre 1964 e 1970, quando disse: “Se o México é o trampolim da droga, isso apenas acontece porque os Estados Unidos são a piscina”. Basta esvaziá-la e o trampolim será inútil.


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